Amarone Dolce Amaro

Em Valpolicella, a combinação das uvas, o processo e o terroir resultam em garrafas de riqueza ímpar

por Silvia Mascella Rosa

"Deste lado da estrada estamos em Valpolicella, onde as uvas tintas dominam. Do outro lado da estrada fica Soave, território das uvas brancas", comenta Mauro Menozzi, diretor comercial da vinícola Gerardo Cesari (moderna produtora de Amarone e Ripasso), ao chegar na sede da empresa, em Cavaion Veronese, na localidade de Sorsei.

A estrada em questão é uma das que levam o visitante que sai da cidade de Verona até o Lago de Garda, duas atrações imperdíveis para quem visita a Itália.

Durante o inverno, a dormência das parreiras esconde a exuberância vitícola da região, histórica, rica, bem cuidada e preservada, que é - para o prazer dos enófilos - uma das mais variadas do país.

Mesmo produzindo muitos vinhos mais fáceis e populares - como os Soave da uva Garganega, que formam a maior DOC de vinhos brancos italiana -, essa região do nordeste do país produz, também, um vinho muito distinto e valorizado, o Amarone, cujo território fica dentro de Valpolicella, compartilhando uvas e dividindo opiniões.

Estrada separa os vinhedos tintos de Valpolicella dos brancos de Soave

Geografia delicada
As colinas, que dominam a paisagem saindo da cidade de Verona em direção ao norte, vão subindo até a altitude máxima de 400 metros acima do nível do mar. São pequenos vales que envolvem cidades medievais pitorescas e alguns descem suavemente em direção ao Lago de Garda, cuja umidade os atravessa.

Dentro da Denominação de Origem Controlada de Valpolicella estão, ainda, vales mais largos, na direção leste do país e mais frios na direção norte, a caminho do Trento e dos Alpes. Bastante uniforme no geral, são os microclimas e os pequenos córregos que definem as separações dos vales encarregando-se de dar particularidades ao terroir.

As uvas que fazem a fama da região são a Corvina (Corvina Gentile ou Cruina) e a Rondinella. A Molinara ainda é uma das uvas complementares da composição dos Valpolicella, mas, desde 2010, não faz mais parte dos Amarone DOCG. Também são aceitas pelas regras da DOC as seguintes castas (que não podem compor mais do que 10% do vinho): Dindarella, Osereta, Negrara, Sangiovese, Cabernet Sauvignon e Franc e Teroldego

Uma das particularidades da região é que muitos vinhedos são conduzidos no estilo da pérgola simples, com parreiras altas, aramadas e suportadas por vergalhões de concreto.

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Um Amarone não leva menos de três anos para ficar pronto, estagiando em barricas eslovenas e francesas

Para o Amarone DOCG, é preciso ter no mínimo 40% de Corvina (acima)

Estilo histórico
A história oficial conta que, no século IV, um dos chefes representantes do rei Teodorico, dos visigodos, escreveu-lhe uma carta descrevendo um vinho chamado Acinatico. Ele era produzido na região de nome Valpolicella com uvas parcialmente desidratadas (a propósito, o nome da região parece ser derivado das palavras latinas "Vallis-pollis-cellae", que significa vale de muitas vinícolas).

Para os pesquisadores, esse vinho Acinatico é o antecessor do Recioto e do Amarone. Pela linha temporal, ele teria sido o primeiro, seguido do Recioto, um vinho doce e aveludado feito com uvas tintas passificadas. Como quase todos os vinhos do mundo, o Recioto também foi se tornando cada vez menos doce, mudando seu estilo para o seco, Amaro (amargo) ou Amarone, em italiano.

Apenas no começo do século passado é que as garrafas de Amarone - até então uma produção familiar e local - começaram a aparecer no mercado e ficaram realmente populares depois da II Guerra Mundial, até se tornar uma DOC em 1968.

A popularidade custou caro aos Amarone, antes um vinho raro e valioso e, durante algumas décadas do final do século XX, alguns rótulos perderam qualidade devido a uma produção desordenada, que visava apenas suprir a demanda do mercado.

Foi somente neste século, quando alguns Amarone chegaram a ser vendidos nas prateleiras dos supermercados, que a região reagiu e resolveu modificar as regras de produção e controlá-las mais rigidamente.

"Nos últimos três anos, os produtores da DOC e da DOCG estão sendo submetidos a controles bastante rígidos, que incluem até uma pesagem rigorosa das uvas que entram na cantina com o objetivo de determinar quantas garrafas poderão ser feitas no máximo de cada um dos vinhos", conta Mauro Menozzi.

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O Appassimento
A colheita das uvas Corvina e Rondinella acontece entre o final de setembro e começo de outubro e, para que elas possam passar pelo processo de passificação, precisam estar totalmente maduras e em perfeitas condições físicas. Isso quer dizer que os grãos machucados devem ser retirados do cacho, para não prejudicar a integridade do conjunto que, caso contrário, poderia apodrecer antes de secar.

Para os Amarone da DOCG, é necessário utilizar um mínimo de 40% da uva Corvina e de 5% (podendo chegar até 30%) da Rondinella. Mas apenas 60% do total dessas castas podem ser passificadas, os outros 40% precisam ser vinificados normalmente.

Depois de colhidos e selecionados, os cachos são arrumados em camadas únicas sobre bandejas de madeira, plástico ou até mesmo bambu e são colocados nos "frutaio" - locais espaçosos, com excelente ventilação, muitos deles localizados na parte superior das vinícolas, que facilitam o processo de secagem sem, no entanto, permitir a formação de mofo.

Durante três ou quatro meses, as uvas secam sob o olhar atento de pessoas que controlam o processo e garantem que não apareça mofo, virando constantemente os cachos. Em alguns casos, a tecnologia pode ser utilizada para reduzir a umidade interna desses espaços, controlar a temperatura e a circulação de ar, mas a legislação não permite que ela seja utilizada para aquecer o local e acelerar o processo.

No final desse tempo - que varia um pouco de produtor para produtor -, as uvas perdem quase metade de seu peso, mas concentram açúcar natural, baixam a acidez , aumentam a glicerina e o nível de resveratrol - a substância capaz de reduzir a congestão das artérias quando o vinho é consumido em doses moderadas e controladas.

Durante três ou quatro meses, as uvas secam e perdem quase metade do peso

Produzindo o Amarone
Daí em diante, o processo para se fazer o vinho é quase tradicional. Quase, pois as uvas passificadas têm pouco líquido e são postas para fermentar em um momento em que as temperaturas externas já estão muito baixas, fazendo com que esse processo seja longo e chegue a durar alguns meses, se juntarmos o tempo de maceração.

O vinho resultante vai precisar, também, de um lento amadurecimento, que ocorre em barricas enormes de carvalho da Eslováquia e parte em barricas francesas, seguido do envelhecimento em garrafa. Um Amarone feito de acordo com essas regras não levará menos do que três anos para ficar pronto.

Mas, quando fica pronto, é um vinho único, especial e de estilo intenso, que pode agradar e desagradar na mesma medida e com a mesma força. Os críticos dizem que não é um vinho natural e, sim, um vinho de processo. Os fãs dizem que assim também é o Champagne.

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Recioto della Valpolicella é a versão doce do Amarone

Amarone são vinhos secos, mas com fundo adocicado da uva passificada

Para os enófilos, no entanto, beber um Amarone é sempre uma experiência marcante, que provoca os sentidos em direções opostas: o vinho é seco, mas com um fundo adocicado da uva passificada, é alcoólico (não pode ter menos do que 14%) e com pouco tanino, porém tem um travo de amargor final que lhe dá frescor. Tem aromas poderosos de frutas maduras e de especiarias e, quando feito por um produtor sério, é aveludado, longo, encorpado e rico.

É um desses vinhos que se destacam e são facilmente reconhecíveis para quem os bebeu apenas algumas vezes. Envelhecem muito bem devido à sua estrutura complexa, mas também podem ser feitos em estilo mais moderno, de consumo mais rápido. No entanto, jamais serão vinhos óbvios, simples, para o dia-a-dia.

São, na verdade, o lado mais intenso e profundo de uma região elegante e discreta. São o lado apaixonado do Vêneto, profundamente italianos, sinuosos como as curvas da estrada de San Pietro in Cariano.

RECIOTO E RIPASSO

O Recioto della Valpolicella é a versão realmente doce do Amarone, ou amabile, como se diz em italiano, em que a fermentação é detida antes de todo o açúcar se transformar em álcool. Já o Ripasso é, para muitos, a versão mais sofisticada e manipulada da região. O vinho Valpolicella recém fermentado é colocado em barricas sobre as sementes e cascas finais da longa fermentação do Amarone. O contato do Valpolicella com as borras do Amarone dura algumas semanas e resulta em um vinho com maior concentração de cor, taninos e estrutura. O nome Ripasso significa repassar, ou fazer novamente.

AMARONES AVALIADOS

Amarone della Valpolicella Bosan 2001 - R$ 412 - 93 pontos
Masi Costasera Amarone Classico 2007 - US$ 170 - 92 pontos
Giacomo Montresor Amarone 2006 - R$ 220 - 90 pontos

Confira as avaliações completas na seção Cave (a partir da página 83) e outros Amarones em OMelhorVinho.com.br

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