Boas massas pedem bons vinhos, e essas combinações são mais variadadas e fáceis do que parecem
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 04/08/2019, às 12h00 - Atualizado às 13h14
O ravioli de pêra com brie da chef Sebá Moura é uma boa pedida de massa para acompanhar um bom vinho
Um grande sucesso das comédias românticas do cinema da década de 1990, o filme Só Você (Only You) estrelado por Marisa Tomei e Robert Downey Jr. mostra a protagonista e sua cunhada numa viagem para a Itália. Numa cena em um restaurante em Roma o garçom (que obviamente só fala italiano) pergunta para elas se vão comer pasta. Elas (que só falam inglês) entendem a palavra ‘pasta’ e gastam o restante do vocabulário para dizer ‘Si’. Ele então pergunta se vão tomar ‘vino’ e elas respondem ‘Si’ novamente. A última pergunta do diálogo é: “bianco o rosso?” (branco ou tinto?) e elas, sem saber respondem ‘Si, si’.
A situação hilária não é simplesmente um recurso cinematográfico. Massas e vinhos são poderosos símbolos da Itália, difundidos mundo afora, mas isso não quer dizer que as pessoas saibam combiná-los como se deve, para valorizar ambos e ter um prazer quase igual ao de uma refeição num restaurante aberto numa piazza em Roma.
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Para harmonizar massas é necessário saber uma coisa bem básica: a massa é, na maior parte das vezes, neutra. Uma combinação de farinha de trigo, ovos e água. Em alguns casos a massa pode receber a adição de espinafre, tinta de lula, beterraba ou abóbora, o que lhe altera o sabor sutilmente, mas nem sempre a ponto de modificar a escolha do vinho.
Assim, o que deve ser levado em consideração, principalmente, não é massa em si, mas o recheio, o molho e o preparo. Eles é que serão determinantes na diferenciação dos vinhos.
Molhos de tomate tendem a ser mais ácidos, mesmo que equilibrados com uma pitada de açúcar ou com cenoura, como fazem alguns cozinheiros italianos, e é necessário reparar se no paladar há, também, um sabor forte de alho ou de ervas como manjericão ou orégano. No caso de molhos mais ácidos é importante equilibrar essa acidez com a do vinho, ou seja, o vinho pode ser também um pouco mais ácido. Se a acidez for moderada, no entanto, um pouco de dulçor vai equilibrá-la perfeitamente. É por isso que no caso dos molhos de tomate desde o mais simples, servido com queijo ralado por cima, a combinação pode ser realmente italiana: um Chianti básico, um Valpolicella de boa qualidade, versões de um Teroldego e, para combinações mais ousadas, um Chardonnay amadeirado, onde o ligeiro dulçor fará a ponte com a acidez do tomate.
Os vinhos brancos aparecem com força na combinação das massas com molhos brancos também, uma vez que a proteína do leite nem sempre reage bem com o tanino de alguns tintos mais potentes e duros. É por isso que uma massa recheada com carne mas coberta com molho branco cremoso não irá combinar (embora pareça que sim) com um tinto da uva Tannat. As duas forças são antagônicas. Nesse caso é melhor apostar num branco de uvas como Verdejo, Chardonnay ou um tinto mais leve e com boa acidez, como um Barbera.
Uma das regras de ouro da harmonização, que pode facilitar a vida de quem precisa fazer essas combinações, é a regra que combina pratos de um mesmo país e região com vinhos do mesmo lugar. Isso se deve ao fato de que, em geral, a enogastronomia regional segue um padrão de combinação natural. Esse é o caso, por exemplo, das massas preparadas na região italiana do Piemonte, que levam mais ovos do que nas outras regiões italianas e cujos molhos tradicionais, o bolonhesa, e o de carne de caça (como lebre, codorna ou coelho) são frequentemente servidos com os intensos vinhos locais: Barbarescos mais ácidos, Barolos menos nobres e jovens Dolcettos. O sabor mais forte do molho de tomates enriquecido com carnes e de cozimento lento, combinase à perfeição com os vinhos da região. Assim nascem os clássicos.
Uma das preparações mais populares na gastronomia internacional é o espaguete à carbonara. A combinação de bacon frito, ovos, sal e pimenta moída fresca é, por conta dos ovos, um desafio para muitos apreciadores. Para os romanos, criadores do prato, o acompanhamento perfeito é o mais simples dos vinhos: um Frascati fresco e de baixa graduação alcoólica. Mas como uma das coisas divertidas da harmonização é quebrar alguns conceitos, esse prato merece ser provado com um tinto simples da uva Syrah e, ousadamente, com um espumante brut charmat.
As massas recheadas, começando pelas lasanhas, são outro desafio intrigante. Nelas é bem fácil perceber que a camada de massa é apenas ou apoio para os outros ingredientes (queijo, presunto, molho de carne, legumes), no entanto, nesse caso é preciso levar em consideração que a combinação de massa e recheios tem um peso muito maior do que em outros pratos de massa. A lasanha é, em muitos casos, uma refeição em si. Preparada com recheio de bacalhau, por exemplo, e coberta com um queijo leve, ficará perfeita com um Vinho Verde, que será capaz de cortar a gordura do queijo com sua acidez e harmonizar o frutado cítrico com o peixe.
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O sommelier do restaurante Praça São Lourenço (SP), Roberto Brandão, explica que se a massa tiver mais peso, como no caso de uma lasanha com recheio de carne moída e molho branco ela precisará de um parceiro à altura, e daí vale apostar num vinho tinto do Novo Mundo, como um Cabernet Sauvignon com passagem por madeira ou vinho de corte bem elaborado: “Esses tipos de massas mais condimentadas precisam de vinhos mais reforçados, para que eles não desapareçam no paladar. Outra opção interessante pode ser um Shiraz australiano, onde as especiarias irão casar bem com os temperos do molho de carne”, explica Roberto.
Capeletes, ravioles, concigliones, canelones e outras massas cujos recheios tendem a ser mais delicados precisarão ser harmonizadas tanto pelo recheio quanto pelo molho, pois a variedade de sabores que atacará o paladar é grande. Uma regra geral (válida para as massas apenas) diz que recheios brancos vão com vinhos brancos e recheios escuros com vinhos tintos. No entanto, há que se levar em consideração o peso dessas preparações.
Uma massa recheada de queijo de cabra, com um molho leve e que tenha um toque doce e herbáceo pode ser harmonizada com um Pinot Noir, mesmo que a regra geral determinasse um Sauvignon Blanc, por exemplo. Se essa massa levar frutas e tiver um toque doce, por que não tentar com um vinho Jerez, com seu toque oxidado? Um pouco de ousadia harmoniza bem à mesa. Uma solução alternativa e bem original pode ser, também, um espumante rosé para acompanhar uma massa recheada de carne ou ave, com um molho mais denso, uma vez que a acidez do espumante fará frente à untuosidade do prato.
“O mais importante quando pensamos em massas e seus molhos e recheios é não pensar sempre no óbvio. É claro que a harmonização por país faz sentido e é sempre segura, mas por que se limitar a isso?”, propõe o sommelier Roberto Brandão, explicando que hoje são comuns muitos pratos de massas de influência oriental, mais condimentados e complexos e que pedem vinhos fora do que estamos mais acostumados como Rieslings da Alsácia, Rosés portugueses e alguns chilenos diferenciados. Nesses casos, vale se arriscar e levar em consideração algumas combinações: pratos mais salgados (com molho de soja ou de peixe) reforçam o amargor dos vinhos, então não vão combinar com Amarones por exemplo, molhos mais adocicados e com frutas pedem vinhos com mais acidez e molhos muito untuosos brancos não vão bem com taninos, mas se essa untuosidade vier da gordura de carnes, podem fazer uma bela combinação com tintos mais poderosos. Vale ousar e se arriscar, para que as respostas à harmonização não sejam simplesmente ‘Sí, sí’!
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