Escola do Vinho

Do outono ao verão: entenda o ciclo das videiras que dá vida aos grandes vinhos

Veja como cada estação influencia no vinhedo e no vinho

por Redação

Acredita-se que a origem das videiras seja asiática, embora o cultivo tenha seus primórdios melhor documentados no Egito

Para os vinhos, então, o ciclo evolutivo de uma videira ao longo do ano será, em geral, determinante de sua qualidade. Afinal, como sabemos bem, é possível fazer maus vinhos de boas uvas, mas é impossível fazer bons vinhos de uvas ruins.

Vivendo em centros urbanos a maioria das pessoas só se dá conta da mudança das estações ao abrir o armário para pegar um casaco ou um maiô. Mas, na agricultura, as estações ditam o tempo de cada planta, assim como o relógio aponta nossos compromissos diários.

Entender esse processo, que é objeto de estudo de muitos cientistas do vinho, além, é claro, dos agrônomos e dos enólogos, exige que saibamos alguns detalhes biológicos antes de mergulharmos no calendário da vinha.

Uma videira é uma planta arbustiva da família das vitáceas. São muitos os gêneros que espalham-se por todo o mundo, e a ciência acredita que sua origem é asiática, embora o cultivo da videira para fazer vinho tenha origens mais bem documentadas no Egito. Para a maioria das pessoas, as duas espécies mais conhecidas são a Vitis vinifera e a Vitis labrusca (ou americana). Outras espécies também são utilizadas para consumo in natura e para fazer vinhos, mas a prática de séculos levou à conclusão de que as mais adequadas para a produção de vinhos finos são as Vitis vinifera, em sua maioria de origem europeia.

A grande diferenciação que se faz entre essas espécies é a de que a vinífera produz mais açúcar e taninos, componentes essenciais na produção de álcool e na preservação das características do vinho, respectivamente. 

Quando se pretende começar a cultivar um parreiral, é necessário fazer uma pesquisa de solo e de clima 

Implantando um Vinhedo

Quando se pretende começar a cultivar um parreiral, é necessário fazer uma pesquisa de solo e de clima para saber se eles são favoráveis ao cultivo das uvas - da mesma forma que não se plantam mangueiras no Canadá ou arbustos de framboesas na Costa do Marfim. Produzir pode até ser possível, mas o clima será determinante na qualidade da fruta.

O conceito de terroir (solo, clima e trabalho humano) aqui aparece antes mesmo de se começar a plantar. É possível que sejam necessárias algumas correções de solo, agregando ou tirando nutrientes e, principalmente, identificando o regime de chuvas.O enólogo Márcio Brandelli, que plantou há menos de um ano um novo parreiral dentro do Vale dos Vinhedos, explicou que, mesmo estando em uma região muito estudada e reconhecidamente favorável ao plantido de viníferas, o trabalho que fez em sua pequena propriedade foi grande. "Chove muito aqui no Vale, em uma época crucial para o amadurecimento das uvas, então tive uma preocupação grande com a drenagem do solo, criando espaços para que a água não forme poças no vinhedo", explicou Brandelli.

O tempo necessário para que uma videira produza frutos que poderão ser fermentados em vinho é de, no mínimo, três anos

O contrário do que acontece no vinhedo de Márcio Brandelli é a realidade de grande parte do Chile, onde as chuvas são escassas, assim a única forma de cultivar boas frutas é irrigando artificialmente, o que aumenta o custo da implantação de um vinhedo, mas permite um controle extremo do que a planta precisa.

O tempo necessário para que uma videira produza frutos que poderão ser fermentados em vinho é de, no mínimo, três anos, desde seu plantio.

Os especialistas apontam que os vinhos começam realmente a mostrar suas características depois que a planta tem cinco anos e, daí em diante, começam a ficar mais consistentes e apresentar melhor as características daquele terroir.

Outono

O ciclo anual da parreira, uma planta perene, inicia-se logo após a colheita, entre final de março e começo de abril para a maioria da regiões brasileiras. Variações podem ocorrer por conta das temperaturas, como é o caso de Santa Catarina, onde a colheita começa mais tarde e o novo ciclo pode, em alguns lugares, iniciar-se somente em maio.

O ciclo anual da parreira inicia-se logo após a colheita. O primeiro sinal é a mudança de coloração nas folhas

Para o restante do Novo Mundo do vinho (abaixo do Equador), quase toda a colheita ocorre no começo do outono, com exceção das uvas brancas em algumas regiões. Então, podemos considerar que o novo ciclo da videira se inicia no final do outono, começo do inverno.

O primeiro sinal externo é a mudança de coloração das folhas. "Solos diferentes também produzem folhas de cores diferentes, mas, em geral, o verde se empalidece e algumas variedades adquirem um tom avermelhado, até ferrugem", explica Brandelli. Isso ocorre, pois a planta já começa a guardar energia quando percebe a mudança da estação, que implica - nessa época - em menos horas de sol.

A fenologia, que é o ramo da ecologia que estuda os fenômenos periódicos dos seres vivos e suas relações com as condições do ambiente (tais como temperatura, luz, umidade), ajuda os vinhateiros a entender e atuar de forma mais precisa nos variados estágios do ciclo anual de uma parreira. Assim, através da análise dos dados ambientais e da observação da planta, sabe-se que, nesse período, ela entra em dormência pela diminuição do chamado "fotoperíodo".

No inverno, a planta reduz a um mínimo necessário a seiva que corre dentro dela 

Inverno

Essa é a estação mais silenciosa e discreta em um vinhedo. A planta reduz a um mínimo necessário a seiva que corre dentro dela e, por não enviar essa seiva para as extremidades, as folhas caem e os galhos mais delicados secam.

Engana-se, no entanto, quem pensa que a videira é uma planta frágil. Ela pode suportar temperaturas muito baixas (até mesmo negativas) nesse período de dormência, sem que isso afete seu ciclo ou sua capacidade de produção futura.

É durante o inverno que os agrônomos e enólogos vão decidir o que vão querer dessa planta para a próxima safra. "Cada vinícola tem uma filosofia de trabalho e escolhe seu estilo de poda já pensando em quantos cachos vai querer que venham para a próxima colheita", conta a engenheira agrônoma Roberta Boscato, da vinícola que leva seu sobrenome em Nova Pádua. Ela também explica que o momento de fazer a poda seca (ou hibernal) também é uma decisão de cada vinícola. Na Boscato, o período do póscolheita é o momento de observar a formação das gemas (que serão as responsáveis pela formação dos brotos e dos cachos) e de selecionar os sarmentos (galhos que suportam as gemas), sendo que esses sarmentos são sempre selecionados já visualizando a colheita de dois anos mais tarde e não somente a do ano seguinte.

A poda seca tem alguns objetivos, como limitar o número de gemas para regularizar e harmonizar a produção e o vigor (não expondo as videiras a excessos de produção que podem comprometer a qualidade da uva), uniformizar a distribuição da seiva para os diferentes órgãos da planta e proporcionar a ela uma forma determinada que se mantenha por muito tempo e que facilite a execução dos tratos culturais.

O chamado 'choro da videira' é o anúncio da primavera

Primavera

O silêncio do inverno no parreiral começa a ser quebrado pela discreta aparição de lágrimas. O chamado "choro da videira" é o anúncio da primavera. Isso quer dizer que o aumento da temperatura e a alteração das horas de sol do dia fazem com que a seiva volte a circular com força dentro da planta, através da raiz e do caule, subindo para os galhos podados.

A poda seca, quando feita somente nesse período final do inverno, estimula a planta a pegar a seiva das raízes e fazê-la circular até as extremidades. A seiva, rica em nutrientes do solo (como nitrogênio, fósforo e potássio) será a garantia de que a planta terá como se sustentar daí em diante. Os agrônomos, nessa fase, precisam estar atentos para que a vinha esteja recebendo os nutrientes de que precisa, pois solos mais áridos são mais pobres em nutrientes e algumas correções podem ser necessárias. No entanto, o excesso de nutrientes pode resultar em plantas vigorosas e bonitas, mas em frutos pouco concentrados e debilitados, além de maior chance de pragas.

Na primavera, as videiras começam a brotar de acordo com as cepas, algumas são mais tardias e só romperão as gemas no final de setembro/outubro, outras são mais precoces e o final do inverno, de algumas regiões, já traz o espetáculo dos verdes claros e muito vivos dos brotos irrompendo nos galhos marrons.

A poda verde ou desbaste 

A beleza, no entanto, vem acompanhada de preocupação para os vinhateiros. Na poda seca, eles já praticamente determinaram sua produção do próximo ano, e alguns rigores da natureza (como uma geada de primavera) podem comprometer essa delicada fase e toda a produção que está por vir. 

O contínuo e crescente aquecimento do solo também favorece o aparecimento de pragas, que muitas vezes coincidem com a época da floração. Bela e delicada, essa fase dura cerca de 20 dias e, em condições ideais de sol e brisa, fica garantida a polinização das flores, a fertilização e a fixação dos frutos.

Chuva pesada, geada, ventos fortes ou (pior dos piores) granizo são pesadelos recorrentes nessa época. Mesmo no Brasil, de vitivinicultura tão jovem, já são utilizadas telas protetoras nas áreas mais altas de Santa Catarina, braseiros estrategicamente colocados no meio dos vinhedos (como nos Estados Unidos), que mantêm a geada à distância e outras defesas mecânicas que visam minimizar os riscos para a colheita.

No final de janeiro acontece a 'pinta', ou seja, o início da mudança de cor dos grãos das uvas tintas

Verão

Já é possível ver os pequeninos frutos quando o verão se aproxima (os cachos embriões), que irão se desenvolver muito lentamente e precisam de bastante insolação. Nessa época, começam algumas podas delicadas, que objetivam tirar o excesso de folhas e permitir a passagem da luz.

Também são necessárias pulverizações de defensivos agrícolas (para os que se permitem fazer uso dessas práticas), para diminuir a propagação de um fungo (popular ao redor do globo) chamado de míldio, que é estimulado pelo tempo quente.

Enquanto cada pequeno bago começa a se expandir e ganhar o formato dos grãos de uva, o verão segue lentamente aquecendo o solo, e o produtor já consegue ter uma ideia mais precisa, senão da qualidade, ao menos da quantidade da safra. No estágio seguinte, os grãos deixam a textura dura da fruta jovem e começam a amaciar, preparando-se para o amadurecimento.

Alguns viticultores escolhem, então, fazer uma poda verde ou um desbaste (raleio). Esses procedimentos visam não somente permitir a passagem de ar e de sol através da remoção das folhas, como também alguns pequenos cachos serão arrancados, fazendo com que os nutrientes se concentrem nos cachos restantes.

É uma época delicada, em que o excesso de chuvas (e principalmente a persistência da umidade) podem literalmente diluir o açúcar das uvas, a concentração de polifenóis e favorecer o aparecimento de doenças fúngicas.

Em geral, no final do mês de janeiro acontece a "pinta", ou seja, o início da mudança de cor dos grãos das uvas tintas, isso significa que, através de uma série de processos bioquímicos, as uvas estão aumentando a quantidade de açúcar e vão se aproximando do momento da colheita.

As uvas brancas são, naturalmente, colhidas antes. Sem a proteção da cor da pele, elas passam por outros processos que permitem sua maturação e a colheita que deve garantir não somente a adequada quantidade de açúcar, mas também de acidez.

Dentre as atribuições mais delicadas de um vinhateiro, a escolha do momento da colheita é crucial

Colheita

Dentre as atribuições mais delicadas de um vinhateiro, seja ele um agrônomo ou enólogo, a escolha do momento da colheita é a mais crucial. Depois de um ciclo cheio de períodos críticos (durante os quais um estresse do meio pode provocar prejuízos maiores e, às vezes, irreversíveis, necessitando de atenção constante para evitar ou minimizar os danos), chega o momento de decidir se aquele fruto está pronto para entrar no processo que o transformará em vinho.

Mariluz Marin, enóloga chilena, proprietária da vinícola Casa Marin, cujo terroir está a não mais do que quatro quilômetros do mar, conta que a época da colheita é de atenção extrema. "Tenho uvas Sauvignon Blanc em dois lados de uma mesma colina, a poucos passos da vinícola. Quando chegamos perto da colheita, chego a subir e descer a colina três vezes por dia provando as uvas, para determinar o momento certo de colhê-las", revela Mariluz. Seus varietais de Sauvignon Blanc são famosos e diferenciados, sendo que cada lado da colina mencionada oferece um tipo diferente de aporte na taça, mesmo sendo colhidos quase no mesmo dia.

É quase impossível explicar como os especialistas definem o "amanhã" no lugar do "hoje" para a colheita. Roberta Boscato conta que utiliza uma série de processos tanto em campo, quanto no laboratório. "Pegamos o banco de dados do clima para saber se teremos dias de chuva, sol e umidade e, além disso, fazemos um estudo de 20 componentes bioquímicos da uva para definir o momento da colheita", revela Roberta.

Fato é que esse é um ponto sem volta, ao menos até o próximo ciclo, e todos os vinhos dessa safra carregarão consigo as características desse momento preciso: concentração de açúcar, acidez, taninos, matérias corantes, polifenóis etc.

O último momento crucial da planta, nessa última fase, é que os cachos precisam ser tirados com cuidado e, se possível, quando a temperatura não estiver muito alta. O calor interno dos grãos dificulta o início da fermentação e uvas que amadurecem demais perdem acidez e frescor. Por isso, em locais muito quentes, como a Austrália, por exemplo, boa parte da colheita é feita à noite.

Depois de 12 meses, da dormência à maturidade, a uva chegou ao seu destino final: a cantina. É lá onde todos os seus compostos - acumulados durante todo ciclo e cuidados com capricho pelo viticultor - serão postos à prova final: se seu suco será capaz se transformar no mais enlevado dos néctares, o vinho. Mas essa é outra história, de um calendário completamente diferente.

Burro de São Martinho

Uma lenda reproduzida no livro "Vinho e Guerra" conta que, nos idos de 345 d.C, São Martinho teria ido cuidar dos vinhedos de seu mosteiro no Vale do Loire montado em um burrico. O animal ficou amarrado a algumas videiras enquanto o monge trabalhava. Ao retornar para pegar o animal, São Martinho viu horrorizado que o burrico havia comido as folhas e galhos das videiras até quase o tronco. No ano seguinte ele e os outros monges notaram que as videiras comidas pelo burrico cresceram e produziram com muito mais vigor do que as outras, assim passaram a adotar a prática da poda seca.

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