Conheça as diferentes fases que a madeira viveu ao longo da história do vinho
por Por André Logaldi
Os apaixonados por vinhos conhecem a relevância do uso da madeira do carvalho – árvore do gênero Quercus (significa madeira fina em línguas celtas) que predomina na Europa ocidental –, durante o processo de vinificação. Quase todos têm noção de verdades factuais, ou seja, sabem mais o que, ou desde quando acontece, e menos os porquês das fases distintas que a utilização da madeira viveu ao longo da história da bebida.
Integrado como matéria-prima para servir propósitos humanos de armazenamento de bebidas fermentadas, os antigos tonéis de madeira foram usados para que os celtas (os maiores detentores de conhecimento sobre o tema) guardassem suas cervejas. Desde o século I d.C., eles passaram a ser usados com a mesma finalidade para os vinhos, sobretudo quando se fez inexorável o declínio da civilização romana, que valorizava as ânforas.
As conveniências do uso da madeira, tais como leveza, resistência mecânica, facilidades de manipulação e empilhamento e, finalmente, a agilidade no transporte por via naval (por rios ou mares), impuseram-se definitivamente.
Com o armazenamento em tonéis, as observações de pequenos desvios do gosto foram cada vez mais percebidos, sobretudo à medida em que iam se esvaziando os barris. Naturalmente, não havia conhecimento suficiente para entender a essência da transformação, mas instintivamente chegaram à conclusão de que o contato com o ar era prejudicial – e a solução para diminuir essa “contaminação” veio no século XVII com o engarrafamento.
Todavia, o uso da madeira não poderia ser, até o século XVIII, prioritário senão como fonte energética ou para a construção naval, importante à época. A combustão da lenha (de qualquer gênero ou espécie) era o grande combustível da era pré-industrial. Portanto, podemos inferir que a Revolução Industrial no século XIX foi um fator que disponibilizou uma enorme quantidade madeira – que então poderia ser usada para outros fins, já que a concomitante descoberta de novas fontes de energia como o gás natural e o petróleo, permitiram que o desmatamento fosse aplacado.
Centenas de anos foram necessários para que se pudesse notar que a permanência dos vinhos em recipientes de madeira de carvalho (também estudado e definido como a melhor dentre várias outras madeiras, principalmente a castanheira) permitiam consequências favoráveis sobre fatores como a cor, a estabilidade, a limpidez e o sabor.
Mas, no século XIX, após uma segunda grande revolução, a microbiológica de Pasteur – cuja teoria só seria aceita e compreendida após muitas e muitas décadas –, o uso da madeira passou, em função de ambas as revoluções, a ser conduzido sob dois fatores principais: o financeiro e o higiênico. O custo da madeira de carvalho no século XX, além das constantes presenças de desvios causados por contaminação microbiana dos tonéis, levou a uma guinada radical, quando mesmo grandes vinhos passaram a ser mantidos em cubas inertes (então uma novidade tecnológica).
Desapareceram quase por completo alguns odores de mofo que eram facilmente perceptíveis nos vinhos, que, além de tudo, embora parecessem um pouco menos complexos, eram mais fragrantes e frutados.
Os enófilos igualmente vivenciaram, desde o fim do século XX, o que se poderia cunhar como “a era dos extremos do carvalho”: o uso e – como seria de esperar de uma humanidade que vive de empirismos exacerbados – alguns abusos no que tange às principais características da aplicação do amadurecimento em madeira, que são os aportes aromáticos.
Com o apoio de uma crítica especializada que colocava uma preferência nacional (a baunilha, para os norte-americanos) como epíteto de grandeza, todos os esforços tecnológicos pareceram se dirigir para uma qualidade particular do carvalho, em detrimento de outras propriedades fundamentais.
Obviamente, o tempo se encarregou de corrigir isso, não obstante tenhamos que lidar com o enfadonho e tenebrosamente tedioso atraso que os modismos nos impõem de modo cruel e compulsório.
E, no crepúsculo do século XX, já pudemos tomar ciência de novos esforços para que essa pós-modernidade da tecnologia de vinificação se instale finalmente, rechaçando a simplificação da madeira como fator aromático. Qual a grande motivação para isso? A resposta é um termo que todos já estão fartos de ler ou ouvir também: o “vinho de terroir”. Ele, é um produto “da terra” e, como veículo de sua expressão, deve se apresentar no mercado como o “vinho autêntico” que pretende ser.
Assim questiona de modo pertinente o enólogo Clark Smith: “se a apresentação de sabores autênticos ligados a uma dada origem é o nosso principal objetivo como enólogos, então qual é o papel apropriado para o carvalho na vinificação pós-moderna?”
A resolução seria então proscrever seu uso? Não, mas adequá-lo de modo a não mais protagonizar o discurso de um bom vinho.
Modernamente, a enologia tem plena consciência das várias funções que o uso do carvalho pode levar aos vinhos, conforme as intenções comerciais ou culturais dos mesmos. Essas funções vão muito além da adição de aromas ou taninos.
O francês Thierry Lemaire, da Oenodev (empresa de tecnologia e consultoria em vinificação) afirmava que o carvalho era para os vinhos como um cosmético para uma bela mulher: “quando apropriadamente usado, não somos totalmente capazes de dizer se ela está usando ou não”. Ou também dito com felicidade semântica por Jim Concannon, enólogo californiano: o carvalho está para a vinificação “como o alho para o cozinhar: bem utilizado é invisível e levanta os sabores”. Resumindo, a madeira nunca deveria ser o principal ator da peça que o vinho representa.
Dentro da perspectiva moderna de se elaborar grandes vinhos, a madeira de carvalho se presta a corrigir certas imperfeições para que então o verdadeiro vinho (como real expressão de sua origem) possa emergir – especialmente agora que o vinho se tornou mais do que um elemento de prazer pessoal, mas um objeto suscetível a críticas.
Uma meta imprescindível é a evolução harmoniosa de um vinho, englobando seu caráter evocado pelo potencial das próprias uvas utilizadas (varietal ou corte) em integração com os aportes estruturais gerados pelas técnicas de vinificação empregadas.
Uma má adequação entre vinho-madeira pode levar a defeitos mais ou menos graves, como fenômenos de oxidação e aumento de acidez volátil (mais frequentes com uso de carvalho novo do que em barricas usadas), odores parasitas (como o mofo, relacionado a barricas velhas), “ressecamento” do vinho (excesso de madeira), entre outros.
Os riscos de contaminação microbiana são bastante temidos e podem ocorrer em barricas novas ou usadas, sob presença ou ausência de oxigênio, em geral, em função da temperatura. Vinhos alterados têm sido descritos por seu caráter rico em certos compostos fenólicos de odor desagradável. No caso dos tintos, o etil-fenol, com aromas de estábulo, ou aromas farmacêuticos; e, dos brancos, o vinil-fenol, com aroma de tinta guache. São hoje chamados de “phenolés” e bastante frequentes em vinhos que rejeitam os sulfitos como agente estabilizador.
Há grandes vinhos que prescindem do uso de madeira nova durante sua maturação. Outros se beneficiam dos “extrativos de carvalho” (termo que engloba todos os componentes trazidos pela madeira: compostos fenólicos – taninos – e aromáticos). Somente grandes vinhos, ricos em estrutura podem suportar o uso de 100% de carvalho novo. A maioria dos demais pode ser melhor manejada mesclando barricas novas, usadas e tanques em seu processo de vinificação.
Mas vale lembrar que as várias influências do carvalho sofrem grandes modificações conforme os estilos de vinhos que vão surgindo, sobretudo quando tomamos ciência das novas e velhas vertentes filosóficas, que ora colocam o vinho como um fim em si próprio e, em outras, que o utilizam como meio de uma expressão maior, no caso dos “terroiristas”.
A presença ou ausência de madeira em um vinho não determina sua qualidade intrínseca e seu uso é condicionado por variantes que vão do cientificismo, do empirismo, da tradição, de expressões culturais (passíveis de serem admitidas universalmente ou não) e até mesmo da moda. Seja como for, o fato é que o mundo da fermentação das uvas viníferas continua borbulhante.
Outra simplificação que reina para que se possa assimilar o tema sobre carvalho é o fato de dividi-los em francês e americano e incluir todos as suas características mais evidentes como singulares. Isso é a verdade parcial.
As maiores qualidades de um carvalho são relativas a três pontos: grau de porosidade (quanto menos poroso melhor), aporte de fenóis (taninos) e seu perfil aromático. A noção de terroir também é válida para os carvalhos. A origem, bem como a espécie do carvalho são insuficientes para se determinar o seu máximo potencial qualitativo. Este sendo variável de acordo com a idade das árvores, zona de produção, orientação espacial, latitude da floresta, tipos de solos etc.
Pode-se elencar as principais informações generalistas e suas respectivas exceções:
O carvalho americano é mais poroso do que o europeu (verdade para a maioria, falso para o carvalho do Missouri, com porosidade similar aos mais nobres europeus).
O carvalho europeu é menos poroso e de qualidade superior (verdadeiro para Allier, Tronçais e Vosges; falso para o carvalho de Limousin).
O carvalho francês é o mais nobre do continente europeu (verdadeiro para os acima citados, entretanto há carvalhos sésseis de grande qualidade para vinhos em florestas da Alemanha, Lituânia e Polônia).
Apesar de muito difundido, sobretudo no norte-nordeste da Itália, o carvalho esloveno tem qualidade intermediária e é frequentemente confundido com o carvalho da Eslavônia, de qualidade superior e que é território da Croácia, e não da Eslovênia.
Florestas da Hungria (madeira usada por vários produtores de Bordeaux), Canadá e Costa Rica possuem carvalhos cujas qualidades são interessantes para os vinhos.
Entretanto, desde sua classificação, os tipos de carvalho já são bastante confusos. Por exemplo, como última generalização, não é verdadeiro que o carvalho branco americano seja de outro gênero diferente do carvalho francês. Ambos são espécies de um mesmo subgênero, mas sim, com traços diferentes no que são capazes de oferecer aos vinhos em termos de aporte de taninos e aromas – fatores que variam quantitativamente (e na qualidade percebida também). Por exemplo, os carvalhos sésseis, principal espécie europeia de grande qualidade, também confere as notas de baunilha (metil-octolactonas), porém em quantidades inferiores aos norte-americanos.