Especial

Como é produzido um Don Melchor?

Visitamos os vinhedos chilenos com o enólogo Enrique Tirado para entender como Don Melchor nasce

por Christian Burgos

Há mais de uma década, quando lançamos ADEGA, muitos amigos perguntavam: “Mas tem assunto para fazer uma revista sobre vinho todo mês?” Hoje tenho certeza de que aqueles mesmos amigos ririam da própria pergunta. O vinho, até então, não tinha o reconhecimento social que tem hoje no Brasil, e gostamos de acreditar que estamos contribuindo para isso. Naquela época, minha resposta era que, assim como os livros, existem mais vinhos do que uma pessoa vai tomar em toda sua vida – e ele ainda é diferente a cada nova safra. Hoje, milhares de vinhos degustados depois, adicionaria que, além do mais, o vinho de uma safra que já degustei alguns anos atrás é outro quando volto a degustá-lo hoje. Incrível não?

Com o tempo, temos o privilégio de acompanhar alguns vinhos como uma criança que acompanhamos crescer e se tornar um adulto. Nem por isso escrevemos apenas sobre vinhos. Eu, especificamente, encanto-me pelas pessoas, suas histórias, paixões, desafios, confiança, brilhantismo e entrega pessoal ao prazer dos outros – e o vinho é o resultado de tudo isso engarrafado.

Um desses personagens que sigo com grande interesse e admiração é Enrique Tirado, o enólogo do ícone chileno Don Melchor e uma das pessoas mais educadas do mundo do vinho. Como você lembra, Enrique começou a trabalhar com a equipe de Don Melchor em 1995, assumiu o projeto em 1997 e se dedica a este vinho desde então. Ele recebeu a missão de cuidar do já icônico vinho, não se satisfez em mantê-lo grande e trabalhou duro para fazê-lo ainda maior.

Enrique conhece seu próprio vinhedo como poucos enólogos do planeta. Os estudos de vinhedos começaram em 2000, e Pedro Parra, por dois anos, fez um trabalho de doutorado no vinhedo. Com o tempo, seus 114 hectares foram divididos em 142 pequenas parcelas que foram agrupadas em sete conjuntos de parcelas de acordo com o estudo das videiras, do clima, fotos de satélites, fotometria e, por fim, o solo, ou melhor, os solos do vinhedo.

Essas parcelas obedecem um desenho que não se define em fileiras, mas em “línguas” formadas pela atuação do gelo, erosão e, sobretudo, pelo fluxo da água. É fácil compreender a lógica dos desenhos e mapas do vinhedo, mas, quando participamos dessa nova experiência Don Melchor (o programa Collector’s Experience Don Melchor), a coisa faz um clique e absorvemos sensorialmente a explicação intelectual.

A experiência

Tudo acontece na “casona”, como é chamada a casa sede da Concha y Toro, um lugar histórico, recentemente revitalizado, mantendo sua raiz e, ao mesmo tempo, acrescentando uma intimista e moderna sala de degustação apegada à wine library dedicada a Don Melchor. Nessa experiência, um belo vídeo nos transporta emocionalmente aos vinhedos (que visitamos mais uma vez no dia seguinte) e é seguido pela degustação conduzida por Enrique. Degustamos Cabernet Sauvignon de sete parcelas, mais uma de Cabernet Franc, uma de Merlot e uma de Petit Verdot. Somos convidados a degustar todos os vinhos, discuti-los e criar o nosso blend.

Experimentamos amostras de barricas da safra 2017, que ficaram em cuba entre 18 e 22 dias. Passaram por fermentação malolática, 40% em barrica e 60% em tanque. Confira uma breve avaliação no mapa a seguir.

Convidado a montar meu corte, meio estraga- -prazeres, recusei-me a sugerir. Como me disse recentemente um amigo, “temos que saber quem é cachorro e quem é poste” e eu queria ver o mágico em ação. Com auxílio dos outros, de tubos de ensaio e um decanter, Enrique montou um blend que não vou revelar para não influenciar quem vai viver essa mesma experiência.

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O enólogo Enrique Tirado

O vinho estava excelente, era impossível entender como aquelas parcelas tinham originado ESSE vinho. Mineralidade e cinzas frias ganharam protagonismo. Vai muito além de 2+2 ser mais do que 4. Foi algo que emocionou inclusive Enrique. Perguntado se este era um corte que ele já teria usado, ele disse que não, mas acrescentou “que este vinhedo sempre é capaz de fazer a magia acontecer e não dá para explicar”. Lembrei de nosso ex-colaborador Luiz Gastão Bolonhez quando dizia: “degustei e escorreu uma lágrima...”

Dá para sentir que, para Enrique, isso não é um trabalho. Cada parcela é tão distinta, que mesmo se fosse 100% Cabernet Sauvignon, continuaria sendo um blend e não um varietal. Prestei muita atenção à performance do mágico, mas sou incapaz de reproduzir ou explicar a magia.

O ícone passo a passo

Em 1996, os blends começaram a ser feitos com o auxílio de Jacques Boissenot (mítico consultor de Bordeaux, tento trabalhado em quatro dos cinco Premier Grand Cru Classés) e com o acompanhamento de seu filho Eric que, após a morte do pai em 2014, continua fazendo o corte com Enrique. E o que muda com Eric? Segundo Enrique, “Jacques era conservador e direto, tinha uma memória incrível para compor os blends. Já Eric é um pouco mais aberto, viaja e experimenta vinhos de todo o mundo”. “Mas se tem alguém que me formou como degustador foi Jacques”, apontou.

Todo o ano, 150 “vinhos” são enviados a Bordeaux para a degustação, que continua acontecendo lá, pois é um processo de imersão. Enrique explica que, “no primeiro dia, descarta-se os lotes que não acha que deveriam estar em Don Melchor”. “Descartamos até 50% nos piores anos. Todos os grandes vinhos têm seleção. Eles são a melhor parte do terroir. Destes 150 vinhos provados sai a base. Faço um vinho base e depois acrescentamos e provamos alternativas, num processo que dura quatro dias. Estes dias em Bordeaux são os melhores dias do ano. Há muita emoção”, revela.

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Foto: DIvulgação

Um resumo rápido do ciclo seria: vindima em abril, prova em julho, mescla em setembro. Aí se inicia a guarda da mescla em barrica. Segue-se a mescla das barricas e, por fim, engarrafamento.

Em 1999, Cabernet Franc passou a ser importante no corte, resultado de um enxerto sobre videiras de Cabernet Sauvignon com 30 anos. Sempre considerado no corte, é usual encontrar o Cabernet Franc participando entre 2 a 9% da mescla para ajudar a arredondar e afinar os taninos.

Em 2015 foi primeiro ano com 1% de Petit Verdot. Em 2016, o corte tem Cabernet Franc, Petit Verdot e Merlot e, em 2017, os 99% de Cabernet Sauvignon recebem apenas 1% de Cabernet Franc.

Degustação da safra 2015 e histórico

Nesta viagem, pudemos revisitar safras que já havíamos degustado em ADEGA, acrescentando dimensão temporal à avaliação, mas nosso objetivo era mesmo degustar em primeira mão o 2015.

AD 96 pontos

DON MELCHOR 2015

Concha y Toro, Maipo, Chile (VCT – ainda não disponível). Todo boca! Uma experiência de complexidade de texturas, como a criação de um grande chef. Tem fruta, ervas aromáticas e cinzas frias. Medicinal. Um toque de cedro e cogumelos. Já nasce aristocrático. A fruta vem acrescentar ao apetite e volume, mas são as ervas e a mineralidade que definem este vinho. Resultado do que Enrique Tirado define como “clima perfeito nos momentos que necessitávamos”. Foi o melhor Don Melchor que já provei, e num mundo recheado de 100 pontos com os quais tenho dificuldade de me acostumar, estes 96 pontos são uma das maiores pontuações que já dei a um vinho em seu lançamento, antes que o tempo possa trazê-lo a seu ápice, que neste 2015 ainda está uma década à frente de sua safra. CB

Enrique escolheu apresentar também safras passadas, acrescentando uma dimensão temporal à experiência.

AD 93 pontos

DON MELCHOR 2006

Concha y Toro, Maipo, Chile (VCT – não disponível). É como tomar um Bordeaux da década de 1990 que manteve bem a fruta. Enrique voltou a escolhê-lo depois de o termos degustado no International Tasting, talvez um exercício para mostrar o potencial desta safra que não ficou eternizada como uma das grandes. Talvez como um pai que quer mostrar que mesmo seu filho menos brilhante é muito inteligente. CB

AD 94 pontos

DON MELCHOR 2014

Concha y Toro, Maipo, Chile (VCT R$ 550). 92% Cabernet Sauvignon e 8% Cabernet Franc. Um dos narizes mais minerais de todos os Don Melchor que já degustei. Cinza de lareiras e grafite claros no aroma junto com um perfil floral e de ameixa fresca. Um toque a pedra-pomes e mentol. Em boca, é vibrante em todos os aspectos, com fruta, acidez, taninos potentes e granulados. A mineralidade se expressa com força novamente ao fim de boca, que termina com a textura mineral e salinidade de nenhum outro Don Melchor até hoje. Um final em que o boldo e o mentol atribuem uma outra camada de complexidade. Um vinho em uma jornada transformadora, capaz de mostrar-se desde seus tenros três anos de idade e que espero poder voltar a degustar com 10 anos de idade. CB 

Aproveitamos para elencar outras notas de Don Melchor ordenados pela data de degustação no passado, e que você pode ler na íntegra em nosso site MelhorVinho.com.br:

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