Um brinde à enologia brasileira

Gilberto Pedrucci, eleito pela ABE como o 'Enólogo do Ano', fala sobre o papel da enologia num Brasil cada vez mais vitivinícola

por Dirceu Scotá*

fotos: Leandro Carvalho

Nunca pensei que um clichê do futebol se aplicasse tão bem à requintada temática da harmonização entre vinhos e alimentos. Depois dessa reportagem, só posso dizer que "a harmonização é uma caixinha de surpresas".

Mesmo pretendendo abordar a compatibilização de forma completa, com uma análise detalhada dos vinhos, dos alimentos e de seu matrimônio, confrontando teoria e prática, percebe-se que mesmo a mais sólida teoria requer confirmação prática, dada a complexidade do tema.

Inusitado

A primeira idéia que vem à cabeça quando se pensa em "aves e vinhos" é "carne branca com vinho branco". Para fugir do óbvio, ADEGA escolheu "aves x tintos".

Para tal, nada de restaurantes típicos e cozinhas tradicionais, fomos direto à melhor novidade surgida no Rio de Janeiro em 2005: o restaurante de Roberta Sudbrack (www. robertasudbrack.com.br). Esta talentosa chef, que já comandou as panelas do Palácio da Alvorada, prima pelo bom gosto, leveza em suas criações e respeito aos ingredientes.

Como a variedade de bicos e penas é imensa escolhemos um representante de sabor mais delicado, uma codorna grelhada, e um mais encorpado, um arroz de pato. Os pretendentes ao matrimônio com esses pássaros eram quatro galantes tintos, de quatro de origens, uvas e safras diferentes, fornecendo um amplo painel.

Além deste abnegado editor que vos escreve e da supracitada chef, foram convidados a emprestar seu palato à reportagem: Vera Carneiro - proprietária do restaurante Atrium; Marcos Lima - sommelier vice-campeão brasileiro do restaurante Locanda della Mimosa, e Reinaldo Paes Barreto - diretor institucional do Jornal do Brasil e membro da confraria Companheiros da Boa Mesa.

Antes de qualquer garfada, no entanto, fiz uma prévia análise dos vinhos e pedi ao especialista Guilherme Corrêa para nos fornecer um texto como base teórica sobre o que iríamos encontrar.

fotos: Leandro Carvalho
Da esquerda para a direita, Vera Carneiro, Reinaldo Paes Barreto, Roberta Sudback, Marcelo Copello e Marcos Lima

A teoria por Guilherme Corrêa*

Frango de granja, frango caipira, galeto, capão, codorna, perdiz, faisão, pato, ganso, pombo etc. É difícil generalizar o perfil de vinho quando tratamos com tantos níveis de estrutura, textura, gordura e aroma no universo alado. Isso sem falar na miríade de preparações culinárias a que esses animais se sujeitam, possibilitando um amplo espectro de vinhos para uma perfeita harmonização.

A primeira regra de harmonização é a do nivelamento da estrutura. Em se tratando de aves, podemos fazer um agrupamento em três níveis: pouco estruturado (peito de frango e peru, galeto), moderadamente estruturado (frango caipira, codorna, perdiz, peru, capão, galinha d'angola) e estruturado (faisão selvagem, pombo, marreco selvagem, pato, ganso). Outra característica importante das aves é que geralmente as carnes não são ricas em gordura, concentrada abaixo da pele dos animais. Se a cocção não for perfeita, a carne pode ficar menos suculenta, proibitiva aos tintos tânicos. Para aves mais ricas em lipídios e sabor como patos e gansos, um crescimento em estrutura e taninos via de regra é bem vindo. Os patos têm também uma perceptível tendência ao doce natural na carne, que deve ser confrontada com o frescor ácido ou com a sapidez (riqueza de sais minerais) do vinho. Analisando os pratos e os vinhos que serão provados, teoricamente o arroz de pato, por ser um prato de maior sabor, se acomodará melhor com os tintos estruturados do Barolo, do Hermitage e do Prado Rey. A untuosidade do arroz de pato trará conforto para o assalto tânico do Barolo e do Hermitage, e a boa acidez de ambos deverá pôr vida no prato, este com uma perceptível tendência ao doce. O Prado Rey também disponibilizará álcool e taninos suficientes para enxugar a untuosidade, e dotado de um perfil olfativo mais etéreo e complexo acenderá a chama rústica/regional da harmonização.

A codorna, por sua vez, fará um casamento clássico com o Pinot Noir. Com seus taninos leves e dóceis e sua acidez suculenta, o Pinot Noir, irá abraçar e trazer estímulo à codorna e, não obstante ande bem com arroz de pato, carecerá de um pouco mais de estrutura e firmeza para ajudar no processo de limpeza das gorduras líquidas na boca (sobrará untuosidade).

*Guilherme Corrêa é sommelier formado pela Associazione Italiana Sommeliers.


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fotos: Leandro CarvalhoA prática

Arroz de Pato

Ao contrário do esperado, Roberta serviu o arroz de pato antes da codorna. A surpresa foi logo entendida por todos, dada a delicadeza do preparo. Reinaldo chegou a brincar que era "quase uma canja de galinha". As características do pato foram mantidas: riqueza aromática, complexidade e nível de sabor, porém com menos estrutura e untuosidade do que as receitas tradicionais.

fotos: Leandro CarvalhoAs opiniões sobre qual o melhor vinho para o casório ficaram divididas. Dos cinco comensais dois preferiram o Hermitage, dois o Pinot Noir e um o Barolo. Vera e Reinaldo optaram pelo grande vinho do Vallée du Rhône, com seus taninos já evoluídos. Para eles, pato e vinho tinham a mesma complexidade e nível de estrutura, enquanto os outros fermentados se sobrepunham à ave. Para a chef Roberta o escolhido foi o italiano que, por ter taninos nervosos sem perder a elegância, teria enfrentado bem o sabor marcante da ave. Marcos e eu ficamos com o Pinot Noir, para nossa própria surpresa. As notas de funghi e especiarias, com taninos presentes e finos estavam na medida do pato; enquanto o Barolo atropelou o pato com penas para todos os lados, exacerbando sua tendência ao doce no fim de boca.

fotos: Leandro Carvalhofotos: Leandro Carvalho
Arroz de PatoCodorna

Codorna

Os suspiros pareciam ensaiados quando todos provaram as coxinhas de codorna grelhadas com pele, acompanhadas de cuscuz marroquino de castanha de caju e uva passa. A unanimidade no amor ao prato não foi estendida à escolha do melhor vinho: o Barolo saiu ganhando com três votos, contra um para o Hermitage e um para o Pinot. A chef Roberta optou pelo francês, sem dúvida um vinho encantador no palato, com a riqueza necessária ao contraponto com as passas e castanhas. Pinot Noir e codorna formaram um belo casal, para Vera.

Contrariando todas as expectativas, Barolo e codorna formaram o melhor par da noite. Para três participantes, Marcos, Reinaldo e eu, o grande "B" do Piemonte e a codorna nasceram um para o outro, quem diria. Se provássemos 100 Barolos com 100 codornas, teríamos 99 litígios e uma paixão, que comprovaria apenas que no mundo dos sabores mora uma exceção em cada esquina. Certamente a gordura da pele da ave, aliada a castanha de caju e a uva passa contribuíram de forma decisiva para que a frágil codorna agarrasse um vinho tão tânico e persistente quanto o potente italiano, que tinha tudo para ser o solteirão da noite. Como dizem, "no amor, na harmonização e na guerra" vale tudo para sair vitorioso!

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Os vinhos da noite

fotos: Leandro CarvalhoPinot Noir 2002, Hamilton Russel Vineyards - África do Sul (Expand, R$ 178).
Amadurecido 10 meses em barris franceses, com 13,5% de álcool. Granada entre claro e escuro. Tostados aparecem bastante, mas sem o toque de baunilha que o tornariam vulgar. Frutas secas, minerais, couro, cogumelos, e especiarias completam o quadro. Taninos muito finos bem presentes com toques e madeira aparecendo no fim de boca. O binômio fruta/madeira não domina e permitem a expressão do terroir.

Hermitage Pied de la Côte 1997, Jaboulet - Vallée du Rhône, França (Mistral, US$ 85).
Paul Jaboulet é um dos grandes nomes do Valée du Rhône e seu Hermitage La Chapelle, uma das maiores expressões mundiais da uva Syrah. O Hermitage Pied de la Cote, é considerado, por seu próprio produtor, como seu segundo vinho. Sua cor é granada com reflexos alaranjados. Os aromas já estão totalmente etéreos, denotando que o vinho já não deve evoluir mais, com frutas secas, couro, defumados e especiarias. Na boca está perfeito: taninos macios e 14% de álcool, elegante, complexo e com longo final.

Barolo Cannubi 2000, Marchesi di Barolo - Piemonte, Itália (World Wine, R$ 249).
Cannubi é um dos melhores vinhedos do Piemonte, gerando os mais elegantes Barolos. Este exemplar amadureceu dois anos em barricas de carvalho (35% esloveno e o restante francês), depois descansou 18 meses em sua garrafa. Sua cor é rubi com reflexos violáceos. Nos aromas lembra violetas, baunilha e outras especiarias, além de madeiras (carvalho, cedro). Grande corpo, taninos finos ainda bem presentes, com toques de frescor, no fim de boca aparece a doçura dos seus 14% de álcool.

Prado Rey Reserva 1999, Real Sitio de Ventosilla - Ribera del Duero, Espanha (Decanter, US$ 75,60).
Amadurecido 24 meses em barricas (de 240 litros) de carvalho americano e depois mais três meses em tonéis franceses de 21 mil litros; elaborado com 95% Tempranillo, 3% Cabernet Sauvignon e 2% Merlot, com 13,5% de álcool. Ótimo ataque aromático, complexo, com muitas especiarias, madeira aparece bastante, baunilha, torrefação (café), frutos maduros e minerais. Encorpado e muito seco (deixa a boca enxuta), com taninos finos ainda bem presentes, ótimo equilíbrio e um longo final. Longa guarda.

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