Há 20 anos, o Festival Internacional da Uva e do Vinho Oenovideo celebra as produções de vídeo e imagens que têm o vinho como mote
por Míriam Aguiar
Antigo retrato do Duque d'Aumale, personagem do documentário Zucco
As imagens vão se sucedendo, às vezes frenéticas, às vezes plácidas. No mundo da velocidade, da tecnologia, da urgência, como encaixar a filosofia do amor à terra e às tradições, da paciência e todo esse universo que gira em torno do ciclo anual de uma planta de resistência milenar - como é a videira - em uma linguagem suportada pelos famosos "24 quadros por segundo"?
De repente, surge na tela um cenário bucólico de uma paradisíaca ilha grega, Santorini, de apenas 73 km2. Lá, em uma típica paisagem da "Arcádia", um velho vinhateiro senta-se para descansar com seus arados puxados por cavalos, que riscam trilhas entre vinhas de grossos troncos antigos. Seria um quadro perfeito do Romantismo, se não fosse por um pequeníssimo detalhe: o agricultor fala ao celular.
Esta cena é do documentário Pelican's Watch, da diretora grego-dinamarquesa Lea Binzer, que trata de uma pequena comunidade de vinhateiros de Santorini ameaçada de extinção face à demanda econômica por atividades turísticas mais rentáveis. O filme é uma das iniciativas que buscam revelar e reafirmar, com um apelo simbólico além-fronteiras, a importância da preservação de uma cultura ancestral encarnada no cultivo da vinha e no compartilhamento do vinho por aqueles que através dele consagram a sua identidade cultural.
Tocante e chocante, o documentário emocionou a todos pelo sensível tratamento das imagens, ritmado pela obra da compositora grega Laoura Gini, e pelo tom de revolta dos vinhateiros da ilha. Segundo a diretora, mais do que emocionar, Pelican's Watch tem o intuito e o compromisso de revelar a extrema insatisfação que corre nas veias de seus habitantes e confrontá-la com as imagens paradisíacas, correntemente associadas às ilhas gregas. Por isso, recebeu o troféu especial do o Festival Internacional da Uva e do Vinho Oenovideo 2013.
A agenda francesa de eventos em torno do vinho é frenética, são centenas de feiras, salões, degustações, seminários, visitas guiadas a regiões e Châteaux, cotidianamente. Do mesmo modo, é intensa a produção cinematográfica. Além dos museus, exposições e espetáculos, Paris é a cidade mais cinéfila do mundo: segundo pesquisa da World Cities Culture Report 2012 (um relatório da vida cultural em 12 das principais cidades mundiais), são 1010 salas de cinema na capital francesa contra 566 em Londres e 501 em Nova York. Vinho e cinema são, portanto, dois universos culturais e econômicos extremamente importantes para o país. Poucos sabem, no entanto, que, há 20 anos, as duas temáticas se reúnem anualmente em torno de um festival de cinema totalmente voltado ao registro do vinho, chamado Oenovideo.
"VINHOS MEDIEVAIS"Além dos filmes, o evento contou com mais duas atrações: a belíssima cidade medieval do Languedoc-Roussillon, sul da França, e os vinhos de Minervois. Originária do século VI a.C. do período neolítico, integrada ao Império Romano no século I e ao reino da França no século VI, a vila murada de Carcassonne foi palco de combates contra hereges, conflitos e batalhas históricas. A partir século XIX, a cidade prosperou em função de sua vitivinicultura e vida cultural, tornando-se Patrimônio Cultural da Humanidade. Carcassonne se situa dentro das demarcações de Minervois, um dos maiores vinhedos do Languedoc, vizinho de Corbières ao sul, de Saint-Chinian ao leste e de Carbadès a oeste, formado por cerca de 17.000 hectares de vinhas, distribuídos em 61 comunas. Os principais centros urbanos e comerciais de Minervois são as cidades de Narbonne e Carcassonne. Com uma produção total de cerca de 2 milhões de hectolitros, o vinhedo está dividido em cinco grandes sub-regiões, onde se encontram vinhas de perfil mais oceânico ou continental, entre 50 m e 500 m de altitude. Assim como em outras denominações de origem do Languedoc, as cepas tintas predominantes e autorizadas para a produção de vinhos tintos e rosés na AOC Minervois são Carignan, Mourvèdre, Grenache, Syrah e Cinsault e, para os brancos, Grenache, Macabeo, Marsanne, Roussanne e Bourboulenc. Dentre elas, as varietais predominantes atualmente são a Syrah e a Grenache, o que, de acordo com Philippe Coste, presidente do Sindicato do Cru de Minervois, representa uma mudança de orientação, já que nos anos 1950, era a Carignan que dominava, totalizando 75% da viticultura da região. Antes predominava um vinho leve, sem complexidade e, atualmente, a preferência tem sido pela produção de vinhos ricos em frutas, com taninos macios e gastronômicos. |
A edição 2013 ocorreu entre os dias 31 de maio e 2 de junho em Carcassonne, França. Amantes e profissionais do vinho, cineastas, fotógrafos, produtores de vinhos de Minervois e imprensa especializada em vinhos e cinema reuniram-se para celebrá-lo na Tour de Trésau da Cité de Carcassonne, cidade medieval francesa com status de patrimônio mundial. Juntamente com o festival, há oito anos, é realizada a exposição "Terroir de Imagens", que reúne ampliações de 100 fotos de vinhas e vinhos. Neste ano, o tema escolhido para orientar a produção fotográfica, subdividida em duas categorias - profissionais e amadores - foi "Festejar e degustar o vinho nos cinco continentes".
Obviamente que, dada a origem do festival e a sua realização prioritária na França (apenas três edições aconteceram na Suíça), predominam inscrições do próprio país, mas a participação internacional é crescente, assim como em tudo que se refere ao vinho. Nesta edição, especificamente, dentre 26 filmes selecionados de um total de 114 inscrições, 14 eram de outros países, além da França: Alemanha, Inglaterra, Austrália, Argentina, Bélgica, Canadá, Croácia, Estados Unidos, Espanha, Itália, Grécia, Portugal e Suíça.
Há uma flexibilidade quanto às origens das fotos e dos filmes em termos de autoria (regiões e profissionais), formatos (curta, média e longa metragem) e abordagens (ficção, documentário, institucional), desde que o motivo principal seja o vinho. A organização do festival comenta que o perfil internacional cada vez mais se consolida e que, especialmente neste ano, mesmo as abordagens sobre o vinho francês são originárias, em parte, de um olhar estrangeiro sobre a sua vitivinicultura e influências em contextos exteriores.
É assim que temos um curta-metragem que versa sobre o legendário Grand Cru borgonhês Romanée-Conti, que também é um dos emblemas homenageados pelo documentário biográfico "L'Évangile selon Champlain" ("O Evangelho segundo Champlain"), sobre o canadense Champlain Charest, proprietário do Bistrô Champlain, em Quebec. O bordalês Château Lafleur é outro vinho que dá tema e nome ao curta-metragem alemão "Lafleur", uma ficção que retrata um encontro entre um amante de vinhos e uma sommelière para a degustação de um Château Lafleur 1979 - que conquistou o prêmio de escolha do público do Oenovideo 2013.
Não mais por estrangeiros, mas por franceses, Bordeaux é tema de "La vente en primeur des vins Grands Crus Classés bordelais", um documentário sobre a importante campanha anual de promoção e venda antecipada de vinhos da nova safra de Bordeaux - e venceu na categoria "melhor filme destinado aos profissionais".
De pomposa produção inglesa, Red Obsession, escolhido como um dos melhores longas-metragens, é um filme que trata do fenômeno de inflação dos vinhos de Bordeaux após o investimento do emergente mercado chinês nos vinhos da região. O filme mostra as imagens do sucesso e glamour dos bordaleses entre a elite chinesa, disposta a pagar uma fortuna por esses rótulos e é narrado por ninguém menos que o galã Russell Crowe.
Carcassonne se situa dentro das demarcações de Minervois, no Languedoc
Com produções do mundo todo, o grande prêmio deste ano ficou com um documentário sobre vinhateiros na ilha de Santorini, na Grécia
VENCEDORES DO OENOVIDEO 2013Troféu especial do grande júri Melhor longa metragem Melhor curta-metragem Prêmio de melhor imagem Prêmio de melhor cenário Melhor filme de "promoção" Melhor filme destinado aos profissionais Menção especial do grande júri Prêmio do público Veja os trailers em www.oenovideo.oeno.tm.fr |
A América do Sul esteve representada por dois filmes: "Boom varietal: the rise of Argentine Malbec", um filme norte-americano que fala da explosão de vendas dos Malbec argentinos nos Estados Unidos - e ganhou o prêmio de melhor imagem. E o outro país sul-americano representado foi o Chile, com o vídeo institucional "Santa Rita 120", um filme de 2 minutos cujo desafio é recriar o conceito de 120 vinhos, relacionando-os à independência chilena.
As sessões foram avaliadas por um júri presidido pelo cineasta Christophe Barratier, conhecido pelo grande público devido aos filmes Les Choristes (A voz do coração) e Faubourg 36 (Paris 36). Além de cineasta, Barratier é um connaisseur "garimpador" de vinhos do sul da França, portanto a sua escolha para presidir o júri em Carcassonne não foi à toa. Segundo organizadores, o festival tem a intenção de mostrar a presença do vinho em origens e formatos variados, registrando a evolução do tema e de tudo aquilo que ele suscita em cada época e local. Barratier diz que busca encontrar algo que o comova, surpreenda tanto nos vinhos como no cinema. Ser interessante, bem feito não basta: "Que seja algo tocante ou chocante, que provoque emoções ou revoltas, e não apenas interesse." E não seria essa a natureza do vinho?
Para os enófilos cinéfilos, o festival Oenovideo mostra que no mundo há muito mais do que os clássicos hollywoodianos e que o vinho pode ser celebrado nas taças e nas telas pela sétima arte.
Fins do século XIX, o mundo passara por transformações. A França vivia o debacle da era pós-Napoleão. A monarquia era restaurada, mas logo voltaria a cair. Nessa época, um aristocrata se destacava: Henri d'Orleans, conhecido como Duque d'Aumale, um dos muitos filhos de Luís Filipe I, o último rei da França. Henri era dono de uma vasta fortuna, herdada desde muito cedo. Entre suas propriedades, por exemplo, estava o famoso Château de Chantilly, que ele restaurou após a Revolução Francesa, e lá deixou a segunda maior coleção de pinturas do país, depois do Louvre.
Devido aos constantes conflitos da época, o duque viveu no exílio entre a Casa de Orleans, na Inglaterra, e a Sicília, onde ocupou uma fazenda abandonada numa localidade chamada Zucco. Lá, passou a produzir vinho por volta de 1850. Com isso, trouxe um pouco de prosperidade à ilha italiana (empregando 4 mil fazendeiros), historicamente sempre muito pobre. O vinho Zucco, como ficou conhecido, cresceu com uma aura de charme e mistério, por guardar segredos de uma aliança entre paixão pela vinicultura, savoir-faire francês e precioso estudo do terroir siciliano.
E foi por acaso que a siciliana Lídia Rizzo encontrou os vestígios para desvendar essa lenda. "Nunca imaginaria que onde o grande chef François Vatel guardava o segredo do seu famoso creme de Chantilly, encontraria o segredo do vinho de Zucco", afirma a cineasta que criou o documentário "Zucco, o vinho do filho do rei da França", vencedor do prêmio da "Revista dos Enólogos", no festival Oenovideo 2013.
Pelas imagens de arquivos e pelas vozes de historiadores, biógrafos e descendentes de viticultores, vamos identificando vários fatos ocorridos na trajetória do vinho mundial e sua conexão com o legado referencial da França, que serviu de inspiração para o duque e tantos outros personagens da história. Segundo a cineasta, Zucco foi um vinho notável até as primeiras décadas do século XX, mas sua história e importante contribuição para a vitivinicultura se perdeu e o objetivo de sua obra é incorporá-la à memória da Itália, da França e do vinho. E não é que, dentre os relatos da biografia do duque, deparamo-nos com um dado surpreendente: ele também tinha terras no Brasil, no estado de Santa Catarina, onde produziu açúcar de cana e cachaça.
O filme mostra a multinacionalidade que está na alma do vinho de Zucco - um vinho de sobremesa de grande finesse, fruto da assemblage entre a cepa francesa Sémillon (que, em Bordeaux, botritizada, gera o Sauternes), as autóctones Catarratto Bianco e Perricone, a alemã Riesling e a espanhola Alicante, amadurecidas sob o intenso sol da Sicília.
No final do século XIX, a devastação dos vinhedos franceses pela filoxera direciona o olhar do influente mercado inglês para o oeste da Sicília, onde se faz o vinho Marsala, e depara com a produção mais modernizada de Zucco. O "moderno" ali significava justamente o oposto da industrialização, que permeava grande parte da produção regional. Segundo o enólogo italiano Giacomo Ansaldi, o produtor francês introduz uma nova filosofia na produção de vinhos e no cultivo das vinhas. Isso pode ser constatado pelos registros do estudo do solo e da criação de uma carta topográfica, com colorimetria e altimetria geológica, bem como do estudo do clima e das influências geográficas que favoreciam a amplitude térmica propícia à viticultura no território de Zucco.
No filme, as imagens combinam a simplicidade e belo colorido bucólico da região mediterrânea com as ruínas do passado imperial greco-romano e a imponente sede do vinho de Zucco, que nada parecia dever ao perfeccionismo dos crus franceses. O Duque d'Aumale não poupou investimentos: canalizou a água para irrigação das vinhas e, segundo o historiador Salvo di Matteo, transformou Zucco numa das mais belas cidades sicilianas, à moda francesa. Tudo indica que ali era a sua "Pasárgada", onde produzia o vinho que tanto o deixava orgulhoso, mantinha uma relação calorosa com a população e usava como refúgio para se recuperar de algumas dores, como da perda de dois jovens filhos e, posteriormente, da esposa, em 1869. Quando adoeceu e acabou falecendo em 1897, foi para Zucco que ele se dirigiu: "Com a ajuda deste vinho reparador, eu lutarei."
Sobre os ombros dos trabalhadores rurais, antes de ser levado para o enterro na França, seu corpo foi transportado, ao longo das vinhas, dentre todos os caminhos que costumava fazer quando vivo. Considerando os benefícios que trouxe à região, a reputação do vinho de Zucco e a admirável personalidade de Henri d'Orleans, constante nos registros biográficos, é estranho constatar que poucos na região atualmente conhecem a sua história. Após a sua morte, o Conde de Paris, Louis-Philippe-Robert, herdou a propriedade e vendeu-a em 1923, dividida em cinco partes. A parte mais produtiva passou à família aristocrática Gangi, de Palermo, que continuou a fazer o vinho, mas já com outra orientação, privilegiando a produção de vinhos à base de Moscato. Após as grandes guerras, a vitivinicultura foi sendo abandonada e atualmente, pelas mãos do Instituto Regional dos Vinhos e Azeites da Sicília, inicia-se um projeto de retomada da produção de vinhos de qualidade na fazenda de Zucco.
O filme de Lídia Rizzo faz parte desse processo de renascimento, ao resgatar e projetar esse passado na tela do cinema, para além do silêncio dos museus, numa linguagem mais atual e acessível às novas gerações. É assim ela assina Zucco com a seguinte epígrafe: "Se você ignora o nome das coisas, até o mesmo o conhecimento delas desaparece." (Carl Nilsson Lannaeus).