A história do Vernaccia de San Gimignano, citado na Divina Comédia e também no Decamerão, de Boccaccio
por Arnaldo Grizzo
A meio caminho entre Florença e Siena, ao leste, pode-se ver ao longe as altas torres de uma cidadela que se destaca por seus prédios medievais (e mais recentemente pelo gelato, dito o melhor da Itália, quiçá do mundo). Por isso, San Gimignano é um dos pontos turísticos mais atrativos da Toscana. Do alto de suas torres, pode-se observar os vales verdejantes que rodeiam toda a cidade.
Se hoje ela recebe milhares de turistas durante o ano, na Idade Média ela também foi um polo de atração. Acredita-se que San Gimignano era um ponto importante para os peregrinos que iam a Roma, especialmente devido à produção de açafrão e também de seu vinho, o então famoso Vernaccia di San Gimignano.
Esse vinho branco, originalmente produzido nas colinas da cidade, tornou-se famoso não somente na Itália, mas em boa parte da Europa na época, tanto que aparece citado por importantes autores como Giovanni Boccaccio e Dante Alighieri, em suas obras-primas, como o Decamerão e a Divina Comédia.
No segundo conto da décima e última jornada do Decamerão, Boccaccio fala sobre as propriedades medicinais do “Vernaccia di Corniglia”, capaz de curar o abade de Cluny de seus problemas estomacais. Estamos no século XIV e o vinho que originalmente seria de San Gimignano já era “replicado” em outros locais, como na Ligúria, especialmente na região de Cinque Terre (Corniglia) e também na Lombardia, com o Vernaccia di Cellatica, ou ainda na Calábria, com o Vernaccia di Santo Noceto. Na verdade, acredita-se que o nome Vernaccia derive de Vernazza, uma comuna das Cinque Terre.
Reis, papas e glutões
Sabe-se que Vernaccia di San Gimignano já era popular no século XIII. Os primeiros registros de pagamentos de impostos sobre a venda do vinho na cidade são de 1276. E o vinho deveria ser mesmo famoso, pois outra obra marcante da literatura ocidental cita-o. Em sua jornada do inferno ao paraíso guiada pelo poeta Virgílio, Dante esbarra com um pecador no purgatório.
“Questi e, mostrò col dito, è Bonagiunta. Bonagiunta da Lucca: e quella faccia di Ià da lui più che l’altra trapunta ebbe la Santa Chiesa e le sue braccia: dal Torso fu, e purga per digiuno l’anguille di Bolsena e la Vernaccia”. Neste trecho do Purgatório, que fala dos pecados da gula, Dante encontra um parente seu que vai enumerando algumas pessoas que estão “pagando”, entre elas o papa Martinho IV, que está sendo purgado, por seu gosto excessivo por enguias do lago Bolsena e por Vernaccia.
Mas o vinho não se restringe aos versos e à prosa italiana. O escritor britânico Geoffrey Chaucer também escreveu sobre o Vernaccia em seus famosos Contos da Cantuária. Em um trecho, dito “Conto do Mercador”, o velho personagem Januário é aconselhado a beber um pouco do vinho na hora de ir para cama com a sua jovem noiva “para lhe dar coragem”. Outros ainda “cantaram” o Vernaccia, como os franceses Deschamps e Jean Froissart, por exemplo.
No século XV, o vinho de San Gimignano aparece nas mesas da corte florentina, especialmente no casamento de Bernardo Rucellai com Nannina Médici, irmã de Lourenço de Médici, o Magnífico. Mas ele também está nas taças dos milaneses. Em 1487, Ludovico Sforza, o Mouro, duque de Milão, encomendou 200 frascos de Vernaccia para as bodas de Isabella de Aragão, filha do rei de Nápoles, e Gian Galeazzo Sforza, seu sobrinho.
A procura do vinho pelos poderosos era tamanha que, em 1477, a cidade já havia designado dois degustadores oficiais para que fossem fornecidos apenas “o melhor e mais bem condicionado” vinho produzido.
Quase um século depois, Vernaccia di San Gimignano mantinha seu status, celebrado por Sante Lancerio, em sua obra “Da natureza dos vinhos e das viagens de Paulo III”. Lancerio era o que se pode chamar de sommelier particular do papa. Grande entendedor de vinhos, ele diz que Sua Santidade esteve na região por volta de 1536, na comuna de Poggibonsi, a menos de 20 quilômetros de San Gimignano, “onde havia alguns excelentes vinhos de San Gimignano (...), incluindo o requintado Vernaccia, que ele tomou quantidades abundantes, honrando o lugar”.
Lancerio lembra ainda que, em 1541, o papa solicitou à cidade 80 garrafas de Vernaccia. “É uma bebida perfeita para o senhorio, e é uma pena que este lugar não produza muito”, lamentou, alegando que os munícipes davam muita importância à arte e à ciência, mas não o suficiente à soberba qualidade da bebida produzida. Segundo ele, o Vernaccia estava no topo da classificação dos vinhos doces do mundo, junto com Malvasia e Greco d’Ischia.
Pintura e primazia
A fama do vinho de San Gimignano era tamanha que não se restringiu à literatura, aparecendo também em trabalho de Giorgio Vasari, que pintou a “Alegoria de San Gimignano e Colle Val d’Elsa” no salão do Palazzo Vecchio em Florença. Nela está retratado um sátiro que bebe Vernaccia.
Já no século XVII, uma das obras mais famosas sobre os vinhos toscanos, “Bacco in Toscana”, de Francesco Redi, também trata do Vernaccia. “Se houver alguém que não gosta do Vernaccia colhido em Pietrafitta, interdito, amaldiçoado, fuja da minha vista e o sofrimento sempre engula”, dizem os versos.
Nos anos seguintes, porém, o Vernaccia minguou. Desaparecendo dos vinhedos toscanos, ficando restrito a algumas poucas propriedades em que os donos mantinham juntamente com outras variedades. Houve tentativas de renascimento durante o começo do século XX, mas somente na década de 1960 é que as vinhas começaram a ser replantadas. Devido muito à sua história, em 1966 ele se tornou o primeiro vinho italiano a obter a Denominação de Origem Controlada.
Se antes o Vernaccia di San Gimignano era um vinho doce, atualmente é um branco seco, de boa acidez, com tons florais e minerais. A região possui 1.900 hectares de vinhas, sendo que 720 são destinados à produção de Vernaccia di San Gimignano e 450 para a produção de San Gimignano. O restante é dedicado à produção de Chianti, Chianti Colli Senesi e IGT Toscana. Hoje existem cerca 170 vinícolas que tentam devolver o Vernaccia ao posto de vinho célebre.
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