Divisor de águas

Filoxera chegou à Europa e mudou a história e a geografia do vinho para sempre

por Marcelo Copello

Marcelo Copello
Mortório no Douro, Portugal
"Vou fazer cair o dilúvio sobre a terra, uma inundação que exterminará todo ser que tenha sopro de vida debaixo do céu. Tudo que está sobre a terra morrerá"
Bíblia, Gênesis (6,17)

Hoje, mais de um século depois do fenômeno, é difícil acreditar que esta catástrofe de proporções bíblicas realmente aconteceu. Tive idéia da dimensão do problema na primeira vez que visitei o Douro e me deparei com um mortório - vinhedos do Douro atacados pela Filoxera no final do século XIX e abandonados desde então. Eles podem ser vistos ainda hoje, espalhados pela região. Desde então pude notar, em absolutamente todas as regiões vinícolas que estive, em vários continentes, que a Filoxera foi um divisor de águas. A história do vinho se escreve "a.F." e "d.F.".

O que é a Filoxera?

O vocábulo filoxera é usado indistintamente para designar o inseto com este nome e a praga causada pela infestação deste animal em vinhedos. Phylloxera vastatrix, Dactylosphaera vitifoliae, Viteus vitifolii ou simplesmente Filoxera é um tipo de pulgão, cujo tamanho varia de 0,3mm a 3mm de comprimento, conforme a fase de seu complexo ciclo de vida. Esta praga ataca várias partes da videira em diversos momentos do ano.
O pulgão destrói as folhas da planta(que ficam amareladas prematuramente e caem), diminuindo sua capacidade de fazer fotossíntese. Mas o que geralmente a mata é o ataque do inseto às suas raízes, que são sugadas pelo pulgão. Dessa forma, as feridas abertas sofrem a ação de fungos que geram o apodrecimento - a verdadeira causa mortis da videira.

A vitis vinifera e a Filoxera
A vitis vinifera é apenas uma das 60 espécies de uva no planeta, mas é a única que gera os vinhos finos. Todas as centenas de castas que conhecemos vêm de apenas uma espécie, isso tem seu lado ruim, pois a variedade genética é limitada, aumentando a vulnerabilidade a doenças. A vitis vinifera é também conhecida como vinha européia, ela é a mais comum no velho continente e teria vindo do Oriente Médio.
Em contraste, a América do Norte possui uma grande diversidade de espécies autoctonas, de uvas não viníferas, que geram vinhos inferiores. No Brasil, comumente designamos estes caldos de vinhos de garrafão.
Para entender como se deu o ataque desta praga em vinhedos de todo o mundo é importante saber que, primeiro, os danos provocados pela Filoxera nas vinhas dependem da susceptibilidade da espécie de videira aos ataques do pulgão. Segundo, a Filoxera existe há séculos na América do Norte, mas só chegou na Europa (e de lá para outros continentes), no século XIX, como veremos adiante. Ou seja, enquanto a vitis vinifera nunca havia tido contato com o pulgão e era (e ainda é) totalmente vulnerável, as espécies de uvas norteamericanas coevoluíram com a praga por séculos e adquiriram grande resistência, tornando-se quase imunes.

fotos: FLICKR
O efeito da praga nas folhas da vinha Na Nova Zelândia, vinhedos livres de filoxera
Ações desesperadas para acabar com a praga, inclusive com métodos curiosos que entraram para o folclore

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Porta-enxerto, vinhas americanas protegem as européias

A História de uma calamidade
O ataque da praga na Europa aconteceu de forma semelhante às epidemias levadas por navegadores espanhóis às suas colônias americanas. Povos aborígines foram dizimados por vírus inofensivos aos europeus.
É fundamental entender o contextoem que se deu a Filoxera. No final do século XIX, a economia européia era movida a vinho: nada menos que 80% da população da Itália vivia direta ou indiretamente dele. Na França, cerca de 20% da receita do Estado vinha do fermentado e 30% das pessoas trabalhavam diretamente com o produto. Em Portugal, o vinho do Porto era o item número um na balança comercial do país.
Com a colonização da América, os europeus tentaram cultivar a vitis vinifera no Mundo Novo. Todas as tentativas fracassaram, pois as vinhas morriam sem explicação. Não se sabia as causas, mas provavelmente tratava-se da Filoxera e do Oídio (outra praga terrível que também viria a atacar a Europa). Tentaram então fazer vinho com as vinhas locais, mas o resultado era intragável. Os vinhos elaborados a partir de vinhas não-viníferas possuem um típico gosto animal desagradável chamado de foxy - derivado da palavra fox, que significa raposa na língua inglesa. Como caminho natural para resolver este problema levaram mudas de vinhas americanas à Europa para estudá-las, carregando junto a praga.
Conta a história que um certo Monsieur Borty recebeu vinhas americanas, vindas Nova York, e cheio de boas intenções plantou-as em seu quintal, no Languedoc, sul da França, em 1862. Este marchant de vinhos notou que as demais vinhas de sua plantação de vitis vinifera começaram a morrer. Cerca de cinco anos depois, todo o sul da França estava devastado. Em uma década, a produção de vinhos da França caiu a um terço e a calamidade já era global.
A última região a ser atacada pela praga foi Champagne, em 1890. O Douro foi a primeira parte de Portugal com registros de Filoxera, em 1865. Em 1875, o pulgão já estava na Austrália, em 1880 na África do Sul, em 1885 chegou ao norte da África, na Argélia e de lá atacaria vinhedos na Tunísia e Marrocos. O século XIX chegou ao fim com o mundo de Baco destroçado e a produção mundial seriamente comprometida. Muitos vinhedos foram extintos, muitas castas desapareceram dando lugar a outras. A geografia do vinho estava mudada para sempre.

Pânico e tentativas curiosas
No início, a morte das vinhas era um mistério e o pânico se instalou mesmo depois de Jules Émile Planchon, botânico de Montpelier, no sul da França, identificar o problema: um inseto quase invisível a olho nu, de combate desconhecido. Métodos curiosos foram utilizados, alguns entrando para o folclore da bebida.
Na Itália, chegaram a atribuir o problema às estradas de ferro, uma novidade na época, que poderia trazer doenças. Alguns trilhos foram destruídos. Em algumas regiões, vinhedos foram inundados em uma tentativa de impedir que o pulgão chegasse às raízes da planta, o que não funcionou. Na região do Beaujolais, tentaram combater a praga com um "defensivo agrícola" natural, a urina, às vezes humana. Contam que os meninos de colégio, todos os dias depois das aulas, tinham a missão de urinar nas vinhas. Certos pesticidas químicos funcionavam, mas o sucesso era relativo, custavam caro, eram altamente tóxicos e exigiam uso constante.
Alguns viticultores começaram a plantar vinhas americanas, que não morriam, mas o vinho resultante, como já sabemos, era de qualidade inferior.

Situação atual
Não se descobriu até hoje um controle eficaz da praga. A Filoxera ainda existe e ataca. Os cientistas não sabem todos os pormenores das diferenças entre a vitis vinifera e as espécies americanas para determinar os motivos que levam uma a resistir à praga e a outra não. Sabe-se que o pulgão não age em terrenos arenosos, razão pela qual alguns vinhedos resistiram como, por exemplo, na região de Colares, em Portugal, próxima a Lisboa. O Chile é também um caso sempre citado, pois a Filoxera não chegou até lá por conta das proteções naturais, já que o país é uma "ilha" entre a Cordilheira dos Andes, o deserto de Atacama, a Antártida e o oceano Pacífico. Além disso, atribui-se o fato também ao solo chileno ser rico em cobre e outros minerais, uma proteção natural. A Sicília - com seus terrenos vulcânicos, de consistência muito rica - também abriga alguns vinhedos "virgens", intocados pelo maligno inseto.
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fotos: Picasa
Pequeno vinhedo na região espanhola de Toro, onde é comum haver vinhas enxertadas

A Cura
Em Montpelier, desenvolveram um processo que não chega a ser a cura propriamente dita da praga, mas um paliativo. Após muitas experiências descobriram, em 1874, que ao enxertar a vitis vinifera sobre uma vinha americana era possível produzir vinhos finos em uma planta resistente a praga. Apenas a raiz da planta é da vinha americana e sobre ela cresce uma vitis vinifera.
No início, havia muita resistência em usar este método, primeiro porque se temia pela qualidade do vinho e depois pela grande dificuldade de conseguir vinhas americanas, já que era proibido importá-las. Este método foi e é a cura adotada em todo o mundo até hoje.
As vinhas enxertadas são chamadas de cavalo, este nome se dá porque elas são plantadas umas sobre as outras. Os exemplares com raízes originais européias, sem o artifício da enxertia, são denominadas de vinhas de "pé franco". Além dos citados acima, existem espalhados pelo mundo alguns exemplos isolados de vinhedos "pé-franco". É o caso do notório vinhedo Nacional, da Quinta do Noval, no Douro, ou o a Herdade do Mouchão, no Alentejo. O fabuloso Thermantia 2005 (avaliado com cinco estrelas em ADEGA 24) é outro exemplo, elaborado na região espanhola de Toro a partir de um vinhedo préfiloxérico de 140 anos de idade.
Pode-se hoje perfeitamente plantar um vinhedo em "pé franco" em qualquer lugar do mundo, mas o risco de perdê-lo por um ataque da Filoxera é grande. E mesmo as vinhas em cavalo podem ser atacadas se o porta-enxerto (o tipo de vinha americana que fornecerá suas raízes à planta) não for bem escolhido. É bom lembrar que a Filoxera, como todas espécies que habitam o planeta, pode evoluir e sofrer mutações naturais, e um porta-exerto hoje resistente à praga pode, no futuro, não o ser mais.
Na Califórnia, entre os anos 1960 e 1970, plantou-se muito usando o portaenxerto conhecido como AXR#1, que era resistente à Filoxera, mas que veio a sucumbir ante a um novo biotipo do pulgão, o biotipo B, que dizimou muitos vinhedos, os quais tiveram que ser replantados com novo porta-enxerto.

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