Como o uruguaio Alejandro Cardozo se tornou uma das principais referências em enologia no Brasil
Não há estrelismo. A conversa com Alejandro Cardozo – uruguaio nascido em Montevidéu, mas que montou sua sólida carreira enológica no Brasil – é sempre franca e direta, não importa o assunto. Ele vem recebendo enorme atenção da mídia, assim como diversos prêmios e reconhecimentos recentemente. E tudo graças aos vinhos que produz, ou ajuda a produzir.
Há bastante tempo, seu trabalho com espumantes tem se destacado, tanto que, em 2005, criou a Estrelas do Brasil junto com o sócio Irineo Dall’Agnol – um projeto que, ano após ano, comprova sua excelência nesse campo. A trajetória de Cardozo é bastante longa e ele tem ido cada vez mais longe e para outras vertentes, prestando consultoria para diversas vinícolas e, com a EBV (Empresa Brasileira de Vinificações, criada em 2017 para entrar no setor de terceirização de produtos), literalmente produzindo vinhos de alta gama para várias empresas.
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A fama de Cardozo de produzir grandes espumantes não se restringe ao Brasil. Seu nome é reconhecido em toda a América do Sul. Grande conhecedor, ele também não tem medo de experimentar e foi um dos primeiros, pelo menos por essas bandas, a apostar em mesclas com Viognier e Trebbiano, além de espumantes de única fermentação e ainda no uso de leveduras encapsuladas. Rosés, brancos e tintos – especialmente Pinot Noir – também estão em sua mira, com produtos cada vez mais originais. No Brasil, Cardozo dá assistência para vinícolas desde a Serra até a Campanha Gaúcha, chegando em Minas Gerais, isso sem falar de projetos em seu Uruguai natal, Argentina e Chile. Nessa conversa, conhecemos um pouco mais de sua trajetória e suas ideias.
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- Como foi parar no mundo do vinho?
Acho que foi casualidade. Embora não tenha sido tanta, porque meu avô tinha uma área de 10 hectares totalmente tomada por vinhedos na parte rural de Montevidéu. Como meus pais tinham trabalhos que não tinham nada que ver com uva ou vinho, o vinhedo foi desativado. Então, não estava vinculado ao mundo do vinho. E parece piada, pois o endereço da casa dos meus pais é Caminho dos Vinhedos. Mas fui fazer outra coisa, estudei para engenharia química. E, em um momento, um amigo que não via há muito tempo me disse: ‘Estou fazendo enologia’. Ele me motivou a fazer também e fui. E aqui estamos.
- Começou trabalhando onde?
Estudei no centro de enologia em Canelones, na cidade de Colorado. Tinha um amigo que trabalhava em uma ótica e o dono tinha uma vinícola pequena, muito artesanal. Não se ainda hoje existe. Trabalhei lá um mês. Então, em maio de 1993 comecei a trabalhar na Varela Zarranz. Estudava e trabalhava. Eu me dediquei a montar o laboratório e passava todas as noites fazendo análises. Foi uma experiência muito bacana, porque depois passei por todos os postos da empresa. Passei por lavagem de garrafas, enchedora, rotuladeira, empacotamento, carga de caminhão, limpeza, organização. Só depois entendi o porquê. O cara estava me preparando para dirigir a empresa. Trabalhei lá até o ano 2002.
- O que aconteceu depois?
Fui para Portugal, com o Osvaldo Amado [enólogo português], e foi ele que me deu muito gás para trabalhar com espumantes. No fim de 2002, vim para cá [Brasil], tive uma proposta da extinta Companhia Piagentini. Naquela época, ela vinificava produtos populares e era importadora de vinhos finos. E aí a empresa decidiu apostar em vinhos finos. Então criamos a linha Décima, que foi um sucesso.
- Foi aí que começou a criar novas coisas? Experimentar?
Comecei a sentir muita falta da informação. Procurava informação e não tinha. Não era como hoje que pego o WhatsApp e falo com alguém de qualquer lugar do mundo. Quem transmitia as informações eram os vendedores de produtos enológicos. Mas, no final, você falava com um e com outro, e todo mundo falava a mesma língua. E se todos falamos a mesma linguagem, como vamos ser diferentes? Como se sobressai da média se está todo mundo fazendo tudo igual? Aí decidimos montar um centro de pesquisa dentro da empresa, que funcionou muito bem e nos abriu muitas perspectivas. Começamos a fazer coisas que, na época, eram meio malucas.
- Que coisas malucas?
Fermentamos os vinhos base em barrica. Naquela época, se você falasse isso, os caras davam risada. Começamos a fermentar os espumantes com rolha em 2010, utilizar Viognier, começamos a questionar muito os Charmat. Porque afinal, o que estamos fazendo? Estávamos fazendo com que o Charmat fosse mais parecido com o Champenoise. Para quê? Para isso toma o método clássico, né? Então mudamos muito. Foi quando entrou um personagem na história, um amigo, que também é consultor, Fernando Cordoba, do Chile, e começámos a entrar em outro universo dos espumantes.
- O que mudou?
Em março de 2010 demos o kickoff para espumantes de única fermentação. Primeiro migramos de usar leveduras normais – que todo mundo utilizava – para começar a elaborar com leveduras de Sauvignon Blanc, aromáticas. Ao mesmo tempo, passamos a usar leveduras de Sauvignon Blanc nos Moscatéis. E isso se transformou numa tendência. Até então estávamos fazendo Charmat como se fosse Champenoise e o Champenoise como se fosse Charmat. Isso estava muito fora da realidade. E nesse momento, conversando com uns amigos que tinham estado na Itália, falando sobre como faziam o Prosecco, decidi testar congelar o mosto e lançar um espumante de única fermentação. Foi uma loucura. Saímos de um Prosecco que, era uma porcaria, para ter um baita de um Prosecco, fresco, frutado, parecia suco de pera. Entre 2011 e 2012 fizemos algumas besteiras no meio do caminho, mas era tentativa e erro porque ninguém tinha muita informação. E, em 2013, demos uma dentro. Migramos toda a linha para única fermentação a partir do mosto e, junto com isso, começamos utilizar madeira na fermentação. E também mudamos a cor dos espumantes, criando um rosado muito claro, muito elegante. Foi um divisor de águas, sobretudo pela cor e pelo estilo de espumantes frescos e frutados.
- Quais as diferenças dos espumantes de única fermentação para “convencionais”?
O espumante de única fermentação parte do mosto e acontece a primeira e a segunda fermentação num único processo. É um processo contínuo de fermentação, ou seja, transforma-se o mosto em vinho e, no caminho, transforma o vinho em espumante. Esse é o grande pulo. São espumantes muito frescos, muito aromáticos, com muita fruta fresca.
- Quando começou a prestar consultoria?
Em 2010, comecei a ajudar a Guatambu a elaborar os espumantes. Comecei a dar assessoria mesmo foi de 2010 em diante, no Uruguai, com um projeto pequeno na H. Stagnari e depois disso provoquei a Varela Zarranz para elaborar um espumante. E assim foi andando.
- Quando e por quê criou a Empresa Brasileira de Vinificação?
Vi que tinha uma brecha gigante no mercado de terceirização, pois muitas e muitas empresas terceirizam, mas, ao final, elas são concorrentes do terceirizado. Ambos têm suas marcas. Então, pensei em terceirizar espumantes e vinhos de alta gama. Começamos a operacionalizar a empresa em janeiro de 2017, no dia 6, e no dia 9 já recebemos as primeiras frutas. Fomos nos profissionalizando em alguns temas, obviamente espumantes, tanto clássico como Charmat, vinhos brancos, rosés e, no caso dos tintos, muito focado em Pinot Noir. Quero produzir tintos de boa cor, mas que a fruta seja o player principal e a madeira um coadjuvante para sustentar essa fruta. Temos que vender o vinho, não a barrica, né? Montamos um departamento de pesquisa e desenvolvimento gigante. Elaborarmos quase 600 ou 800 garrafas só em pesquisa. Hoje, aqui passam mais de 40 empresas em distintas formas de trabalho.
- Os espumantes brasileiros evoluíram tanto assim nos últimos anos?
Acho que temos duas questões que mudaram, uma tecnologicamente e outra de clima. Se você analisa as últimas afras, temos boas safras direto. Estamos com uma situação de mudança climática que é real. E tecnologicamente as empresas estão muito mais equipadas. Além disso, o conhecimento circula muito mais hoje. Tem mais informação, mais conhecimento, mais tecnologia e São Pedro fazendo sua parte. E outro fator que faz todo mundo se desenvolver é a concorrência. Todo mundo tendo produtos melhores faz com que todo mundo cresça.
- A escola dos espumantes brasileiros é 100% francesa?
Inevitavelmente, quem gosta de espumante não pode deixar de olhar para Champagne. Não tenho como não estar, ano sim, ano não, em Champagne. Em função disso, nossos espumantes de método clássico têm uma escola francesa por trás, é inevitável. Utilizamos vinhos que passam por barrica, blend de safras, fermentamos com rolha... O que fazemos de diferente? Estamos em outro lugar do planeta que não tem nada a ver com Champagne, fermentamos os vinhos de forma diferente com outras leveduras, com outras técnicas, que têm nossa marca. Além disso, os blends são mais amplos, com Viognier, Trebbiano e não só Chardonnay e Pinot. No Charmat, há muitas coisas no estilo dos italianos. Mas, de novo, não vamos fazer igual, porque estamos no Brasil. Mas, sim, dentro desse contexto, entendendo como eles elaboram, a cremosidade, a limpeza de boca, a intensidade aromática, a fruta que entregam. Isso não é um sucesso à toa.
- Você foi um dos primeiros a usar Viognier, Trebbiano e Riesling com mais afinco nos blends. Por que escolheu esse caminho?
Seguíamos fazendo o mesmo que todo mundo faz... Gosto muito do Viognier por algumas características. Primeiro, ele aporta muito meio de boca, dá muita untuosidade e ainda tem o aspecto floral. Ele tem uma acidez um pouco mais baixa, que em teoria não seria boa para elaborar espumantes. Porém, frente a um Trebbiano, que tem uma acidez altíssima, dá um baita de um equilíbrio. E isso ainda com a elegância e finesse do Chardonnay e com o Riesling, e ainda cortado com safras mais antigas... Bem, aí o show é outro. Falo isso para o método clássico. Para o Charmat, uso uma porcentagem importante justamente porque são espumantes mais florais e frutados. O volume de meio de boca e as notas florais que o Viognier aporta contrabalançam o Trebbiano e eles fazem uma belíssima combinação.
- Pode falar a respeito das leveduras encapsuladas, que de certa forma também são uma aposta sua?
Quando vi esse negócio em Portugal disse: ‘Cara, isso aí é espetacular’. E comecei a provar produtos mais antigos com levedura encapsulada. A cremosidade, a delicadeza, era incrível. Em 2006, começamos a utilizar leveduras encapsuladas e continuamos por um tempo com um resultado fantástico. Até que o importador se desestimulou de trazer devido às dificuldades. E então paramos. Mas agora conseguimos um importador novamente. Fazemos muitas degustações, comparando várias leveduras e, quando as pessoas provam os espumantes, sempre há um que dizem: ‘Gosto mais disso’. E normalmente é levedura encapsulada. O produto fica mais elegante, mais cremoso, mais franco aromaticamente. É fato que a levedura encapsulada demora mais para fermentar, cerca de 15 ou 20 dias, que uma levedura livre. Mas justamente essa demora faz com que o produto fique mais cremoso. Obviamente que há clientes que preferem usar a levedura livre. Mas a levedura encapsulada, para nós, é um caminho sem volta.
- Qual a diferença entre elas?
A levedura “normal” é a que está solta, como a que compramos para fazer pão em casa. A encapsulada está presa em uma cápsula de calcinato de cálcio. Essa cápsula tem permeabilidade que permite que o líquido circule através dela, mas a levedura não. Isso faz com que a fermentação seja um pouquinho mais lenta, porém com qualidade excepcional.
- Isso também influencia na remuage, no dégorgement... Reduz custos?
Enquanto uma levedura encapsulada custa 250 dólares o quilo, uma normal custa 80 dólares. Porém, o líquido está sempre limpo, não tem remuage, não há pupitres, não há giropalete. E tenho pronta entrega. Se amanhã preciso de uma garrafa, vou na pilha, faço o dégorgement e está pronto. Além disso, a perda por garrafa é menor. Perco menos mililitros por garrafa no dégorgement porque o produto está limpo. Parece conversa de preguiçoso, não querer remuage etc., mas, quando começa a somar tempo e pessoas, aquela conta gigante começar diminuir. O produto fica bacana, cremoso, limpo e, ao mesmo tempo, economiza tempo e tem disponibilidade de garrafa.
- Dá para consertar no laboratório alguma coisa que vem ruim do vinhedo?
Dá para consertar, sim, mas tem algumas coisas que são muito mais difíceis de arrumar. Uva com podridão é “inconsertável”. Se você faz alguma coisa com isso é como pentear macaco. Não tem o que fazer. Se você soluciona para que tenha menos aromas ruins, menos sabores ruins, vai continuar sendo ruim. E outro problema é a uva verde. Em uma situação de acidez dura, amarga, por mais que você faça, a acidez amarga está lá, dentro do vinho. Muitas vezes, o conserto é equilibrar com açúcar e aí é uma c... maior, porque fica doce e ácido. Para mim, estes são os dois maiores problemas. Existem algumas coisas para pentear o macaco, mas é preferível não trabalhar com isso.
- Você agora está recebendo frutas do sudeste também?
É um belíssimo do desafio. As uvas vêm de Minas Gerais até Caxias do Sul para elaborar vinhos em um estilo um pouco diferentes do que há lá. Mantendo um perfil voltado à fruta, acidez e frescor. Isso é um pouco o nosso conceito de vinhos. Há a questão da poda invertida, em que a uva amadurece no inverno, e a planta está alentecida. Isso dá uma característica muito especial à fruta. O maior desafio foi dar um ponto de colheita para o nível de acidez e pH que queríamos. Foi uma quebra de paradigma, pois geralmente se esperava a uva com sobrematuração. Acho que já há um estilo de vinhos do sudeste. Então, estamos tentando mudar um pouco esse perfil, então pode se tornar um vinho que dê outra cara ao sudeste.
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