Conheça a história e as regras da Denominação de Origem (DOC) no mundo do vinho
Arnaldo Grizzo Publicado em 06/09/2023, às 10h00
Desde os primórdios da vitivinicultura, os produtores perceberam que algumas coisas poderiam dar prestígio aos seus vinhos. No Egito antigo, por exemplo, sabe-se que as ânforas eram marcadas com o tipo de vinho, o produtor e o local de origem.
Em um mundo em que a comunicação ainda era bastante precária, detalhes como a proveniência passaram a ser cruciais para o “marketing”. Assim, os grandes vinhos da antiguidade quase sempre se tornavam famosos por seus “terroirs”.
Um exemplo é o Falerno, um vinho que fez enorme sucesso durante o Império Romano, originário da região do Lácio, mais precisamente dos arredores do monte Mássico. A fama do vinho dessa região era tanta que se acredita que tenha sido o primeiro a ser falsificado na história.
Aliás, historiadores consideram a hipótese de que outro vinho conhecido em sua época, o Mássico, tenha desaparecido exatamente porque os produtores da região passaram a usar o nome Falerno, que era mais valorizado.
É interessante notar que, desde tempos bastante remotos, o local do origem sempre foi extremamente valorizado. São inúmeras as citações sobre vinhos de locais específicos (até mesmo na Bíblia) antes mesmo do surgimento do que conhecemos como denominações de origem controlada, ou DOC.
Desde a antiguidade, passando pela Idade Média e chegando aos nossos dias, dizer que um vinho veio de um local específico geralmente faz com que o consumidor já tenha uma clara ideia de como ele é, com que uvas é feito, preveja estilos de aromas e sabores etc.
A “proteção” de nomes como Champagne, Barolo, Bordeaux, Tokay, Porto etc., contudo, é recente. Na época em que a França era a grande referência cultural para diversos países da Europa e até da América.
Champagne, por exemplo, tornou-se sinônimo de espumantes. Servido na corte e must entre a nobreza, em pouco tempo produtores de outros locais passaram a rotular seus espumantes como Champagne para vender a mercadoria mundo afora. Hoje, Champagne tem um conselho regulador que, além de determinar os padrões que os vinhos locais devem seguir, ainda tem como tarefa impedir que o nome Champagne seja usado irregularmente.
Os italianos se vangloriam do fato de que teriam criado a primeira denominação de origem de vinhos do mundo. Em 1716, Cosimo III de Médici, grão duque da Toscana, publicou o “Bando”, uma declaração em que delimitava as fronteiras e determinava as primeiras regras da produção de Chianti.
Essa teria sido a primeira peça legislativa visando, de certa forma, “proteger” os produtores locais, um esboço do que se tem hoje com consórcios reguladores e órgãos governamentais – especialmente europeus – que regulamentam as denominações de origem.
Ainda no século XVIII, os húngaros apontam que também teriam criado algo similar na região de Tokay. Eles, aliás, afirmam que, por volta de 1730, o príncipe Rakoczi teria ido além e criado o primeiro sistema de classificação de vinhedos por qualidade. Diz-se que ele sugeriu a delimitação da produção e a divisão dos vinhedos em quatro categorias de qualidade. Até hoje, contudo, não há consenso sobre uma classificação oficial como ocorre, por exemplo, em Bordeaux, que foi criada em 1855 a pedido de Napoleão III e ainda é válida.
Não podemos esquecer de outra “DOC” criada nesse período, a do Vinho do Porto. Até hoje os portugueses “veneram” uma figura crucial em sua história, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o principal ministro do rei D. José I.
Em 1756, Pombal determinou o controle estatal sobre o comércio do Vinho do Porto e também os limites da área vitivinícola, que foi demarcada com sua posição assinalada com 335 pilares de pedra, conhecidos como “marcos pombalinos”.
Mas essas primeiras “denominações” de vinho não podem ser consideradas as mais antigas do planeta. Levando em consideração que as DOC visam delimitar e proteger a produção alimentar, há denominações anteriores. A do queijo Roquefort, por exemplo, é considerada a primeira, tendo sido “regulamentada” por um decreto de 1411.
Obviamente que as questões envolvendo a produção de determinados locais foram evoluindo de forma que, em certo ponto, precisou-se formalizar regras e procedimentos, além de grupos “diplomáticos” para solicitar aos governos que nomes de certas regiões não fossem usados por produtores que não pertencessem à área ou, mesmo que pertencessem, não seguissem regras pré-estabelecidas.
Como é de se imaginar, foi na França que surgiu um dos primeiros órgãos governamentais para tentar regulamentar as denominações de origem, ou, como eles chamam: Appellation d'Origine Protégée (AOP).
Os primórdios do “Institut national de l'origine et de la qualité” (antes conhecido como “Institut National des Appellations d'Origine”), cuja sigla é INAO, remonta ao começo do século XX, quando o governo francês passou a dar atenção para alguns problemas dos agricultores, entre eles o dilema das delimitações das produções. O INAO foi oficialmente criado dentro do ministério da agricultura em 1935.
Em 15 de maio de 1936, o instituto publicou uma portaria em que reconhecia como denominação de origem controlada (DOC) as regiões vinícolas de Arbois, Tavel, Cognac, Cassis, Monbazillac e Châteauneuf-du-Pape. Estas, então, teriam sido as cinco primeiras DOCs ligadas ao vinho da França apesar de Châteauneuf-du-Pape clamar para si a primazia.
Aos poucos, entidades similares ao INAO francês surgiram em outros países europeus e o modelo das denominações de origem tomou forma, espalhando-se por todos os cantos, com conselhos reguladores locais que, além de delimitar fronteiras, criaram normas técnicas para que os vinhos de determinados locais pudessem levar o nome da região onde nasceram.
Mais do que a uva vir de um vinhedo localizado dentro dos limites de um território, é preciso seguir os parâmetros de produção definidos por um órgão regulador.
O INAO define as AOP como “designando um produto em que todas as etapas de produção são realizadas de acordo com um know-how reconhecido na mesma área geográfica, o que confere ao produto as suas características”.
Se você é um produtor em Chablis, precisa cultivar apenas Chardonnay e seguir algumas regras de vinificação para poder rotular seu vinho como Chablis, necessariamente um branco.
Se quiser plantar Zinfandel e fazer um tinto, por exemplo, mesmo que consiga autorização para o cultivo (que certamente já será uma batalha judicial acirrada visto que os órgãos governamentais tendem a resguardar até mesmo o que pode ser plantado para que o terroir não perca sua essência), certamente não poderá rotulá-lo como Chablis.
Se você estiver em Champagne, por exemplo, e quiser produzir um espumante com método Charmat, por mais que use somente uvas autorizadas, tampouco vai poder apontar que ele é um vinho de Champagne, pois o método tradicional é obrigatório.
Enfim, na maioria das vezes, as regras de produção de uma denominação de origem controlada são bastante rigorosas, com o intuito de manter não somente tradições enraizadas, mas também o que os órgãos reguladores definem como seus níveis de qualidade.