A bebida vinífera serve como inspiração para as obras deste importante personagem da história romana
por Por Arnaldo Grizzo
No teu ventre transportas o lamento e o riso, as disputas e os loucos amores. Com doçura, persuades os aborrecidos, afrouxa os rígidos, tiras os segredos daqueles que se consideram sábios; eles deixam escapar suas dúvidas e medos com uma risada e uma piada. Devolves a esperança às mentes perturbadas. Tornas audazes os pobres, para que eles não temam ante os reis e nobres, e soldados empunhando armas.
É dessa forma que o poeta romano Horácio define o vinho em sua “Ode a uma ânfora de vinho”, apenas uma de suas inúmeras citações à bebida em sua obra – que influenciou futuras gerações de artistas e filósofos, especialmente do Iluminismo e Academismo.
Quintus Horatius Flaccus viveu do ano 65 até 8 antes de Cristo, em um dos momentos decisivos da história da Roma Antiga. Na época, passava-se da república para o império sob o comando de César Augusto, primeiro imperador e sobrinho-neto de Júlio César. Horácio nasceu na cidade de Venosa, na região da Basilicata, entre a Puglia e Campania, uma rota comercial importante no sul da Itália.
Ele era filho de um escravo liberto, que foi capaz de lhe proporcionar uma boa educação na capital romana. Aliás, mais tarde Horácio faria um tributo a seu pai por ter lhe dado a oportunidade de estudar – “ele merece de mim gratidão generosa e louvor. Eu nunca poderia ter vergonha de tal pai, nem sinto qualquer necessidade, como muitas pessoas fazem, de pedir desculpas por ser filho de um liberto”.
Aos 19 anos, ele seguiu para Atenas estudar na famosa Academia de Platão, onde teve contato com o epicurismo e o estoicismo, além de ter feito amizade com diversos poetas. Lá, acabou recrutado pelo exército republicano de Roma, mas, ao perceber que a causa não triunfaria, especialmente após a Batalha de Filipos, da qual Horácio se envergonha ter participado e saído correndo sem seu escudo. Depois disso, ele fugiu de volta para a Itália. No entanto, as terras de seu pai haviam sido confiscadas e, com isso, arrumou um emprego como escriturário.
Nesse tempo, conheceu o poeta Virgílio, que o introduziu ao círculo de Caio Cílnio Mecenas, amigo e conselheiro de Otaviano, que se proclamaria o imperador César Augusto. Logo, Horácio passou a fazer parte do grupo de poetas patrocinados pelo império, juntamente como Propércio, Cornélio Galo, Tibulo, Ovídio, além de Virgílio, obviamente, entre outros. Não à toa, o nome Mecenas até hoje é sinônimo de patrono das artes.
Certamente os trabalhos mais famosos de Horácio são suas Odes. Em quatro livros de poemas líricos curtos, ele versa sobre os mais variados temas como amor, amizade, vinho, religião, a moral, patriotismo etc. Mas, diversos deles são, na verdade, elegias a Augusto – seu protetor.
Sua célebre ode “Nunc est bibendum” (“Agora é hora de beber”), por exemplo, exalta a conquista de Otaviano sobre Marco Antônio e Cleópatra e ainda cita duas famosas bebidas da época, o Caecuban – considerado o melhor vinho da antiguidade –, e o Mareótico, um clássico vinho do Egito.
O vinho, aliás, era um tema recorrente em seus poemas, muito devido à filosofia epicurista no qual eles estavam impregnados. Horácio, por sinal, cunhou um dos lemas que ficariam ligados ao epicurismo, o Carpe Diem – aproveite o dia –, também em uma de suas odes: carpe diem, quam minimum credula postero (aproveite o dia, confia o mínimo possível no amanhã).
E mesmo nesta ode, o vinho está presente. Ao dizer que o inverno (metáfora para a morte) se aproxima, o poeta sugere: “Mostre sabedoria, beba o vinho”. A bebida ajuda a aceitar a imprevisibilidade e inevitabilidade da morte fazendo com que nos comprometamos com o presente. Assim, dentro da filosofia epicurista, o vinho representa a libertação das contingencias do passado e do futuro; tornando-se um símbolo desse comprometimento com o presente. Para o poeta, a vida não é apenas uma dádiva, mas um chamado, e a imortalidade, uma dimensão do “eterno presente”.
Segundo a doutrina do filósofo Epicuro de Samos, deve-se procurar os prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo. Assim, em suas odes, Horácio exalta o efeito libertador do vinho. A bebida dá coragem, eloquência, destreza etc. Baco, o deus do vinho, aparece como uma figura que fomenta a paz e a harmonia – diferentemente de sua versão de encarnação violenta, mais comum até então. O mesmo vale para o deus Liber, também ligado ao vinho.
Assim, Horácio conclama a harmonia dos simpósios. Vale lembrar que este termo grego significa “beber juntos”. Na época, eles eram festas regadas a muita bebida. O poeta está sempre convidando para banquetes e, para ele, deixar o vinho trancado na adega é um dos símbolos do insucesso de alguém em se comprometer com o presente. A vida é um banquete, que deixamos ao morrer. Para o poeta, o vinho é um símbolo de humanidade, sendo a conexão entre o terreno e o divino.
Horácio teria aceitado a “intoxicação” como substituta da inspiração para a sua escrita. No entanto, mais do que apenas usar o vinho como ferramenta, ele teria sido um grande conhecedor da bebida. Diversos dos vinhos citados em seus poemas foram posteriormente catalogados e citados por historiadores romanos.
Ele certamente teve contato com alguns dos melhores vinhos de sua época graças aos seus patronos: Mecenas e Augusto. Nas odes em que eles são retratados, ou então são a eles dedicadas, são citados diversos “rótulos” importantes do período romano como o Falerno, o Caecuban, o Mássico, o Caleno, o Albano, o Formian etc.
O Falerno era considerado um “Grand Cru” de sua época. Originário do Monte Falernus, na Campania, era um dos vinhos preferidos da alta sociedade romana. Provavelmente era um vinho branco doce, mas acredita-se que tenha tido versões secas (austerum) e “leves” (genue) – segundo relatos do historiador Plínio. Horácio, por sua vez, classifica o Falerno como “ardens”, “forte” e “severum”, ou seja, ardente, potente e intenso. Falerno era tão famoso que acredita-se que tenha sido o primeiro vinho a ser falsificado na história. Depois desses anos de sucesso, contudo, desapareceu. Mais recentemente, “reapareceu” na DOC Falerno del Massico (ADEGA já dedicou um artigo ao vinho de Falerno em sua edição de número 100).
O Caecuban, por sua vez, é considerado o melhor de todos os vinhos italianos segundo Plínio. Este branco viria de uma região costeira do Lácio, entre Terracina e Fondi, ao sul de Roma, e seria mais suave do que o Falerno. Horácio cita-o em diversas passagens e, em duas delas, denota-se sua importância: na celebração da vitória sobre Cleópatra e no convite a Mecenas para um brinde (o poeta coloca o Caecuban acima do Falerno, do Caleno e do Formian). O vinho, porém, acabou sendo extinto quando Nero decidiu criar um canal fluvial na região.
O Mássico também vem da região do Lácio, mais precisamente do Monte Mássico. Horácio o menciona como “envelhecido” (vetus), “maduro” (lene merum), doce e como sendo causador de esquecimentos. Acredita-se que, devido à proximidade com a região onde era produzido o Falerno, o Mássico tenha lentamente desaparecido quando os produtores assumiram o nome mais famoso e mais “vendável” de Falerno. Aliás, alguns historiadores acreditam que o Falerno pode ter abrangido outras áreas vizinhas como as dos vinhos Caleno e Statan.
O Caleno, citado por Horácio, vinha da cidade de Cales, não muito distante do monte Mássico. Era tido como um vinho “saudável”, de digestão mais fácil, “ligeiro”, segundo o historiador grego Ateneu. Da região costeira próxima vem o Formian, que não era considerado tão bom quanto os outros, pois amadurecia mais rápido e era mais “oleoso”. Próximo dali também vinha o Surrentino – acredita-se que da região da cidade de Sorrento, ao sul de Nápoles –, também um vinho “menor”, que não “afetava a cabeça”, de acordo com Plínio.
Já outro grande vinho romano era o Albano, vindo da região das Colinas Albanas, um complexo vulcânico 20 quilômetros ao sul de Roma, onde hoje está o Castelgandolfo, residência papal, e também próximo da região dos vinhos Fracasti. Plínio descreveu o Albano como “extremamente doce e ocasionalmente seco”, além de ser melhor apreciado quando envelhecido. Em suas odes, Horácio cita que daria um Albano de nove anos como presente de aniversário para Mecenas.
Horácio, porém, não tinha acesso somente os vinhos italianos, mas também aos gregos. Ele cita o vinho de Coan, que era produzido na ilha grega de Kos e conhecido por sua salinidade. Segundo Plínio, este vinho teria surgido de forma acidental quando um escravo adicionou a água do mar ao mosto para conseguir atingir a sua cota de produção. Esse estilo logo se tornou famoso e foi imitado até mesmo na ilha de Rhodes.
Outros vinhos citados por Horácio são os das ilhas Chios e Lesbos. O Chios teria sido o primeiro vinho tinto produzido, segundo a mitologia, e era chamado de “vinho negro”. Estes vinhos eram raros e caros em Roma, e eram prescritos em pequenas quantidades para propósitos medicinais. Horácio, em suas Sátiras escreve, que um rico personagem serviu esse vinho em um jantar extremamente suntuoso. Já o vinho de Lesbos chega ser mencionado até mesmo por Homero e competia de igual para igual em fama com vinho de Chios. O mais renomado era o Pramnio, mas Horácio cita o Methymnaean, de Metímna, a principal cidade de Lesbos. O poeta romano descreve os vinhos da ilha como “inocentes” (innocens).
No entanto, apesar de apreciar os melhores vinhos de sua época, Horácio também bebia alguns vinhos mais simples. Um deles era o egípcio Mareótico. Mesmo sendo um branco aclamado em seu país de origem, sendo uma das bebidas de Cleópatra, o poeta romano o despreza dizendo que ele causava delírios.
Outro vinho considerado simples era o Sabino, produzido na região da Sabina (próxima de Roma), terra do povo sabino, de quem Horácio provavelmente descendia. Após escrever seu primeiro livro de Sátiras, o poeta recebeu de presente de seu patrono, Mecenas, uma vila na região, que ficou conhecida como Vila de Horácio, perto da cidade de Licenza. O vinho da região era considerado barato, áspero e ácido. Horácio chega a descrevê-lo como “desprezível” (vile). Ainda assim, ele o oferece a Mecenas, alertando-o, porém, de que era um vinho inferior aos de Falerno e Caecuban. Desde 1996, a região possui uma DOC chamada Colli della Sabina.
E, por mais que um vinho não fosse tão bom, ainda assim, para Horácio, ele certamente valia a pena ser sorvido, pois, segundo ele, “nenhum poema escrito por um bebedor de água pode agradar por muito tempo”.