Sagrantino de Montefalco, um clássico esquecido na Úmbria
Patrício Tapia Publicado em 14/06/2013, às 08h32 - Atualizado em 18/09/2023, às 15h25
A vinícola é feita de pedra e madeira. As vigas grossas suportam o teto enquanto as paredes são feitas de blocos de granito, cada um do porte de um sofá. Giampiero Bea é arquiteto e a construiu faz uns sete anos, e, ainda que se trate de uma construção moderna, está muito em sintonia com as edificações austeras e severas de Montefalco, Úmbria, no centro da Itália.
Essa austeridade também perpassa os vinhos, sobretudo os feitos com a uva local, a Sagrantino, uma cepa tinta que esteve a ponto de desaparecer há cerca de duas décadas e que hoje, graças a pessoas como Bea e muitas outras, é objeto de um emocionante “revival”.
O Sagrantino, claro, é um vinho tão austero quanto às construções de Montefalco; um vinho que mais do que uvas, parece ser feito de pedras.
Durante toda a sua vida, Giampiero Bea viu como seu pai, Paolo, trabalhou no campo. Via-o levantar-se de madrugada e voltar à noite, cansado, encarregando-se dos animais do estábulo. E assim todos os dias.
A propriedade também, com certeza, incluía vinhedos de Sagrantino com os quais o pai produzia Passito, o estilo mais tradicional de Montefalco – um vinho doce, de cerca de 15º de álcool, feito com uvas desidratadas.
Desde 1979, Bea via um caminho no vinho engarrafado. Naquele ano, Montefalco obteve o status de DOC (desde 1992 é uma DOCG). E ainda que Sagrantino seguisse morrendo, desaparecendo diante da onda da Sangiovese (ainda a mais plantada nesta área), outras famílias também se entusiasmaram em fazer um vinho com seus próprios nomes e dentro de suas garrafas. Nessa primeira safra de 1979 fizeram 700 garrafas de Montefalco Rosso Secco.
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Há cinco anos, Bea ainda trabalhava como arquiteto. Dividia seu tempo entre a vinícola e sua profissão, mas decidiu deixar a arquitetura e se concentrar 100% na empresa. Hoje, a Antica Azienda Agrícola Paolo Bea é uma das mais importantes referências de Sagrantino.
Dos 12 hectares da propriedade, pouco mais da metade está plantada com essa cepa, e desses hectares, quatro correspondem ao vinhedo de onde se obtém Pagliaro, talvez o melhor Sagrantino e também um dos meus favoritos de toda a denominação.
“Gostava da ideia de gerar um vinho, não de produzi-lo, porque alguém não pode produzir algo natural, como o dia ou a noite”, resume Bea sobre sua aproximação com o Sagrantino em particular e com todos seus vinhos em geral (faz brancos maravilhosos). Uma visão que para muitos tem bastante do movimento dos vinhos naturais, muito na moda hoje em dia.
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A Azienda não usa muito mais que suas uvas, seus cultivos são orgânicos e emprega algumas técnicas biodinâmicas, ainda que Bea esclareça que eles não são uma vinícola 100% “biodinâmica”.
O vinhedo de Sagrantino para Pagliaro encontra- se em um dos solos mais calcários da propriedade, uma condição que é similar nos melhores vinhos de Montefalco e que parece acentuar a genética tanicidade da uva, seu grande corpo e sua potência.
“O Sagrantino é como o caqui: se você não come maduro, é impossível de comer”, acrescenta Bea, aludindo à sua tendência de colher tarde as uvas para evitar, em parte, a adstringência em seus vinhos em uma cepa de bagas e uvas pequenas, mas de pele grossa e grande acidez.
Apesar dessa madurez, e até mesmo em anos muito secos como 2005 ou definitivamente quentes como 2007, Pagliaro mostra uma estrutura que parece suportar tudo, como esses blocos de pedra com que foi construída a vinícola dos Bea. Meu favorito, da safra 2006, um ano mais fresco e chuvoso, mostra um lado do Sagrantino acessível pouco usual, repleto de sabores de frutas vermelhas maduras e de flores.
A safra 2006 é talvez a de menor guarda; as outras dão vinhos que devem ser bebidos com 10 anos de garrafa. Não é por nada, a lei da denominação diz que o Sagrantino de Montefalco deve passar três anos maturando, dos quais ao menos um deve ser em madeira, os botti de Paolo Bea ou as barricas francesas que muitos novos produtores (a maioria é nova em Montefalco) estão usando para acalmar a adstringência de seus vinhos.
Talvez o mais famoso entre esses produtores modernos seja Arnaldo Caprai, a quem com justiça se atribui a revitalização do Sagrantino e o interesse que ele vem causando no mundo do vinho nos últimos anos.
Na periferia de Montefalco, reúno-me com Attilio Pagli, o consultor que desde 1991 desenha os vinhos da Azienda Caprai. É um dia lindo para visitar o vinhedo. O céu está limpo, as folhas de um verde intenso refletem a luz do sol e as montanhas, os Apeninos e os Montes de Martani (que rodeiam a área), são como paredes de picos nevados.
Ainda que estejamos a algumas horas da Toscana e aqui não haja grandes castelos nem vilas se inclinando nas colinas, a paisagem é igualmente encantadora.
Quando Pagli chegou à região, em 1991, ninguém sabia sobre Sagrantino. O lugar, hoje um destino turístico que recebe cerca de 250 mil visitantes por ano, tinha apenas um par de albergues. Quanto ao vinho, Pagli calcula que nesses anos não havia mais do que 60 hectares de Sagrantino que sobreviviam por ali. “Hoje deve haver cerca de 1.500”, garante.
Além dos investimentos na vinícola e na promoção da região, a tarefa principal de Caprai foi estudar o Sagrantino, encontrar vinhas e reproduzi- las. Pagli se lembra que a primeira vinificação que fizeram foi graças à safra 1991 e que mandou analisá-la para aprender mais sobre a uva.
No laboratório, pediram-lhe desculpas, disseram que a quantidade de polifenóis não podia ser aquela que atestavam as máquinas, três vezes mais que a Cabernet Sauvignon – 7 gramas por litro –, o que era impossível. Ele lhes disse que no parecer não havia erro, que a uva era assim. E assim era. “Se você não gosta dos taninos, é melhor não se meter com o Sagrantino”, diz Pagli, sorrindo.
Os pontos de maturação e também – tal como Bea – as longas macerações para que os taninos polimerizem (formem cadeiras maiores de moléculas) parecem ser dois pontos-chave para que o Sagrantino possa ser bebido, para que obtenha suavidade. “Se separasse o vinho muito cedo de suas peles, o resultado seria um tinto muito simples e, às vezes, tremendamente tânico. Contando a fermentação, eu macero por uns 60 dias”, conta Pagli.
Logo, o vinho fica dois anos em barricas francesas. Se se trata do Collepiano, o segundo Sagrantino na hierarquia de Caprai, as barricas são um terço novas. Atenção com esse Sagrantino, um dos meus favoritos.
Trata-se de uma seleção dos vinhedos da vinícola e, com anos de guarda, é uma excelente aproximação (e não tão cara) da cepa. Aromas florais, leves notas de grafite, muita fruta vermelha madura e essa estrutura tânica e ácida que parece ser feita de cimento em vez de frutas.
O Sagrantino mais importante de Caprai é o 25 Anni, um 100% Sagrantino que vem de dois vinhedos (que somam 7 hectares no total) e que correspondem aos solos mais calcários da propriedade. Esse 25 Anni passa dois anos em barricas novas e é preciso ter cuidado com ele.
Quando jovem, é impressionante na boca: uma massa de sabor e de taninos. Sem dúvida, à medida que envelhece, vai ganhando em complexidade, mas também em suavidade, sem perder essa coluna vertebral de acidez e taninos, mas muito mais integrados. Um dos melhores Sagrantino que provei foi, por exemplo, o 25 Anni 1997, um vinho que deixou toda a sua frutuosidade de lado e que só mostra a terra em que nasceu.
“Se você não gosta dos taninos, é melhor não se meter com o Sagrantino”
“Vinhos que não parecem ter sido feitos de uvas”, é uma frase que volta à mente enquanto se degusta os vinhos da Fattoria Colleallodole Milziade Antano, uma das vinícolas mais tradicionais – no estilo – de Montefalco. Francesco Antano, um homem de cabelo comprido, que mais parece um roqueiro do que um viticultor, está hoje no comando desse pequeno projeto que nasceu em 1967 e que tem 12 hectares, cinco dos quais de Sagrantino.
Antano não acredita na tecnologia. Em sua vinícola, não há sistemas de resfriamento nem computadores, nem nada que se pareça com isso. Tampouco acredita nas barricas francesas (“Não gosto do sabor que deixam”, diz). Os vinhos são feitos no subterrâneo, maturam em tonéis velhos e são engarrafados sem muito mais que uvas e tempo – a mesma paciência que empregam Bea ou Caprai em seus Sagrantino.
Em Antano, sem dúvida, tudo parece mais artesanal ou, talvez, menor. Das três vinícolas, é a menos conhecida, mas também a que faz os Sagrantino com mais personalidade que conheço. Você ama ou odeia. Eu os amo, especialmente um Sagrantino de pequeno vinhedo que Antano elabora desde 1997: Colleallodole.
Sagrantino são tintos feitos a partir de taninos e acidez, sem “decoração” de fruta
“Posso dizer que o vinhedo de Colleallodole tem 4 mil metros quadrados e que está aqui por perto, mas não posso dizer onde, pois é um segredo. Sou ciumento. Não tanto de mulher, mas de minhas vinhas”, diz Antano, soltando uma gargalhada enquanto provo o Colleallodole 2006, um vinho que não cheira a frutas, mas terra e flores.
A estrutura é a mesma dos melhores Sagrantino de Montefalco: austeridade, nada de dulçor (nada, zero) e taninos firmes como se fossem feitos de granito.
Tanto Colleallodole como Pagliaro ou 25 Anni são vinhos difíceis se estamos acostumados a beber a madurez e o dulçor dos tintos do Novo Mundo. O Sagrantino, independentemente se é feito com alta tecnologia ou com a mais pura das artesanalidades, é um vinho que não se entrega facilmente, ele lhe desafia.
Nesse sentido, parece-se com outras cepas como a Baga da Bairrada, a Nebbiolo do Piemonte, ou até o Tannat dos solos argilo-calcários dos arredores de Montevidéu, no Uruguai. Tintos feitos a partir de taninos e acidez, antes de serem feitos de uma mera decoração como costuma ser o sabor da fruta.