Luz, vibração, umidade...Esses e outros fatores podem afetar o tempo de guarda de um vinho, mas o verdadeiro cuidado deve ser com a temperatura
por Arnaldo Grizzo
Imagine a seguinte situação. Você e um amigo compram duas garrafas do mesmo vinho e decidem envelhecê-lo por 10 anos para só depois disso desfrutarem dele. Cada um leva sua garrafa para sua a adega em casa. Passada uma década, vocês novamente se encontram para degustar o vinho. De repente, você percebe que a garrafa de seu amigo está bem menos evoluída do que a sua. O que aconteceu?
Há regras básicas a serem observadas quando queremos envelhecer um vinho e, no fundo, todo mundo já as conhece. Basta o lugar ser escuro, úmido, com baixa temperatura e sem vibrações, certo? Sim, os conceitos são fundamentalmente esses. Você então vai ponderar o que pode ter feito de errado. Se, assim como na casa de seu amigo, suas garrafas ficam em local escuro, úmido e sem vibrações, a resposta provavelmente está na temperatura de armazenamento. É nesse quesito que estão as maiores controvérsias e também os maiores perigos quando se trata de envelhecer vinhos.
Se perguntarmos a um europeu qual a temperatura ideal para o armazenamento de vinhos, ele, sem titubear, vai afirmar: entre 11o e 13oC. Para eles, é fácil dizer isso, pois boa parte de suas caves subterrâneas mantêm-se nessa faixa durante todo o ano, não importando a estação. E porque isso sempre foi senso comum – assim como a ideia de que boeuf bourguignon combina com um Pinot Noir da Borgonha – há poucos questionamentos. Todavia, diferentemente da sugestão de harmonização – que podemos provar empiricamente –, essa “temperatura ideal” ainda não tem boa base científica.
Poucos se comprometeram verdadeiramente em estudar os efeitos das oscilações de temperatura nos vinhos e, convenhamos, há ainda um agravante quase maior do que a questão do tempo para tentar fundamentar essa pesquisa: o que seria uma evolução boa ou ruim dos compostos da bebida? Em que ponto evolutivo eles são bons, e a partir de quando eles se tornam desagradáveis?
No entanto, deixando a subjetividade de lado, um pesquisador da Universidade da Califórnia, Alexander Pandell resolveu se focar apenas nas reações químicas e elaborou um trabalho, em 1996, que deixou de cabelo em pé aqueles enófilos que ainda guardam suas garrafas no armário debaixo da escada. Também um amante de vinhos, o cientista se baseou somente em princípios químicos para mostrar como a temperatura afeta a evolução da bebida.
Temperaturas muito elevadas, mesmo que por períodos relativamente curtos, também podem levar a reações desagradáveis nos vinhos
Em sua tese, Pandell começa com a decantada frase: “alta temperatura é prejudicial ao vinho”. Porém, ele vai explicar o porquê. “Envelhecer uma garrafa de vinho é o resultado de muitas mudanças químicas (reações) que ocorrem ao longo do tempo. Cada uma dessas reações ocorre em uma determinada velocidade, ou taxa, e cada reação é afetada de forma diferente por mudanças de temperatura, porque cada uma tem um único fator de energia, ou barreira de energia natural, o ‘obstáculo’ que deve ser superado (‘pulado’) para a reação ocorrer”, escreve.
Assumindo que a temperatura ideal seja 13ºC, Pandell calculou os efeitos da elevação de temperatura sobre o aumento da velocidade do envelhecimento. “Estes cálculos são feitos assumindo duas barreiras de energia diferentes para que ocorra a reação, (baixo e alto) e três mudanças de temperatura diferentes, 13° a 15°C, 13° a 23°C e 13° a 33°C. Ao determinar os limites baixos e altos para a barreira de energia, pode-se ter certeza de que a verdadeira barreira de reação encontra-se entre estes dois extremos. Depois de examinar reações semelhantes às que ocorrem no vinho durante o envelhecimento (por exemplo, oxidação, redução, esterificação etc), estou convencido de que a barreira de reação verdadeira fica mais perto da barreira de energia mais alta do que da mais baixa”, aponta o cientista, que, desse modo, criou um tabela em que mostra o efeito das oscilações de temperatura na taxa de envelhecimento do vinho.
Como a temperatura pode afetar a taxa de envelhecimento do vinho | |||
Mudança de temperatura | Aumento da taxa de envelhecimento de acordo com as barreiras de reação | ||
De 13ºC | A 15ºC | Baixa 1,2 | Alta 1,5 |
Para ficar mais simples de entender, ele segue em sua explicação: “Por exemplo, uma variação de temperatura de 13° a 15°C mostra um aumento na taxa de envelhecimento de 1,2 vez na barreira de energia baixa, e um aumento de 1,5 vez na barreira de energia alta. Pode-se concluir, a partir desses cálculos, que o aumento da taxa de envelhecimento para esta variação de temperatura situa-se entre 1,2 e 1,5 vez. Isso significa que, se sua adega está em 15°C, seu vinho envelhece de 1,2 a 1,5 vez mais rápido do que se fosse em 13°C”, aponta.
Lembrando que Pandell afirmou ser a barreira de energia alta a mais verdadeira quando se trata de vinho, pensando friamente (sem trocadilhos), um vinho guardado por 15 anos em uma adega a 13oC equivaleria a um envelhecido por 10 com temperatura de 15oC. Até aí, você pode dizer: nada demais. Contudo, a tabela de Pandell (no box acima) revela que, sob temperaturas mais altas, o cenário não é dos mais animadores.
Segundo ele, um aumento de 10oC (de 13o a 23oC) duplica a taxa de reação nos compostos químicos de barreira de energia baixa. Mas, se o vinho tem uma barreira de energia alta, a taxa de reação se multiplica por oito. Em outras palavras: guardadas a 23oC, suas garrafas envelhecerão de duas a oito vezes mais rápido do que se estivessem a 13oC. Ou seja, em três anos, elas podem equivaler a vinhos guardados por até 24 anos. Quer ir mais longe? De acordo com os dados de Pandell, diante de uma temperatura de 33oC, os fatores de reação vão de 4,1 a 56 vezes. Traduzindo: um mês sob escaldantes 33ºC pode equivaler a 18 anos de um mesmo vinho em uma adega com os costumeiros 13ºC.
Em sua tese, o professor da Universidade da Califórnia diz ainda que, além do envelhecimento precoce, outra preocupação que se deve ter em relação às temperaturas elevadas são as reações químicas indesejáveis que podem causar na bebida. “Acho que isso é tão importante quanto acelerar as mudanças que têm um efeito desejável no buquê de um vinho à medida que ele envelhece. Se essas reações indesejáveis têm altas barreiras de reação, o que é muito provável, então, ao longo de um período de envelhecimento moderado para um vinho tinto de qualidade, digamos 15 anos, se mantido a 13°C, pouca reação ocorreu e o vinho foi relativamente pouco afetado. Mas, se a temperatura de armazenamento é de 23°C, as reações indesejáveis terão ocorrido 8 vezes mais rapidamente, o que significa que as mesmas reações ocorreram em menos de 2 anos. Outra forma de colocar é que, 15 anos a 23°C, é equivalente a 120 anos (8 x 15 anos) a 13°C”, diz.
Pandell revela ainda que temperaturas muito elevadas, mesmo que por períodos relativamente curtos, também podem levar a reações desagradáveis. “Isso prevalece em temperaturas acima de 33ºC”, diz. “Temperaturas excessivamente elevadas, durante várias horas, certamente terão um efeito prejudicial sobre a química de um vinho com a produção de sabores indesejáveis resultantes da oxidação e de outras reações indesejáveis, cujas taxas foram dramaticamente aumentadas pela temperatura mais elevada. Não vai importar a temperatura de sua adega se, em algum lugar ao longo da linha de distribuição do vinho, ele foi cozido”, completa.
Diante disso, você pode se perguntar: “Por que então não guardar um vinho a menos de 10oC já que, em temperaturas mais baixas, as reações ocorrem mais lentamente?” Segundo o cientista, essa faixa pode ser baixa demais para o “ciclo de vida humano”, ou seja, os vinhos não evoluiriam em uma taxa razoável para que você pudesse aproveitar enquanto vivo. Fora isso, ele diz: “Uma vez que o envelhecimento harmonioso do vinho deve-se a muitas reações químicas diferentes, que ocorrem de forma natural e orquestrada, temperaturas mais baixas podem diminuir algumas reações ao ponto em que elas não contribuam para sabores desejáveis, e, portanto, a evolução do vinho fica fora de sincronia. Seria interessante realizar pesquisas sobre isso, mas a linha de tempo necessária vai além da maioria dos seres humanos”.
Por fim, Pandell dá uma dica valiosa para conservar vinhos abertos: a geladeira. “Se você precisa manter uma garrafa aberta por alguns dias, o melhor lugar para armazená-la é sua geladeira, que geralmente tem temperatura de cerca de 5°C. As reações químicas que levam à deterioração (redução-oxidação, principalmente) serão retardadas por um fator de 6 a 16 vezes comparado com o armazenamento à temperatura ambiente. Portanto, um vinho deve durar de 6 a 16 vezes mais na geladeira”, finaliza.