O mestre dos vinhos brancos bordaleses
por Por Arnaldo Grizzo
Os críticos de vinho franceses costumam intitular de “papa” um enólogo que se torna referência em determinado assunto. O termo revela um profundo respeito pelo conhecimento da pessoa e também a importância de sua posição como um doutrinador, alguém que estabelece as bases das atuações e crenças de seus seguidores.
Foi com esse título que a imprensa mundial noticiou a morte de Denis Dubourdieu, o “papa do vinho branco”. Não é incomum na história a canonização de certos personagens após a morte, mesmo quando suas biografias não indicariam tal ascensão. No entanto, esse definitivamente não é o caso de Dubourdieu. Cientes de que ele lutava contra um complexo câncer no cérebro, muitos fizeram questão de homenageá-lo ainda em vida.
Assim, recebeu diversas honrarias ainda neste ano, inclusive sendo condecorado “homem do ano” pela revista Decanter. Mas o reconhecimento por seu trabalho enológico vem de longa data e não foi majorado devido ao seu falecimento precoce, aos 67 anos.
O rótulo de “papa do vinho branco” pode parecer exagerado em um primeiro momento, mas, quando olhamos para o legado de Dubourdieu, vemos que talvez ele seja até humilde demais para descrever alguém que praticamente definiu o estilo dos vinhos brancos do mundo nos últimos anos. E isso também não é exagero.
Dubourdieu nasceu em Barsac, em uma família de vitivinicultores. Seu avô e seu pai produziam tão somente vinho branco (seco e doce) e o ensinaram a apreciar esse estilo. Depois de estudar agronomia e economia em Montpellier, fez especialização em enologia na prestigiada Universidade de Bordeaux, onde defendeu suas duas teses de doutorado em 1978 e 1982.
Em 1987, tornou-se professor na instituição. Mais do que influenciar gerações de enólogos com seus ensinamentos na universidade, o “professor”, como era sempre chamado, era um cientista que se dedicou à pesquisa sobre enologia (especialmente dos vinhos brancos) a fundo. Dubourdieu publicou mais de 200 trabalhos sobre o tema e seus estudos (e prática) tornaram-se referência quando se fala de vinificação de brancos atualmente. Pode-se dizer, sem receio, que ele definiu diversos processos usados atualmente por enólogos de todo o planeta.
Dubourdieu, por exemplo, explicou o processo de contato das peles das uvas brancas antes da prensa, elucidou como funciona o processo de bâtonnage durante a maturação dos brancos, determinou a estrutura molecular dos vinhos feitos com podridão nobre, explicitou as causas da oxidação prematura, revelou a origem dos aromas vegetais em uvas não maduras, identificou as moléculas responsáveis pelos aromas da Sauvignon Blanc e outras variedades etc.
Ou seja, graças às suas pesquisas definiu-se parâmetros de vinificação não só para os brancos de Bordeaux, que até então eram marginais, mas para todo o mundo. Em uma entrevista, o professor chegou a afirmar que, até pouco tempo atrás, os brancos bordaleses eram feitos com as sobras das uvas botrytizadas que não tinham qualidade para serem usadas nos vinhos doces. Sob sua tutela, eles passaram a ser feitos com uvas colhidas previamente e pensadas para se tornarem brancos secos – frescos e puros.
Juntamente com seu trabalho na universidade, Dubourdieu gerenciou as propriedades de sua família. Ao lado de sua esposa, Florence, e dos filhos, Fabrice e Jean-Jacques, o professor criava seus vinhos em cinco propriedades que totalizam 135 hectares de vinhedos em Bordeaux: Château Doisy-Daëne (ex-propriedade de seu avô), Clos Floridene (que adquiriu com a esposa), Château Reynon (comprado do sogro e local onde habitava com a esposa), Château Cantegril (herdado do pai) e Château Haura. Graças a Dubourdieu, o Château Doisy-Daëne é hoje considerado uma das principais propriedades de Sauternes e Barsac.
No entanto, boa parte da fama de Dubourdieu deve-se a seu trabalho como consultor. O professor chegou a prestar seus serviços para mais de 80 produtores em Bordeaux. Entre seus clientes mais importantes estão Château d’Yquem, Château Cheval-Blanc e Château Margaux. Apesar de ter se tornado célebre por seu trabalho com brancos, ele também desenvolvia projetos e experimentos com tintos, tendo ajudado a criar técnicas de extração mais longas, porém mais gentis para as uvas.
Como pesquisador, Dubourdieu estava sempre de olho nas novidades, mas tratava-as com cautela. Apesar de realizar experimentos em seus vinhos e vinhedos – ele também ajudou a desenvolver algumas práticas de viticultura para assegurar uma melhor expressão do terroir na bebida –, preferia realizar testes extensivos antes de se posicionar sobre qualquer modismo.
Uma vez perguntado sobre vitivinicultura biodinâmica, afirmou que diversos produtores bordaleses eram céticos sobre os métodos, mas a maioria já seguia algumas das doutrinas biodinâmicas, contudo, sem “as poções mágicas”. Dubourdieu era adepto da agricultura orgânica e sustentável.Já sobre as mudanças climáticas, dizia que elas definitivamente estavam afetando a produção e, por isso, ele estava adaptando a vinificação aos poucos. Dubourdieu não costumava falar de projetos futuros e será difícil para o mundo, daqui em diante, falar sobre vinhos brancos sem mencionar o legado do professor.