O papel do carvalho no envelhecimento, os segredos da produção até a tosta e como cada detalhe transforma bebidas em experiências únicas
por Raquel Poleto Fonseca
Por séculos, o carvalho tem sido a base para barricas que abrigam e moldam algumas das bebidas mais apreciadas do mundo, como vinhos, conhaques e uísques. O que começou como uma simples embalagem nas grandes navegações evoluiu para um componente vital na criação de sabores e aromas únicos.
No universo do vinho, o carvalho francês (Quercus robur) e o carvalho americano (Quercus alba) são os mais reverenciados, graças às suas características sensoriais.
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O carvalho teve um papel crucial no comércio marítimo. Para se ter ideia, no final do século XVII, Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luís XIV, ordenou o plantio das florestas de Tronçais e Limousin, para garantir que a França tivesse madeira suficiente para construir navios, em sua busca do domínio naval. Atualmente, a gestão florestal na França é um exemplo consolidado de manejo sustentável, com raízes no Código Florestal de 1827, criado para combater a degradação ambiental.
Desde então, as práticas de manejo foram intensificadas, resultando no dobro da área florestal desde o início do século XIX, quando o país enfrentava um declínio acentuado em suas florestas devido à exploração excessiva e à expansão agrícola.
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Em resposta, a França implementou políticas de reflorestamento que, ao longo do tempo, não apenas restauraram áreas degradadas, mas também expandiram significativamente suas florestas. Segundo o inventário florestal de 2022 do Instituto Nacional de Informação Geográfica e Florestal (IGN), a área florestal francesa tem crescido em média 0,6% ao ano desde 1985, passando de 14,1 milhões de hectares naquele ano para 17,3 milhões de hectares atualmente.
As florestas de carvalho francesas são essenciais para a produção das barricas de alta qualidade utilizadas no envelhecimento de vinhos. Esse recurso é gerido com rigor e tradição pelo Office National des Forêts (ONF). Cerca de 40% das florestas na França são de carvalho.
Existem mais de 430 espécies de carvalho no mundo, mas apenas 10 crescem em grande quantidade na França. Entre essas, apenas duas são consideradas ideais para a produção de barris: o Quercus robur, conhecido como carvalho pedunculado ou inglês, e seu parente próximo, o Quercus petraea, também chamado de carvalho séssil.
Essas duas espécies predominam nas seis principais florestas francesas renomadas pela qualidade de seu carvalho: Limousin, Vosges, Nevers, Bertranges, Allier e Tronçais (que é uma subseção da floresta de Allier).
O Office National de Forêts gerencia essas florestas por meio de um sistema conhecido como “futaie régulière”, em que os carvalhos de crescimento mais lento são removidos, permitindo que os mais rápidos e retos sobrevivam. Esse método garante que as árvores cresçam de forma vertical e sem nós, produzindo madeira de alta qualidade, ideal para diversos usos.
A ONF apoia ativamente o desenvolvimento de carvalho de grão fino usado para fazer barris, começando com a identificação das árvores mais promissoras quando elas têm 50 anos, medindo a competição de outras árvores no mesmo lote e cortando progressivamente as árvores mais fracas para que as melhores possam florescer.
A ONF até limita o crescimento do diâmetro dessas árvores a 5 milímetros por ano, o que é necessário para produzir a madeira de grão fino de alta qualidade usada para barris. As árvores são colhidas quando têm cerca de 180 anos, com um diâmetro de tronco de 80 centímetros.
A produção francesa anual é de aproximadamente 47 milhões de metros cúbicos de madeira, com 35 milhões de metros cúbicos sendo comercializados. Desses, uma pequena parte é utilizada para a produção de barricas, estimando-se que cerca de 200 mil metros cúbicos de carvalho sejam destinados anualmente para esse fim.
As florestas do Estado, que cobrem cerca de 1,7 milhões de hectares, são as mais produtivas e bem administradas, representando antigas terras reais e áreas reflorestadas com o objetivo de recuperar montanhas e encostas. O manejo dessas áreas é estabelecido para um período de 15 a 20 anos.
Mas os carvalhos para barricas não vêm somente das florestas francesas. Os Estados Unidos são outra fonte importante desse recurso. As florestas norte-americanas, especialmente aquelas destinadas à fabricação de aduelas (ripas finas de madeira) e barris para envelhecimento de vinhos, são gerenciadas com uma abordagem que equilibra sustentabilidade e qualidade, mas principalmente volume de produção
Essas florestas, predominantemente de carvalho-branco americano (Quercus alba), são encontradas em sua maior parte nas regiões central e norte do Missouri, bem como em outros estados do centro-oeste.
Em contraste à França, as florestas de carvalho americano são, em maioria, de propriedade privada, e o manejo varia conforme os objetivos dos proprietários. Essa diversidade de métodos de manejo inclui práticas como o corte seletivo, que foca em manter a saúde e a qualidade das florestas, mas sem a uniformidade e a regulação observada na França.
Estima-se que a produção anual de carvalho americano destinado à fabricação de barris seja em torno de 150.000 a 200.000 metros cúbicos. A indústria da tanoaria utiliza grande parte dessa madeira com a produção de barris para destilados, como bourbon e uísque, sendo uma das principais aplicações.
Na França, após a colheita, a madeira de carvalho é vendida em leilões públicos, organizados pelo ONF. Esses leilões são altamente competitivos, atraindo tanoarias e serrarias que compram a madeira em lotes. A madeira é classificada por qualidade, umidade e outras características essenciais. O que for mais interessante é destinado principalmente para a produção de barricas.
Em 2023, a França produziu aproximadamente 684.912 barricas de carvalho. Dessas, 226.021 foram consumidas internamente por vinícolas francesas, enquanto cerca de 458.000 foram exportadas para mercados internacionais, sendo os Estados Unidos, Itália, Espanha e Austrália os principais destinos.
Nos Estados Unidos, a gestão privada das florestas de carvalho resulta em práticas comerciais mais flexíveis e adaptadas à demanda específica de cada produtor. O país é um dos maiores exportadores globais de carvalho, responsável por cerca de 60% a 70% da produção destinada a barris, com um valor estimado entre 200 e 300 milhões de dólares anuais. Grande parte dessa produção é exportada para a Europa, especialmente para países como França, Espanha e Itália.
O Brasil também faz parte do grupo de países importadores tanto de carvalho francês quanto o americano, chegando a aproximadamente 170 toneladas de madeira e quase 1 milhão e meio de dólares por ano.
A produção de barricas de carvalho é um processo intrincado, que combina técnicas tradicionais e tecnologia para garantir a qualidade final. A madeira utilizada para as barricas provém do cerne da árvore, que é a parte mais densa e menos porosa, ideal para o envelhecimento de vinhos.
Entretanto, essa utilização específica acarreta até 75% de perda desde a casca até o coração, gerando subprodutos reaproveitados na indústria madeireira. Após o corte, os troncos são serrados, cortados em toras de aproximadamente um metro e, em seguida, “fatiados” em aduelas. Apenas a seção mais reta, próxima à base da árvore, é adequada para a produção de barris.
O carvalho francês possui poros muito finos e seu corte em aduelas é feito respeitando os cortes modulares do tronco; precisa ser fendido ou lascado para esse fim. Ele é rachado para seguir os canais verticais de seiva da madeira, chamados raios medulares. Cada metro cúbico de aduelas produz dez barricas de 225 litros, por exemplo. E para ter 1 metro cúbico de aduelas são precisos 4,5 metros cúbicos de tronco.
Passado o desdobramento da madeira, ela segue para o envelhecimento dos merrains (como são chamadas as aduelas inacabadas). Exposto aos elementos, especialmente à chuva, o carvalho libera os taninos e sabores mais ásperos e intensos, que aparecem como manchas na madeira. Os merrains mais antigos tendem a exibir mais dessas manchas. Embora o padrão da indústria seja envelhecer a madeira por dois ou três anos, não é raro que vinícolas solicitem um envelhecimento mais prolongado. Essa secagem lenta é crucial para eliminar a umidade residual e estabilizar a madeira, evitando deformações nas barricas durante o envelhecimento do vinho.
O carvalho americano, por sua vez, é geralmente seco em fornos e não lentamente ao ar livre, o que acelera a produção. Juntamente com o corte de serra e as florestas menos manejadas, isso explica o porquê de os barris de carvalho americano serem mais baratos.
O processo de montagem é na maior parte feito de forma manual: as aduelas são unidas sem o uso de pregos ou cola, sendo mantidas juntas apenas pela pressão exercida pelos aros de metal.
A tosta é a etapa final e talvez a mais importante, pois o interior da barrica é queimado a diferentes graus para liberar compostos aromáticos que se transferem para o vinho. Cada tanoaria adota seus próprios padrões para a tosta dos barris. E, por fim, algumas tanoarias classificam o carvalho por floresta e marcam cada barril de acordo, usando a densidade do grão como base para a produção.