A Baronesa

A vida e o legado da Baronesa Philippine de Rothschild, uma das mais importantes personalidades do mundo do vinho

por Por Guilherme Velloso

Philippine Pascal

Philippine Pascal era o seu pseudônimo usado no teatro, onde foi colega de Catherine Deneuve

O casamento de Philippine Pascal, atriz da Comédie Française, com o também ator e diretor Jacques Sereys, em 1961, foi um grande acontecimento social na França. Convidados vindos de todo o mundo viajaram de Paris a Bordeaux, onde o casamento seria realizado, num trem especialmente fretado pelo pai da noiva. A bordo, além de Champagne e caviar à vontade, o mais famoso cabeleireiro francês da época, Alexandre, e sua equipe, permaneceu à disposição das damas presentes, para os últimos retoques em seus penteados. No dia do casamento, foi servida uma espécie de brunch frio para os convidados: carne de frango e lagosta, acompanhada do vinho Château Mouton Rothschild, um dos cinco que integram a elite de Bordeaux, da safra 1933, ano de nascimento da noiva. Nada mais natural.

Philippine Pascal era o pseudônimo usado no teatro por Philippine Mathilde Camille de Rothschild, filha única do barão Philippe de Rothschild, dono do próprio Mouton Rothschild e de considerável fortuna. Philippine, que se tornou baronesa com a morte do pai, em 1988, morreu na madrugada de 23 de agosto, aos 80 anos, depois de comandar por mais de meio século o Mouton e as outras propriedades abrigadas na holding Baron Philippe de Rothschild S.A.

Mas nem tudo na sua vida foi um conto de fadas, como se imaginaria. Ela própria deixou isso claro ao comentar numa entrevista: “Quando seu sobrenome é Rothschild, todo mundo pensa que você teve uma infância tranquila”. A dela certamente não foi.

Os horrores da guerra

A baronesa ao lado dos filhos Philippe e Julien

A baronesa ao lado dos filhos Philippe e Julien (à direita)

Philippine viu a mãe ser presa pela Gestapo durante a II Guerra Mundial

Philippine nasceu no dia 22 de novembro de 1933, em Paris, mas seus pais não eram casados. A mãe, Elisabeth Pelletier, Condessa de Chambure, conhecida por Lili, ainda estava casada com um nobre belga que, a princípio, não se conformou com a situação e ameaçou sequestrar a criança recém-nascida, alegando que poderia ser sua filha. Por isso, o pai, Philippe, preferiu mandar mãe e filha para o então longínquo Château em Pauillac, perto de Bordeaux, até que a situação se resolvesse. Mas o casamento não durou muito depois de formalizado.

Em 1938, Elisabeth deu a luz a um menino, Charles Henri, que nasceu com uma deformação congênita e morreu no mesmo ano. Ela atribuiu os problemas da criança ao fato de ter tomado pílulas para dormir durante a gravidez e que o fazia por culpa do marido. Embora a razão não fique clara, em sua autobiografia, o barão nunca negou ser mulherengo. No ano seguinte, a II Guerra Mundial explodiu na Europa e, em 1940, a Alemanha invadiu a França.

Philippe colocou a mulher e a filha a salvo, em casa de amigos, em Dordogne, não muito distante de Bordeaux, enquanto ele próprio procurava meios de chegar à Inglaterra, para se juntar à França Livre e ao exército de Charles de Gaulle. Ele só iria reencontrar a filha em 1944, quando chegou a Paris junto com as tropas aliadas. Soube, então, que a mulher fora deportada para um campo de concentração, onde morreria, e que Philippine tinha sido levada para a casa do avô paterno (o pai de Philippe, como muitos judeus que tinham posses, refugiara-se em Portugal). Ela conta que só foi salva porque um dos membros da Gestapo, encarregado de prender sua mãe, não quis levá-la junto porque tinha uma filha da mesma idade que ela.


A baronesa deu continuidade ao trabalho de seu pai, Philippe, que havia lutado anos para promover Mouton ao posto de Premier Cru Classé

No teatro

Philippine cresceu num colégio interno na Inglaterra (falava inglês fluente) e decidiu estudar arte dramática. Uma de suas colegas de turma se tornaria famosa como atriz de cinema: Catherine Deneuve. E foi outro ator que também se tornaria famoso na época da Nouvelle Vague, Jean-Paul Belmondo, que a apresentou ao futuro marido, Jacques Sereys. Já casada, depois de trabalhar na Comédie Française, juntou-se ao elenco da famosa companhia teatral de Madelaine Renaud e Jean-Louis Barrault (seu papel de maior destaque foi na comédia Harold and Maude), a qual permaneceu associada até os anos 1980.

 Philippine e Jacques tiveram dois filhos. Camille, nascida no mesmo ano do casamento (1961), e Philippe Sereys de Rothschild, provável sucessor da mãe, em 1963. O casal se separou depois de alguns anos, mas permaneceu próximo até a morte de Philippine. Ela já conhecera o segundo marido, o biógrafo e intelectual Jean-Pierre de Beaumarchais, com quem teve o terceiro filho, Julien de Beaumarchais Rothschild, em 1971.

Embora não ligasse muito para moda, Philippine era conhecida por usar joias, especialmente brincos e colares, grandes e vistosos. Um de seus colares preferidos ostentava a cabeça de um carneiro (mouton).

 exposição “Mouton Rothschild: Paintings for the Labels”
Philippine criou a exposição “Mouton Rothschild: Paintings for the Labels”, com as obras originais usadas nos rótulos de seus vinhos

vinícola Opus One

Ela também foi responsável por concluir o projeto de criação da vinícola Opus One, nos Estados Unidos

O trabalho do pai

Enquanto Philippine se dedicava a família e ao teatro em Paris, o pai travava a batalha a qual dedicou boa parte de sua vida: conseguir que o Mouton Rothschild fosse “promovido” de Second a Premier Grand Cru Classé – conforme a famosa classificação de 1855, que dividiu os melhores vinhos de Bordeaux em cinco níveis (de Premier a Cinquième Cru). Curiosamente, uma das maiores resistências que Philippe teve de vencer nessa luta de mais de 20 anos, segundo o próprio relato, foi a de seus primos, donos do Lafite, também Rothschild, vizinho ao Mouton.

Philippe era um gênio do marketing e, além de investir na qualidade do vinho, liderou uma série de iniciativas que chocaram o conservador e fechado universo de Bordeaux. Uma delas foi convidar artistas famosos para ilustrar o rótulo de cada safra do Mouton. O da safra de 1973, ano em que o vinho, finalmente, foi promovido a Premier Grand Cru Classé, é de Pablo Picasso, mas nomes como Georges Bracque, Salvador Dali, Andy Warhol e Lucian Freud, entre outros, já contribuíram com pinturas para os rótulos. O pagamento do trabalho é feito em caixas de vinho de duas safras diferentes, sendo uma delas a que o próprio artista ilustrou.


Ela concluiu o projeto de renovação total tanto da área de vinificação como do museu do Château, criado pelo pai para exaltar a relação da arte com o vinho

“Primeiro eu sou, segundo eu fui, Mouton não muda”, é o lema do Château

O legado

Philippine começou a colaborar com o pai – falecido em 1988 – no início da década de 1980. Primeiro, como uma espécie de embaixadora da marca. Foi dela, por exemplo, a ideia de criar uma exposição itinerante com as pinturas originais usadas nos rótulos, com o nome de “Mouton Rothschild: Paintings for the Labels”. Ela também foi responsável por concluir o projeto, iniciado pelo pai, de criação da vinícola Opus One, no Napa Valley, em parceria com Robert Mondavi. Além de ter conduzido a associação com a Concha y Toro, no Chile, que deu origem à vinícola Almaviva, lançou o Petit Mouton, segundo vinho do Château.

Mas, talvez sua criação mais pessoal tenha sido a do vinho Aile d’Argent, com uvas de um vinhedo plantado por ela própria com as variedades clássicas que entram no corte dos brancos de Bordeaux: Sémillon, Sauvignon Blanc e Muscadelle.

Já com a saúde debilitada, Philippine concluiu o projeto de renovação total tanto da área de vinificação como do museu do Château, criado pelo pai para exaltar a relação da arte com o vinho. O conjunto inclui uma nova ala para abrigar a coleção de pinturas originais dos rótulos e foi inaugurado em junho do ano passado, por ocasião da Vinexpo.

A morte de Philippine pode encerrar uma era (ela foi a primeira mulher a comandar o negócio familiar), mas pouco deve alterar a trajetória do Mouton Rothschild. É o que informa o próprio lema inscrito no rótulo do vinho desde sua promoção a Premier Grand Cru Classé: “Premier je suis, second je fus, Mouton ne change”; ou, em tradução livre, “Primeiro eu sou, segundo eu fui, Mouton não muda”.

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