Uma aula sobre o mercado do vinho - e também sobre produção - com Christopher Cannan, um dos maiores negociantes do mundo, que representa alguns dos mais tradicionais produtores da Europa
por Christian Burgos
Christopher Cannan é uma daquelas figuras especiais do mundo do vinho, um gentleman com discurso polido, claro e num ritmo que denota, ao mesmo tempo, conhecimento e a paciência para que você possa absorver – quase degustar – sua experiência. Homem do mundo, formado em línguas, participou do movimento que reformulou o mundo do vinho e o fez se globalizar. Educado no Reino Unido, casou e vive em Bordeaux – sua filha está se formando pela OIV, vive em Barcelona e o ajuda nos negócios; seu filho mora no Canadá trabalhando no marketing da Möet Hennessy.
O mundo parece pequeno para este homem, que passou poucos dias no Brasil recentemente e logo embarcou para os Estados Unidos .Mas ele definitivamente domina a arte do tempo. Para começar, perguntamos quanto tempo tínhamos, pois ele devia estar com pressa e a resposta foi: “Não tenha pressa, é bom tomarmos o tempo necessário para fazer bem as coisas”. Palavras que só poderiam ter vindo direto do coração de um sábio produtor de vinhos.
Como começou no mundo do vinho?
Comecei viajando e aprendendo sobre vinhos pela França, Alemanha, Espanha e Portugal. Em seguida, na década de 1970, trabalhei como assistente de exportação para uma companhia de Nova York. Eu ficava na Europa. No começo de 80, eles fecharam o escritório na Europa, mas continuei, e foi assim que comecei a Europvin, com o objetivo de selecionar a melhor qualidade em cada região produtora e exportá-la para o mundo. Servimos ao importador selecionando vinhos e cuidando da logística, e servimos ao produtor operacionalmente e por conhecermos os mercados em mais de 50 países.
"Devido a hoje existir um excesso de produção no mundo, não há espaço para um vinho ruim"
Você começou muito tempo atrás visitando muitas regiões, mas o negócio do vinho não estava em sua família. Qual foi sua motivação?
Primeiro estudei línguas e sempre fui curioso pelos aspectos geográficos de terroir e os diferentes tipos de vinho. Isso foi determinante para estabelecer um de nossos princípios de escolher vinhos que tenham qualidade, mas que sempre representem bem sua região. E também tem que ser vinhos que nós mesmos gostemos de beber, pois é difícil vender se for diferente [risos]... Depois estudei enologia.
Vocês representam marcas muito famosas.
Sim, embora não todas em todos os países. Entre as mais famosas estão Romanée-Conti, e inúmeros Domaines famosos da Borgonha. Por exemplo, iniciamos Guigal na Ásia. Também temos grandes do vale do Rhône, e todos os top Châteaux de Bordeaux.
Você os conheceu muito antes do boom do mercado?
Exatamente. Isso nos dá um relacionamento de anos e nos garante boas alocações desses vinhos, o que hoje seria impossível.
E fora da França?
Desenvolvemos também um lado espanhol muito forte, que começamos nos anos 80, e foi ficando cada vez mais importante. Representamos alguns dos melhores produtores espanhóis como Vega Sicilia, que se tornou um de nossos sócios. Posso citar ainda Emilio Lustau e uma clássica produtora de Rioja, a Companhia Vinícola del Norte de Espanha, que representamos em muitos mercados. Clos Mogador e alguns riojas bem mais acessíveis. E agora minha própria vinícola, Clos Figueras.
Quando começou sua vida de produtor?
Foi em 1997, com a ajuda de René Barbier, proprietário de Clos Mogador, que trabalhou conosco como consultor; e hoje temos outro produtor famoso, Alain Graillot, nos ajudando.
Como escolheu Priorato?
Conhecia o Priorato desde 1984. Naquele tempo, eu representava o único produtor da região. No fim dos anos 80, houve uma nova era de produtores que começaram; muitos graças a René Barbier, Álvaro Palácios, José Luis Perez, entre outros. Álvaro me introduziu para o novo conceito e me apresentou a René Barbier, e começamos a representar Clos Mogador. Em 1997, surgiu a oportunidade e a terra não era cara, embora todo o resto fosse: produção pequena, manejo humano. Não era uma área fácil... Era como o Douro em Portugal.
E quais são as similaridades entre Priorato e Douro?
Temos muitas similaridades. Por exemplo, a mesma mineralidade. Inclusive estamos experimentando a Touriga, embora saibamos que não é uma casta fácil. Vamos ver o que acontece.
E iniciou com quantos hectares?
10 hectares. Lá havia vinhas velhas plantadas em terraços. Tivemos que refazer alguns, pois o vinhedo tinha ficado abandonado por cerca de oito anos. Fomos capazes de começar em 2000. Hoje temos 80 com 12 plantados.
Quanto é a produção hoje?
Devido ao solo, produzimos muito pouco. Somando tudo, fazemos umas 25 mil garrafas por ano, que podemos aumentar até 30 mil.
Nenhum geólogo confirmou, mas acredita-se que é o mesmo veio de xisto que se encontra nas duas regiões (Douro e Priorato)
Como estão divididos os vinhos?
Produzimos nosso vinho Premium de vinhas velhas, mas também produzimos um vinho com estilo mais jovem de vinhedos mais novos, onde a característica é capturar a fruta. Além disso, produzimos vinho branco, por acidente.
Como isso aconteceu?
Quando comprei mudas na França, ao invés de me enviarem 2 mil mudas de Cabernet Sauvignon, enviaram-me a quantidade certa, mas umas poucas de Cabernet e a grande maioria de Viognier [risos]. Levou dois anos e, por fim, descobrimos o engano. Enviaram-nos 2 mil novas mudas de Cabernet gratuitamente, mas o Viognier estava tão feliz que decidimos mantê-las e plantar o Cabernet em outro local da propriedade. Por isso, felizmente temos um vinho branco, o que não era a ideia. Queríamos apenas um pouquinho de Viognier para cortar com o Syrah.
Mas você usa outras brancas no corte com as tintas?
Agora estamos usando outra casta para esse corte, a Grenache Branca, uma variedade local, assim como a Chenin Blanc, outra variedade oficial no Priorato muito boa para a acidez. Agora a Viognier é oficial também.
O que chama sua atenção nos vinhos do Priorato?
O que gosto no Priorato é que ele é distinto. Tem mineralidade e boa acidez. Muitas pessoas pensam que os vinhos do Priorato são pesados e alcoólicos. Claro que são alcoólicos por causa do clima, mas com boa acidez você tem o equilíbrio.
Como se alcança essa qualidade de acidez?
Principalmente por causa do solo. Há tão pouca chuva de maio a setembro que as raízes têm que se aprofundar por um longo caminho, mais de 20 metros, através do xisto e, nesse nível, adquire- se muita mineralidade e complexidade.
É realmente parecido com o Douro então.
Nenhum geólogo confirmou, mas acredita-se que é o mesmo veio de xisto que se encontra nas duas regiões. Ninguém nega isso, mas tampouco é oficialmente correto. Há campo para pesquisa.
Desde o começo, você recebeu notas maravilhosas de críticos como Parker. Você o conhece? Conheço Robert Parker há muito tempo. Quando começou, ele costumava degustar em nosso escritório todos os anos. Ele ama o que faz. É muito entusiasmado. Eram longas degustações. Uma vez foram 200 vinhos em um dia. Sempre tivemos uma forte relação com ele. Hoje é muito mais difícil encontrar vinhos com defeitos do que no passado, o que é ótimo para o consumidor. Como você vê isso? Devido a hoje existir um excesso de produção no mundo, não há espaço para um vinho ruim.
O que acontece com os vinhos ruins?
Ou são destilados ou destruídos, não existe mercado para vinhos ruins. Por exemplo, isso aconteceu com os vinhos australianos de baixa qualidade. Um país que produz vinhos maravilhosos e que teve sua imagem arranhada pela alta produção que conduziu a vinhos ruins.
"Tem que ser vinhos que nós mesmos gostemos de beber, pois é difícil vender se for diferente [risos]..."
O que o motiva no mundo do vinho?
Duas coisas especiais no negócio do vinho são o fato de você nunca parar de aprender, mesmo após 40 anos nesse mercado, e as pessoas que encontramos.
O que mudou no vinho desde que você começou?
Uma é algo que falamos: há muito poucos vinhos ruins. Lembro de meu primeiro trabalho na importadora norte-americana, quando meu trabalho era falar com as pessoas no vale do Loire sobre a safra de 1972, que foi absolutamente horrível. Os vinhos eram péssimos, eram tão ácidos que não dava para beber, e você não pode vender vinhos assim. Esse tipo de coisa acabou. Graças ao aquecimento global, mas também a uma melhor compreensão do mercado sobre o significado do que é vinho de qualidade.
Nesse caso, o aquecimento global foi benéfico?
Isso depende de onde olhamos. As áreas mais quentes sofreram. Mas muitas estão buscando a altitude. O aumento do nível de álcool é um problema em todo lugar, mas pode-se controlar.
Como o aquecimento global afetou seu projeto?
No Priorato, não sofremos tanto por causa da altitude e da proximidade com o mar – 500 metros de altitude, brisa fresca e noites mais frias. Embora o nível de álcool seja maior na Grenache, são baixos no Carignan e Syrah, e assim podemos balancear as coisas. Temos outro projeto separado chamado Espectacle. Um projeto com René Barbier em um pequeno vinhedo que produz apenas 5 mil garrafas de um vinhedo de 100% Grenache, com vinhas de 120 anos, sendo metade dele plantado em pé franco pré-filoxera. Iniciamos em 2004 e, nesse projeto, vinificamos em um carvalho num barril único de 4 mil litros que trocamos todos os anos.
Deve ser caríssimo de produzir?
Exatamente. Não é um vinho barato. A primeira safra recebeu 99 pontos de Parker.
A Grenache é muito importante em seus projetos. Como entende essa casta?
Participamos do lançamento do simpósio de Grenache e estamos tentando colocá-la no mapa como uma das grandes variedades do mundo, pois ela merece. Nossos vinhos, como Espectacle, demonstram o potencial dessa uva como monovarietal. Mas ela também é muito boa para blends, tendo a Grenache em alta proporção, como vemos em muitos grandes vinhos australianos de qualidade. Existem vinhas bem antigas de Grenache na Austrália, assim como no Priorato. Durante anos, a Grenache foi maltratada e isso prejudicou sua imagem.
Também está plantando Mourvèdre?
É uma variedade mediterrânea com origem no sudeste da Espanha, e eu queria tentar. Em nosso vale, temos lençóis subterrâneos e está levando muito tempo. Plantamos em 1998 e, passados 12, 13 anos, está chegando ao ponto. Talvez o alcancemos em mais quatro ou cinco anos.
Duas coisas especiais no negócio do vinho são o fato de você nunca parar de aprender, mesmo após 40 anos nesse mercado, e as pessoas que encontramos
Nessas regiões especiais, onde encontramos solos muito rochosos, os primeiros anos são muito difíceis para as vinhas. Mas depois compensa, não?
As raízes das vinhas nem sempre conseguem extrair água do solo. Nos anos iniciais da vinha, durante o verão, é muito difícil. Então algumas precisamos irrigar, caso contrário a vinha pode não sobreviver. Depois de dois anos você pode parar de irrigar.
É preciso de fé para tentar fazer algumas coisas como plantar e esperar tanto tempo para só daí ver o resultado. Para um homem de negócios, é uma boa terapia estar ligado de alguma maneira à terra e à natureza. Isso desenvolve a paciência?
Interessante este ponto. Isso nos dá uma perspectiva diferente. Realmente precisamos de muito tempo para criar algo assim. Nosso Cabernet, por exemplo, demorou oito anos para realmente chegar ao ponto.