O clima atípico fez com que a colheita deste ano fosse diminuta, mas de alta qualidade
por Por Arnaldo Grizzo
A palavra que mais se ouviu nos comentários dos enólogos sobre a safra 2016 no sul do Brasil foi: atípica. Depois: quebra. O grande problema deu-se no inverno de 2015, que definitivamente não ajudou a vitivinicultura. O culpado: El Niño – o menino travesso “causou” desta vez e deixou produtores de cabelo em pé. No fim, contudo, perto da colheita, seus efeitos se arrefeceram e a qualidade das uvas, em geral, foi considerada muito boa.
Segundo o relatório prévio realizado pelos pesquisadores Maria Emília Borges Alves e Henrique Pessoa dos Santos, da Embrapa Uva e Vinho, a safra se desenvolveu “sob condições climáticas notadamente fora das normais”. O primeiro percalço deveu-se ao número de horas de frio no inverno, que foi inferior às condições normais e às demandas das vinhas. Com isso, “a superação da dormência de gemas foi deficitária e, como consequência, a brotação foi desuniforme e inferior”.
“O inverno registrou temperaturas muito acima do esperado, confundindo o ciclo natural das videiras”, atestou o engenheiro Maurício Copat, da Salton. Irineo Dall’Agnol, da Estrelas do Brasil, afirma que esse fenômeno antecipou a brotação: “Ela ocorreu, em média, 15 dias antes em relação aos outros anos”. Isso também se refletiu na colheita. “Em geral, nota-se uma antecipação do período de colheita nos últimos anos, e este ano não foi diferente”, apontou Ricardo Morari, enólogo da vinícola Serra Gaúcha.
Se o frio não veio no inverno, como se esperava, ele, porém, mostrou seu lado devastador tardiamente. Adriano Miolo conta que, em suas 32 safras, nunca havia visto nada assim. “Foram duas geadas tardias no começo da primavera, as duas no mesmo fim de semana. Congelou o Rio Grande do Sul. Segundo os mais antigos, fazia mais de 70 anos que não se via uma geada tão forte e tão tardia”, afirmou o enólogo-chefe do Grupo Miolo – que estima uma perda de 55 a 60% do volume nesta safra em seus projetos no sul do Brasil.
Nos dias 11 e 12 de setembro, o estado recebeu uma forte frente fria que proporcionou geadas, principalmente nos locais mais baixos, impactando nas primeiras brotações e variedades precoces como Chardonnay e Pinot Noir – em alguns lugares as perdas foram alarmantes. “Tivemos uma quebra de 35%, principalmente nas variedades precoces e dos vinhedos de baixadas”, admitiu Edegar Scortegagna, enólogo da Luiz Argenta, em Flores da Cunha.
Ao frio, para piorar o cenário, seguiu-se a chuva e o granizo. O relatório da Embrapa explica: “As áreas que escaparam dos danos de geada também enfrentam danos pelo excesso de chuva e altas temperaturas na primavera, que favoreceram a incidência de doenças fúngicas, tais como o míldio, e mereceram mais atenção dos produtores para tentar garantir alguma produção. Outro ponto importante, e que merece destaque, são as chuvas no período de floração, as quais restringem a polinização e, consequentemente, o número de bagas por cacho. Ainda, algumas áreas, também sofreram danos por granizo, reduzindo e danificando a produção”.
“O clima no período da floração foi chuvoso e afetou a quantidade de cachos produzidos”, contou Daniel De Paris, enólogo da Dom Cândido, que estima suas perdas em aproximadamente 50%. “Foi uma safra muito complicada. Um ano com pouco frio. Muita chuva. Geadas tardias. Final de colheita com pouca quantidade de uva. Houve em torno de 40 a 50% de quebra na região. Lamentavelmente, foi uma ano histórico para a Serra Gaúcha. Estou há 30 anos fazendo vindima lá e nunca vi nada igual”, disse Carlos Abarzúa, enólogo da Cave Geisse, em Pinto Bandeira.
Dall’Agnol, por sua vez, descreve um cenário quase que de terror: “O El Ninõ foi implacável, com índices de pluviometria altíssimos. Ele afetou inicialmente a fecundação na floração com desavinho (quando há um aborto no desenvolvimento dos cachos) e o surgimento de doenças fungícas. Uma verdadeira batalha se estabeleceu, primeiramente silenciosa e, mais tarde, desesperadora entre os produtores. Não havia tempo suficiente para realizar as pulverizações entre uma chuva e outra. Em muitas situações, os fungicidas perdiam ou diminuíam sua ação sobre os fungos. Muitos viticultores abandonaram parte de seus vinhedos, pois viam seus esforços em vão; ao mesmo tempo que seus custos com mão de obra e insumos triplicavam. A natureza venceu a força do viticultor. Restou esperar a colheita para computar os prejuízos, com valores nunca vistos na história da viticultura da Serra Gaúcha”.
O enólogo conta ainda que, no desespero de salvar os vinhedos, ocorreram mortes por tombamento de tratores, que deslizaram nos solos encharcados. Segundo ele, em alguns casos, os vinhedos ficaram esgotados e intoxicados pelo excesso de aplicações de fungicidas e isso pode ter efeito negativo na próxima safra.
No entanto, apesar de o quadro pintado parecer uma cena do apocalipse, o resultado da safra 2016, apesar das grandes perdas em volume, é muito melhor do que parece.
“Tudo indica que teremos uma quebra de 50 a 60%, um volume considerável. Porém, o grande detalhe é que foi uma excelente safra. Uma pena que tivemos pouquíssimo volume”, avalia Dirceu Scottá, presidente do Ibravin e enólogo da Dal Pizzol. O que tornou isso possível? “Com o baixo volume de chuvas registrados no período de colheita, bem como dias quentes e noites frias, tivemos uma maturação regular das uvas, com bons índices de açúcar e acidez controlada”, aponta Morari. “Isso favoreceu muito a elegância, a cor, os aromas frutados. A pena é a quantidade. Foi uma safra que valorizou o agricultor que trabalhou bem. Vou sentir saudade dessa safra”, garante o enólogo Alejandro Cardozo, que presta consultoria para vinícolas na Campanha Gaúcha, Campos de Cima da Serra e Serra Gaúcha.
“Apesar de uma desmedida quebra de safra, a qual ronda os 60%, os objetivos de qualidade foram atingidos”, garantiu o enólogo Gregório Salton, da vinícola que leva seu sobrenome. Scortegagna concorda que “a diminuição de quantidade em nada afetou a qualidade”. “Conseguimos concentrar mais no cacho”, disse. “Apesar da grande quebra em volume, constatou-se uma qualidade das uvas que sobraram relativamente de boa, sendo disputadas a unhas e dentes pelas vinícolas, provocando um verdadeiro leilão. Nesse sentido, com a elevação do preço, amenizou-se um pouco as perdas financeiras dos viticultores”, apontou Dall’Agnol.
“Houve perdas, porém, a produção pequena nos surpreendeu pela qualidade dos frutos. Talvez esse seja o grande mistério da videira, que muitos filósofos insistem em dizer que simboliza a vida, já que, na dificuldade, ela consegue transpor adversidades e nos brindar com verdadeiras preciosidades”, animou-se Daniel Salvador, enólogo da Vinícola Salvador, de Flores da Cunha. “A safra de 2016 foi bastante singular em termos gerais. Conversava com meu pai, Antonio, que também é enólogo e já participou de quase 50 safras, e as condições deste ano foram ímpares. Tivemos safras no passado com menor interferência climática e o resultado não tão bom quanto a deste ano. De modo geral, os avanços na área da viticultura e utilização de modernas práticas enológicas auxiliaram muito. O resultado pode surpreender e servirá, com absoluta certeza, como base para os próximos anos, pois terminamos esta safra com novas experiências que poderão ser utilizadas no futuro”, completou.
Miguel Ângelo Vicente Almeida, enólogo responsável pelo projeto Quinta do Seival, da Miolo, na Campanha Gaúcha, concorda com essa visão. “Entrei na vindima de 2016 conformado em fazer apenas vinho e, praticamente três meses depois, fui surpreendido. Experimentei ideias que sempre quis colocar em prática, como colheita noturna de Sauvignon Blanc e hiperoxigenação de mostos”, afirmou.
Segundo a maioria dos enólogos, a vocação para o espumante de alta qualidade é provada ano a ano, inclusive nas safras mais complicadas, e, dessa forma, também é algo para a qual não se pode virar as costas. “Os vinhos base já elaborados são muito bons, com aromas muito finos de flores e frutados, apresentando acidez, potência e estrutura bem casadas com os elementos de maciez do vinho. Sem dúvida, teremos espumantes de qualidade”, afirmou Juliano Perin, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE) e enólogo da Chandon. “Mais uma vez a natureza indica que o caminho é fazer espumante”, admitiu Cardozo.
No entanto, mais do que espumantes, a safra também favoreceu algumas uvas tintas. “As variedades com ciclo intermediário ou médio-longo apresentaram maturação surpreendente e boa capacidade de maturação”, garantiu Salvador. “As uvas tardias estão incríveis, com uma concentração de taninos, cor, estrutura que, com certeza, darão vinhos fantásticos. Se tivesse que apostar, apostaria mais nas tintas do que nas brancas neste ano. Teremos surpresas nas tintas. Recebemos Tannat com 14% de álcool natural e Merlot nesse mesmo patamar. Fiquei surpreso com o Tannat e também com o Alicante, que vinifiquei em separado e ainda não o que vou fazer”, brincou Scottá.
O enólogo Flávio Pizzato também acredita “muito no Tannat”, mas acha que as brancas terão um bom potencial. “Nas tintas, como não tem como escolher muito entre parcelas, você fica sem aquele aspecto de seleção. Então fica mais na mediana. Mas só o tempo vai dizer”, apontou. “Estamos contentes com o resultado da vindima 2016, tanto em vinhos brancos, com aromas limpos, típicos e excelentes bocas ácidas, quanto em tintos, com excelentes performance do Tempranillo, do Tannat e do Merlot. Mas faltarei à verdade se disser que 2016 é um ano de grandes vinhos, teremos sim resultados interessantes em parcelas de vinhas muito especificas. O ano de 2016 será um ano de bons vinhos premium e um ano regulador dos estoques das vinícolas”, advertiu Almeida.
Daniel de Paris concorda: “A safra foi ótima em qualidade, porém, quanto à quantidade de produção, tivemos perdas que aumentaram os custos dos produtos”. “Normalmente temos duas safras em nossos estoques. Então, entrar uma meia safra não é tão complicado, mas traz um problema de custo. Isso tem impacto importante. O problema maior vai ser de quem trabalha com uva de terceiros”, apontou Miolo. Segundo Daniel Dalla Valle, enólogo da Casa Valduga – que também costuma ter duas safras em estoque – o custo da uva subiu. “Se você tem histórico de colher 10 toneladas em determinado vinhedo, tem um custo para 10. No entanto, este ano, se só colheu seis, então terá que diluir custo de 10 para apenas seis”, afirmou, apontando ainda que recebeu 68% do volume previsto para a colheita deste ano.
Mas tanto Miolo quanto Dalla Valle, cujas empresas têm fortes bases no Vale dos Vinhedos, corroboram a tese de que os espumantes e o Merlot são dois bastiões da região, não importa o ano. “A base de espumante enfrenta qualquer dificuldade e sempre sai perfeito. Nos tintos, mesmo acontece com o Merlot. Foi a variedade que mais quebra teve, mas, o que ficou no vinhedo, teve qualidade incrível”, garantiu Miolo. “O espumante tem potencial nato, todo ano sempre se destaca. Os tintos surpreenderam com maturações bem estendidas. Cheguei a colher Cabernet antes do Merlot. A gente estuda a variedade, mas sempre tem essas surpresas. E aí é que você percebe que o potencial maior no Vale é do Merlot. A qualidade está melhor do que no ano passado”, disse Dalla Valle. Agora, só resta esperar e comprovar.
As condições da safra 2016 em Santa Catarina não diferiu muito das vistas no Rio Grande do Sul: primeiro, um inverno atípico com temperaturas elevadas e brotação precoce, depois, geadas primaveris que castigaram os brotos, em seguida, dias de granizo e também muita chuva e umidade durante o ciclo vegetativo, contribuindo para o aparecimento de fungos. Tudo isso reduziu muito a produtividade. E, assim como em terras gaúchas, em fins de janeiro, as precipitações diminuíram, os dias tiveram temperaturas altas alternadas com noites frias, o que favoreceu a maturação. “Quem conseguiu salvar suas uvas se deparou com um verão/outono extremamente favorável para a maturação lenta e completa das uvas, das quais resultarão vinhos muito interessantes”, afirmou o enólogo Anderson De Césaro, da Villaggio Bassetti. “Será um ano com muita variação entre diferentes produtores e mesmo muita variação dentro de um mesmo produtor, ou seja, vinhedos que renderam alegrias ao lado de vinhedos que não renderam nada. Melhor para as variedades intermediárias à tardias. Estou considerando como a melhor colheita de Sauvignon Blanc na Villaggio Bassetti”, garantiu.