Enólogo, o cientista do vinho

Poucas ocupações permitem misturar ciência e emoção. Ser enólogo é uma delas

por Sílcia Mascella Rosa

Logo após a colheita de 2008, um ano não muito fácil para Bordeaux, o enólogo e diretor geral do Château Margaux, Paul Pontallier, provava algumas amostras diretamente dos tonéis de madeira enquanto uma equipe de televisão terminava um documentário sobre o imponente Château, seguindo-o com a câmera cantina adentro. Em certo momento, ele leva uma taça já bastante usada ao nariz, olha o vinho contra a luz da enorme janela e diz: "É tão fantástico que algumas vezes não me parece trabalho humano". Essa era a 28a colheita que Pontallier acompanhava na vinícola desde que lá chegou com apenas 27 anos. O vinho que ele provava diante da câmera foi feito para suportar o teste do tempo e como ele mesmo afirmou: "Esse vinho vai sobreviver a mim".

"É tão fantástico que algumas vezes não me parece trabalho humano", Paul Pontalier (na foto à esquerda, ao lado de Corinne Mentzelopoulos, proprietária do Château Margaux)

O enólogo francês, que tinha o privilégio de chefiar um dos mais conhecidos e bem avaliados vinhos do mundo, não estava fazendo charme para a câmera e nem diminuindo o mérito de seu próprio trabalho. Pontallier simplesmente se refere ao vinho com o mesmo encanto que o fazem enólogos do mundo inteiro, quer sejam responsáveis por vinhos de 5 ou 500 dólares.

Tentar descobrir um pouco mais sobre a profissão do enólogo é criar um contraste entre razão e emoção que intriga até mesmo os profissionais mais bem reputados. A parte da razão mostra que eles são cientistas do vinho, com anos de estudos de biologia, química, análise sensorial, botânica, agrometeorologia e outros assuntos específicos de seu campo de atuação. A parte da emoção se mostra nos olhos fechados que resgatam memórias de aromas na superfície da taça, no brilho do olhar que aparece quando um de seus produtos é elogiado, na disposição de passar dias selecionando manualmente cada grão, dias sem dormir na época da colheita, e escolher com o uso da ciência - e uma dose enorme de instinto - a melhor combinação de vinhos para um novo blend.

História e Ciência 

É impossível precisar quem foi o primeiro enólogo da história, mas existem alguns personagens que influenciaram a profissão de maneira decisiva. Grande parte deles são cientistas famosos em vários campos e não somente na vinicultura, como é o caso de Louis Pasteur (com estudos sobre a origem química da fermentação) e Jean Antoine Chaptal, que escreveu, no começo de 1800, alguns trabalhos que são hoje reconhecidos como o fundamento da vinicultura moderna. Seu sobrenome, aliás, identifica o processo desenvolvido por ele de adição de açúcar ao mosto do vinho visando elevar o teor alcoólico final - a chaptalização.

A primeira escola de vinicultura e enologia é italiana e nasceu em 1876, em Conegliano (Treviso) e, em 1891, um formando dessa escola fundou a Sociedade dos Enólogos Italianos, hoje a Associação Enológica e Enotécnica Italiana. Mas foi em 1912 que nasceu o francês conhecido como "pai da enologia moderna", Emile Peynaud, que faleceu em 2004 e deixou uma vasta obra que revolucionou as técnicas de vinificação no mundo todo. Com apenas 35 anos, já Doutor em enologia, escreveu em parceria com seu mentor, Jean Ribéreau- Gayon, o "Tratado de Enologia", obra de referência para todos os profissionais da área. Em paralelo ao seu trabalho como professor na escola de Bordeaux, Peynaud era consultor de diversas vinícolas, entre elas o Château Margaux.

EM 1912, NASCEU EMILE PEYNAUD - CONHECIDO COMO "PAI DA ENOLOGIA MODERNA" - QUE ESCREVEU O "TRATADO DE ENOLOGIA", OBRA DE REFERÊNCIA

Mesmo na França, onde vinho sempre foi coisa séria, a profissão de enólogo só foi regulamentada em 1955. Hoje o profissional que quiser se dedicar à vinicultura no país precisa obter o Diploma Nacional de Enólogo em um dos seis centros de formação superior espalhados pelo país. O curso dura quase cinco anos.

Primeira turma de formandos de Viticultura e Enologia (outubro de 1962). Primeiro à esquerda sentado: Firmino Splendor

O diploma de curso superior, seja em engenharia agrícola ou química, com especialização em vinicultura e enologia, também é pré-requisito em outros países da Comunidade Econômica Européia. "Estudei engenharia agrícola em Coimbra visando trabalhar com tabaco, mas, em um estágio obrigatório em vinicultura feito há quase de 30 anos, o bichinho do vinho me mordeu", lembra Osvaldo Amado, enólogo da Enoport, empresa portuguesa que congrega sete grandes vinícolas familiares. A cada ano, Amado roda 90 mil quilômetros entre todas as propriedades da empresa em Portugal, cuidando dos inúmeros detalhes dos vinhos pelos quais é responsável.

ENÓLOGO É O PROFISSIONAL QUE ASSUME PLENA RESPONSABILIDADE PELA QUALIDADE DOS VINHOS

Múltiplas obrigações 

A União Internacional de Enólogos (UIOE), órgão de classe que surgiu na França, tem mais de 20 mil profissionais do mundo inteiro inscritos, mas a imensa maioria ainda é de europeus. Ao se filiarem, esses enólogos seguem a definição da profissão - e as regras - que são ditadas pela Organização Internacional da Uva e do Vinho (OIV). De acordo com a OIV, o enólogo é o profissional especializado que, através de seus conhecimentos técnicos e científicos, assume a plena responsabilidade pela qualidade e sanidade da elaboração dos vinhos e dos outros produtos derivados da uva.

Assim, ainda de acordo com a OIV, compete ao enólogo a pesquisa tecnológica, a criação dos equipamentos, as análises físicas, químicas e bioquímicas dos produtos e a interpretação correta de resultados, a degustação e compreensão dos vinhos durante todo seu período de consumo, a elaboração do vinho desde a escolha das cepas, plantio, adubação, poda e colheita, o controle de todos os processos dentro da cantina até o engarrafamento e descanso. E, por fim, esse profissional deve conhecer e respeitar a legislação local, regional e federal e também seus mercados consumidores para poder elaborar vinhos de boa aceitação comercial e colaborar para a disseminação da cultura do vinho.

"O mundo do vinho nos dias de hoje não permite que o enólogo seja somente um sonhador, artista e criador que faz o que quer da forma que acha mais correta. Como em tantas outras áreas, o enólogo hoje é um técnico científico, um criador e também uma pessoa atenta ao mercado e realista a ponto de saber os limites do que pode fazer e disposto a pesquisar como superar esses limites se for necessário", define Christian Bernardi, presidente da ABE (Associação Brasileira de Enologia) e responsável técnico pela vinícola Winepark, no Rio Grande do Sul.

O Brasil tem uma cadeira na União Internacional de Enólogos e já chegou a ter um vice-presidente na entidade. Em julho deste ano, a Assembléia Geral da UIOE será realizada em Bento Gonçalves, reunindo profissionais do mundo inteiro que discutirão os princípios éticos e de regulamentação da profissão a convite da ABE. Fundada há 33 anos, a entidade brasileira tem quase 350 enólogos associados, sendo que a grande maioria é participativa. "Abrimos um canal de comunicação dos profissionais brasileiros com o mundo, coisa que nos fez crescer de forma impressionante, pois, para enfrentarmos a globalização dos vinhos, precisamos trabalhar abertamente entre nós, trocarmos conhecimentos técnicos e experiências. O conceito de concorrência pode existir entre os empresários do vinho, mas, entre os enólogos, precisamos de cooperação", explica Bernardi.

Reconhecimento tardio 

No Brasil, a profissão de enólogo só foi regulamentada em 2007, mas o país formou a primeira turma de técnicos em 1962, no Colégio de Viticultura e Enologia, fundado em 1959 na cidade de Bento Gonçalves. Hoje, essa mesma escola foi transformada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul e nela são formados técnicos (em nível médio) e tecnólogos (em nível superior).

Firmino Splendor (à esquerda), Osvaldo Amado, Pasteur (à direita acima) e Chaptal (à direita abaixo)

O professor Luciano Manfroi, um dos diretores da instituição, passou sete anos de sua carreira acadêmica em Petrolina, em Pernambuco, implantando o curso superior de viticultura e enologia que existe na cidade e, de volta ao Rio Grande do Sul há pouco mais de dois anos, conta que um dos desafios da formação do enólogo é precisamente o mercado: "O enólogo tem que ter conhecimento instrumental de química, biologia e toda a técnica para fazer um produto de qualidade, mas também precisa conhecer o agronegócio como um todo, administração, logística e comércio. Para isso, a escola precisou se modernizar".

Dentro da escola, que faz parte das escolas técnicas federais de ensino gratuito, uma grande parte dos alunos são a segunda ou a terceira geração de vinhateiros do Rio Grande do Sul, e os professores são capazes de perceber os que têm talento bem cedo, ainda durante o curso técnico, feito concomitantemente ao ensino médio. "Esses alunos chegam muito jovens, com 16, 17 anos, mas já têm uma história, uma ligação com o mundo do vinho. Temos que guiá-los pelas matérias teóricas e técnicas e ensiná-los a tomar decisões na cantina e fora dela. Mas, em geral, os apaixonados nem titubeiam para ir para o curso superior", afirma Manfroi.

No dia-a-dia de uma vinícola, os diplomas dos cursos técnicos e superior têm funções diferentes. "Quem tem formação superior é quem determina tudo o que será feito na cantina e assina cada produto de acordo com um termo de responsabilidade técnica, que precisa ser renovado todo ano junto ao Conselho Regional de Química. Já o técnico de nível médio é responsável pela execução de todos os procedimentos dentro das normas de cada empresa e produto", explica Christian Bernardi.

NO BRASIL, A PROFISSÃO FOI REGULAMENTADA EM 2007. MAS A PRIMEIRA TURMA DE TÉCNICOS EM ENOLOGIA É DE 1962

Uma profissão e muitas vertentes
O enólogo Firmino Splendor é um dos alunos formados na primeira turma do curso técnico de enologia no país, em 1962. Foi um dos fundadores e presidente durante 10 anos da associação de enologia. Deu aulas por 25 anos na escola onde estudou e até hoje faz seus vinhos (lançou um espumante brut no ano passado), licores naturais e participa de degustações como jurado de todos os eventos da ABE. Mas o mais interessante da longeva carreira de Firmino é o quanto ele inspirou e inspira os jovens que formou. O próprio presidente da ABE, Christian Bernardi, afirma que as aulas práticas com Splendor eram momentos em que tudo relacionado ao vinho parecia belo e importante, mesmo os detalhes mais técnicos. Fazem parte da sua lista de ex-alunos enólogos como Adriano Miolo, Dirceu Scottá e outros que hoje são referência na enologia do País.

Firmino Splendor é calmo em gestos e muito expressivo nas declarações: "Dentro da jovem vinicultura brasileira, é exigida a polivalência do nosso enólogo. Os estrangeiros são, por vezes, muito especializados, mas os brasileiros precisam se sair bem em múltiplas funções. O enólogo tem que ter visão, não pode ficar fechado na cantina, esta é uma atividade profissional na qual você precisa dominar o produto desde antes de ele nascer (o terroir, a videira) até as decisões que farão seu produto conquistar os mercados", explica Splendor.

Durante seus anos de especialização em Bordeaux, o decano enólogo trouxe não somente conhecimentos técnicos, mas também a perspectiva de um produto que traz questionamentos e aprendizados a cada garrafa aberta. "Respeito todas as ciências, mas poucas deles conseguem, como a enologia, resultar em um produto que vai impactar no gosto das pessoas e que, por abstrato que é, vai estar sujeito a críticas de profissionais e consumidores. Não é uma atividade fácil, mas é apaixonante", admite Splendor.

Gilmar Gomes
Christian Bernardi e Juciane Casagrande

Apesar de não ter sido aluna dele (ela se formou na segunda turma do curso superior - que passou a existir no Brasil somente em 1995), Juciane Casagrande concorda que essa é uma profissão literalmente embriagante: "Quem entra no mundo do vinho não sai mais", admite a diretora comercial da Famiglia Valduga. Mesmo tendo feito estágios na área técnica da Salton, em vinícolas em Bordeaux e em Udine, na Itália, Juciane já entrou diretamente na área comercial na Casa Valduga, onde está há 12 anos. Ela conta que, na década passada, as oportunidades para mulheres no mundo do vinho estavam concentradas nos laboratórios (onde a grande maioria dos homens prefere trabalhar com mulheres) e na área de marketing. Existiam poucas enólogas realmente fazendo vinhos. Hoje a situação já é diferente e os dados da escola de enologia mostram que quase 50% dos alunos da escola são mulheres.

Para Juciane, a parte técnica do dia-a-dia da vinícola nunca ficou muito longe" "Mesmo trabalhando na área comercial, participo das degustações em que são feitos os cortes dos vinhos e a escolha do que irá para o mercado. É precisamente onde uma pessoa com formação técnica é capaz de aproximar o consumidor do produtor. Por exemplo, se escuto de um comprador que aquele vinho não tem boa saída porque as pessoas o acham muito encorpado ou o contrário, sei do que ele está falando e posso levar isso diretamente para os enólogos que fazem o vinho".

Esse conhecimento de mercado e de público é a face mais nova da profissão do enólogo que, principalmente em um país como o Brasil, de consumo ainda tão difuso e desordenado, precisa compreender o que deseja o consumidor e, a partir daí, o que é possível fazer na vinícola. "Tenho o privilégio de dar cursos de degustação no País todo, de conversar com sommeliers e escutar sua apreciação de nossos produtos. Acredito que tudo isso seja uma importante vertente da minha profissão, estamos quebrando paradigmas o tempo todo", completa Juciane.

E para os enófilos lembrarem na hora em que forem tirar uma garrafa da adega, fica a frase de um conhecido apreciador paranaense: "Enólogo é a pessoa que, diante do vinho, toma decisões, enófilo é aquele que, diante de decisões, toma vinho".

palavras chave

Notícias relacionadas