Cordeiro e vinho, um casamento sagrado

Confira as versões de ADEGA para uma das harmonizações mais clássicas da história da humanidade

por Marcelo Copello

fotos: Geraldo Garcia
Paleta de Cordeiro de Leite Braisé, Polenta Cremosa e Mini Legumes
Um dos animais prediletos para sacrifício nas religiões do mundo antigo, o cordeiro também se tornou um símbolo da eucaristia cristã. Entre os gregos e os hititas, o cordeiro branco era oferecido ao deus Sol. Na astrologia é o símbolo de Áries, o primeiro signo do Zodíaco, de sol e fogo, cheio de força e iniciativa. A palavra cordeiro, em nosso vernáculo, também tem o significado de pessoa cândida e pacífica, um "cordeiro de Deus". #R#

Fica fácil entender porque a carne do cordeiro e o vinho proporcionam um casamento quase tão natural quanto antigo. Mas a afinidade não é apenas pelo simbolismo religioso dos dois manjares. Também chamado de borrego, em Portugal, cordeiro é o filhote de carneiro, assim considerado até um ano de idade. Sua carne é macia, entremeada de gordura, menos fibrosa que a carne de boi e de sabor mais intenso, com perfil aromático mais rico e etéreo.

Buscamos, no "Enogourmet" deste mês, mostrar duas preparações de cordeiro, uma mais delicada e outra mais estruturada, com as duas partes mais valorizadas do animal, a costeleta e a paleta, para testar uma ampla gama de tintos possíveis com cada receita. Para as costeletas escolhi um Pinot Noir, o tinto leve por excelência, um elegante Bordeaux de médio corpo (a combinação mais clássica) e um vinho mais robusto, com toda a seiva e complexidade do Douro. Para a paleta, as opções foram: outro Bordeaux, para o casamento clássico, um Rioja, com muito tempo em madeira e doçura de taninos, e um musculoso Sangiovese.

fotos: Geraldo Garcia
Costeleta de Cordeiro em Crostas de Amêndoas

Para criar os pratos dessa missão quase sagrada convocamos um alsaciano, que chegou ao Brasil em 1989 para se tornar um dos nomes mais admirados e respeitados do cenário brasileiro de alta gastronomia. Christophe Lidy é o chef do restaurante Garcia e Rodrigues. Testemunharam esta epifania gastronômica: Daisy Santos (administradora), Mary Caminha (Diretora da My Magnet Ímãs e Decorações), Norton Luiz Lenhart (Presidente da Federação Nacional de hotéis e restaurantes), Rodrigo Ganem (Diretor de Criação da Agência Eurofort Comunicação) e Sérgio Queiroz (Diretor de Marketing Institucional da Editora JB).

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A TEORIA por Guilherme Corrêa*

Nunca fui um entusiasta da escola do varietal matching, que preconiza que a escolha de um vinho para harmonizar com uma determinada receita deve ser feita de acordo com a variedade de uva predominante na bebida. Esta visão simplista da enogastronomia é partilhada por alguns profissionais americanos com outros adeptos mundo afora. O maior problema que vejo neste tipo de abordagem é que me parece totalmente impossível generalizarmos as características sensoriais de uma casta, forçosamente ela irá refletir o meio-ambiente de origem e a assinatura impressa pelo enólogo, em maior ou menor escala. Como poderemos nos referir a "um Chardonnay" quando esta uva pode gerar vinhos espumantes, brancos leves e frescos, assertivos e minerais, gordos e acarvalhados?

Apesar disto, se existe uma carne para a qual eu ousaria propor uma harmonização por varietal, esta seria a de cordeiro. É lógico que depois de eleita a casta, eu partiria para uma sintonia fina segundo os critérios do método de concordânciacontraposição da "Associazione Italiana Sommeliers". Mas que os aspectos gusto-olfativos e de textura da Cabernet Sauvignon (também cortada com as suas colegas de Bordeaux) proporcionam normalmente um belo casamento com a carne ovina, isto é inegável! Creio que a ibérica Tempranillo também tenha esta vocação, sobretudo os exemplares mais robustos e complexos. Independentemente da maneira de preparação do prato, uma série de outros vinhos encorpados de diversas uvas e regiões também podem triunfar, desde que seu caráter não seja subjugado pela aromática gordura do cordeiro.

Neste nosso desafio, teremos na abertura uma receita menos estruturada de cordeiro, as costeletas em crosta de amêndoa, cebolinha, uva e limão confit, escoltada por três vinhos de níveis ascendentes de potência, começando pelo Crimson Pinot Noir, passando pelo Château Le Puy e chegando ao Quinta da Gaivosa. Sairá na frente o vinho que se equiparar melhor ao "volume" do prato. Esta não parece ser uma preparação que prima pela untuosidade, no máximo ostentará um pouco de suculência, de modo que serão desnecessários taninos muito aparentes e enxugadores no vinho, eles até poderão se chocar com a tendência ao doce (ou doçura propriamente dita) da crosta proposta pelo chef. O sucesso dos três dependerá da sua interação com o invólucro das costeletas.

A paleta de cordeiro de leite braseada, método de cocção composto que emprega uma fase rápida de calor seco e outra longa de calor úmido, por outro lado, é o tipo de prato que tende a valorizar qualquer vinho de caráter, winefriendly ao extremo. Adoro degustá-la com um cru bourgeois, como o Castera, mas acredito que me emocionaria ainda mais com os taninos amanteigados de um Rioja da escola tradicional, feito o Ygay, que encontrará também na tendência ao doce da polenta e dos legumes o aconchego para a sua inexorável acidez. Um Sangiovese adolescente e enérgico como o Ronco dei Ciliegi irá impor demais o seu caráter, e embora a convivência com o prato seja possível, a conversa poderá ser um pouco exaltada e unilateral.

* atual campeão brasileiro de Sommeliers

fotos: Geraldo Garciafotos: Geraldo Garcia
Chef em atividadeDetalhe do restaurante

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A PRÁTICA

"Costeletas de Cordeiro em Crostas de Amêndoas, Cebolinha, Uva e Limão Siciliano Confits"

Este prato nos lembrou que devemos combinar o vinho com o prato completo, sem esquecer dos acompanhamentos. A cebolinha, uva e cia, agregaram doçura ao conjunto que certamente influiu na escolha do vinho. O Crimson Pinot Noir foi unanimemente rejeitado por todos, como sendo um vinho agradável, mas sem o perfil e a estrutura para encarar o cordeiro. Para a Daisy e o chef Christophe, o Château Le Puy, com sua elegância, complexidade e corpo médio, foi o que melhor harmonizou. Esta também teria sido a minha escolha, não fosse a doçura do acompanhamento, que para meu paladar não se deu bem com os taninos secos do Bordeaux. Para os demais, Mary, Sérgio, Rodrigo, Norton e eu, o Quinta da Gaivosa, por seu maior corpo e doçura de taninos conseguiu se impor e domar a receita.

"Paleta de Cordeiro de Leite Braisé, Polenta Cremosa e Mini Legumes".

A paleta derretia na boca. De um modo geral, os três tintos encantaram e dificultaram a escolha. O Castillo Ygay, por seu perfil muito madeirado e de perfume quase doce, despertou paixão de alguns e estranheza em outros. Na escolha do melhor casamento, as opiniões foram bastante divididas. Para Rodrigo e Christophe, o Château Castera foi o mais adequado, por seu equilíbrio e taninos secos, que enxugaram bem o palato. O Ronco dei Ciliegi, com sua força, falou mais alto para Sérgio, Norton e Daisy. Mary encantou-se com a exuberância olfativa do Rioja e não se incomodou com a presença marcante do carvalho. Para mim, mais uma vez, o acompanhamento foi o fiel da balança, pois a polenta agregou doçura e cremosidade ao conjunto. Com a carne apenas, o Bordeaux se mostrou o mais adequado, enquanto o Rioja deixou madeira no fim de boca e o Sangiovese sobrava em taninos. Com a polenta somada a paleta, o Rioja, com seus taninos amanteigados, reinou abosoluto.

Aprendi algumas lições. Além de nunca esquecer que o acompanhamento é parte importante do prato, também é bom lembrar que fatores psicológicos influenciam bastante. Rótulos famosos ou garrafas de alto preço impressionam e cativam, pois de certa forma valorizam quem as bebe. Algumas pessoas também dão preferência a vinhos de seu país ou região natal, por exemplo, ou a vinhos que remetam a alguma memória afetiva. Isso tudo influi na escolha do vinho ideal para uma harmonização. Afinal, quando degustamos um bom vinho não bebemos apenas o líquido, mas também degustamos, em toda a amplitude, a palavra "cultura".

fotos: Geraldo Garcia
Vinhos da noite

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OS VINHOS

Para as Costeletas de Cordeiro em Crostas de Amêndoas

Crimson Pinot Noir 2006, Ata Rangi, Marlborough-Nova Zelândia (Premium, R$ 95). Uma novidade que acaba chegar ao mercado. Pinot Noir 100% com breve passagem por carvalho. Vermelho rubi-violáceo. Aromas de frutas maduras, cerejas, ameixas, com toques vegetais e leves animais, típicos da casta. Paladar leve, taninos doces, com maciez pronunciada, 13,5% de álcool, acidez vívida. Um vinho agradável, mas sem pretensões.

Château Le Puy 2001, Côtes-de- Francs, Bordeaux-França (World Wine, R$ 190). Um Château muito antigo, que produz desde 1610. Utiliza técnicas de agricultura orgânica biodinâmica, sem nenhum tipo de produto químico. 85% Merlot, 14% Cabernet Sauvignon e 1% Carmenère, Cor vermelho granada claro com reflexos alaranjados. Aroma de médio ataque, ainda um pouco fechado, muito fino e complexo, frutas vermelha, toques florais, goiaba, couro, trufas, especiarias. Paladar de médio corpo, excelente acidez, os taninos muito finos, ainda presentes no fim de boca, dão um toque seco ao conjunto, longo. Este vinho tem fama de ser muito longevo. Este 2001 mostra que esta apenas começando sua vida.

Quinta da Gaivosa 2000, Domingos Alves de Souza, Douro-Portugal (Decanter, R$ R$ 193,10). Um dos grandes vinhos do Douro, elaborado pelo craque Anselmo Mendes a partir de vinhas velhas, de mais de 70 anos de idade, com mais de 60 castas diferentes (Tinta Roriz, Touriga Franca, Tinto Cão, Touriga Nacional e outras). Vermelho granada muito escuro. Aroma potente e denso, com frutas muito maduras, couro, feno, ervas, menta, madeiras e especiarias. Paladar de grande estatura e elegância, largo no meio de boca, com taninos presentes, acidez correta, longo.

Para a Paleta de Cordeiro de Leite Braisé

Château Castera 2000, Cru Bourgeois, Médoc-Bordeaux-França (Terroir, R$ 198). Uma safra excepcional no Médoc. Este Château manteve-se como Cru Bourgeois na reclassificação de 2003. Vermelho granada entre claro e escuro. Aromas de frutas negras (amoras), especiarias como canela, alguns tostados. Paladar de médio a bom corpo, taninos finos ainda presentes, boa acidez típica dos Bordeaux. Está pronto mas pode ser guardado. Conjunto muito típico, elegante e harmonioso.

Ronco dei Ciliegi 2001, Castelluccio, Emilia Romagna-Itália (Interfood, R$ 168). Elaborado com 100% Sangiovese, amadurecido por 12 meses em barris 40% novos. Cor rubi muito escuro, com reflexos na transição violeta e entre granada. Aromas potentes onde as frutas negras muito maduras prevalecem, seguidos de especiarias (alcaçuz, baunilha), frescor de menta. Paladar encorpado e aveludado, conjunto tende a maciez dos 13% de álcool e doçura dos taninos (bem presentes), sem deixar de ser volumoso.

fotos: Geraldo Garcia
A adega

Castillo Ygay Gran Reserva Especial 1998, Marques de Murrieta, Rioja- Espanha (Expand, R$ 330). Elaborado com 85% Tempranillo, 13% Mazuelo e 2% Garnacha, amadurecido por 41 meses em barricas de carvalho parcialmente novas. Cor granada-alaranjado entre claro e escuro. Aromas muito ricos e finos, onde um trabalho de madeira de alta qualidade dá o tom, envolvendo aromas de ameixas, cerejas, frutas secas, muitas especiarias, tostados, coco queimado, baunilha, caramelo, tabaco. Paladar com boa profundidade, doçura dos taninos aparecem, com 13% de álcool. Um autêntico Rioja, que ainda deve evoluir muito em garrafa.

TABELA DE AVALIAÇÃO
ESTRELASCLASSIFICAÇÃOPONTOS
Extraordinário ( de 95 a 100 pontos)
(93 a 94)
Excelente (90 a 92)
(88 a 89)

Muito Bom

(85 a 87)
(83 a 84)
Bom (80 a 82)
(76 a 79)
Médio (70 a 79)(70 a 75)
-Fraco (50 a 69)(50 a 69)
= Beber
= Beber ou Guardar
= Guardar
OBSERVAÇÕES
= BEST BUY - Melhor custo-benefício
Preços aproximados no varejo, sujeitos à variação.

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