Entenda os porquês e a importância da degustação às cegas e “às claras”
por Arnaldo Grizzo
Degustações às cegas (ou seja, as provas em que você não sabe qual vinho está sendo servido) são sempre emocionantes e, algumas vezes, determinantes. Basta lembrar de um momento crucial na história do vinho, no dia 24 de maio de 1976, quando ocorreu o fatídico “Julgamento de Paris”.
Na época, críticos franceses degustaram rótulos clássicos de seu país ao lado de até então desconhecidos californianos, e elegeram os melhores. Para surpresa de todos, os vinhos norte-americanos ganharam a prova e, a partir daí, muita coisa mudou no mundo do vinho.
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Mas isso seria um atestado de que as pessoas não são capazes de identificar determinados vinhos a partir de seus aromas e sabores? Aquelas cenas típicas de filme em que um grande degustador é colocado à prova e aponta sem titubear: “Este é um Chardonnay de Meursault da safra 2013 do produtor Coche-Dury”, seriam balelas?
Encontrar alguém com sentidos e memórias tão apurados é raro, contudo, é possível sim. Além disso, não é apenas uma questão de habilidade, mas também de muita prática. Se você nunca sentiu os aromas e sabores de um Meursault, como vai poder identificá-los?
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Todavia, se você já provou diversos e convive diariamente degustando, é provável que consiga diferenciá-los mesmo sem ver o rótulo do vinho.
Enfim, qual é o propósito da degustação às cegas? Em sua essência, ela serve para remover qualquer preconceito que os provadores possam ter em relação a um vinho e permite que eles mostrem que podem avaliar a garrafa com precisão e objetividade. Ela é usada basicamente em exames técnicos para qualificação de profissionais como sommeliers, por exemplo, mas também é utilizada em concursos de vinho e por críticos em suas avaliações.
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Esses profissionais geralmente fazem isso para compreender o vinho além do seu rótulo.
Diferentemente do que se pensa, a prova às cegas não tem como objetivo “espetaculoso” identificar o vinho. A ideia é tentar entendê-lo, descobrir sua origem, sua variedade, seu estilo de vinificação, perceber com mais atenção seus aromas e sabores para tentar assimilar suas qualidades.
Aprimorar as habilidades de degustação às cegas ajuda os profissionais a se tornarem melhores provadores em geral, às cegas ou não, porque ensina como avaliar criticamente cada vinho.
Se as degustações às cegas são as mais “democráticas”, por então todos não provam vinhos somente dessa maneira? O espirituoso crítico de vinhos Didú Russo tem uma máxima divertida sobre o tema: “Olhe para o vinho e depois olhe para o produtor, se eles forem muito diferentes, desconfie”.
Pois bem, às vezes, ver o que está sendo provado também ajuda a entender o que está sendo provado. E, para quem já tem certa experiência com vinhos, se há algo no rótulo que possa indicar um “caminho”, mas ao provar a bebida se mostra diferente do que se esperaria, pode-se ligar um sinal de alerta.
E não estamos falando necessariamente de falsificações. Às vezes, formamos uma imagem de alguns estilos de vinho em nossa mente depois de provar rótulos semelhantes durante muito tempo. Por exemplo, você não se surpreenderia ao abrir uma garrafa de Primitivo da Puglia e se deparar com um vinho delicado em vez de algo encorpado? O que isso quer dizer? Pode ser que um produtor tenha encontrado uma nova forma de vinificar essa variedade...
Talvez a Primitivo nunca atinja a delicadeza da Pinot Noir, por exemplo, mas o mundo do vinho, apesar de suas tradições, está sempre em evolução, especialmente diante de um universo de consumidores que possuem tantos gostos diferentes. Ou seja, não devemos tomar certas coisas como 100% garantidas. Há, sim, sinais e referências que podem nos guiar, mas devemos ter sempre mentes e paladares abertos. Então, para que você possa compreender melhor futuras degustações às cegas, é interessante conhecer os vinhos. Isso, obviamente, significa provar muitos rótulos diferentes.
Em um texto sobre degustação às cegas para o site de Robert Parker, a editora-chefe e crítica de vinhos Lisa Perrotti-Brown diz: “Quais são as deficiências da degustação às cegas? Quando feita estritamente por diversão, nenhuma. Presumivelmente, haverá um estágio durante o processo em que você poderá apreciar o vinho não apenas por seus benefícios tangíveis, mas também pelos intangíveis: conhecimento da história, produtor e local do vinho.
Atributos intangíveis às vezes podem ser tão importantes no prazer do vinho quanto os tangíveis. Um exemplo que vem à mente é minha experiência de beber um Château Lafite de 1917 e imaginar as dificuldades da I Guerra Mundial que foram suportadas apenas para produzir aquela garrafa… e ainda assim, ela perdura. [...] Também acredito que saber o que é o vinho muitas vezes pode ajudar um degustador profissional e imparcial a entender um pouco melhor a qualidade e o potencial de um vinho.
Qualquer um que tenha experimentado o vinho de um terroir exclusivamente evocativo, como o vinhedo Romanée-Conti de Domaine de la Romanée-Conti quando engarrafado pela primeira vez, entenderá meu ponto aqui. Entender como este vinho se desenvolverá usando sua experiência de outros Romanée-Conti em um estágio semelhante na juventude e posteriormente ajudará a fornecer contexto e, em última análise, uma melhor avaliação do vinho do que não saber nada.
O mundo do vinho é construído com base na premissa de que vinhos singulares se desenvolvem de forma singular – então, por que todos deveriam ser avaliados profissionalmente como parte do rebanho?”
É comum que produtores e enólogos degustem vinhos regularmente (seus próprios e de outros fabricantes) por vários motivos. Às vezes, essas degustações são realizadas às cegas ou parcialmente às cegas (em que algumas informações são fornecidas aos degustadores), e geralmente são comparativas, para controle de qualidade, direção estilística etc. Muitos experimentam às cegas todos os testes de vinificação e também para determinar os blends; para que fiquem livres de qualquer preconceito e possam escolher o melhor.
O mesmo ocorre com críticos de vinho. Alguns dizem que só fazem avaliações completamente às cegas. Muitos, contudo, provam às claras ou parcialmente às cegas para entender completamente o contexto, a história e o estilo do vinho que estão provando.
Guias como o Descorchados e ADEGA, por exemplo, fazem uma primeira prova em que os rótulos são mostrados e até mesmo comentados pelos enólogos; e posteriormente uma degustação às cegas é feita com os rótulos mais bem avaliados, tanto para validar ou não as primeiras impressões quanto para efetivamente ranquear os níveis qualitativos em uma escala.
Jancis Robinson, por exemplo, afirma: “Ao fazer degustações comparativas como as dos vinhos en primeur de Bordeaux, tento provar o máximo possível às cegas. Não acho que haja muito sentido em provar vinhos aleatórios que são completamente novos para mim completamente às cegas, mas aproveito qualquer oportunidade para comparar de igual para igual sob condições cegas”.
Ou seja, mesmo para profissionais, em muitos casos, ter informações sobre o vinho (ainda que só algumas, como a região de onde ele vem, por exemplo) pode ajudar a compreender melhor e assim também avaliar melhor. Em outras situações, degustações completamente às cegas ajudam sommeliers a avaliar se um rótulo deve ser incorporado a uma carta de vinhos e indicar ou não determinados vinhos para seus clientes.
Degustar às cegas é sempre um excelente exercício, que pode e deve ser praticado não somente por profissionais, mas por qualquer amante do vinho, tanto para agregar conhecimento quanto para diversão. E não se preocupe, pois os vinhos não são apreciados apenas por suas qualidades tangíveis.