Curiosidades

Como é possível ter seu nome em um rótulo da Borgonha?

Leilão do Hospices de Beaune ajuda instituição e permite que empresas rotulem garrafas com nome de sua preferência

por Arnaldo Grizzo

borgonha
O primeiro leilão do Hospices de Beaune ocorreu em 1795, mas foi somente a partir de 1859 que a prática se onsolidou como forma de financiamento da instituição

Um dos maiores orgulhos de produtores centenários certamente é ver o nome de suas famílias se perpetuar nos rótulos de seus vinhos. Não à toa, muitas bebidas recebem o nome de ancestrais que são homenageados e eternizados nesse gesto de carinho e respeito.

Então, ter o seu nome em uma garrafa de vinho é uma honraria a que poucos têm oportunidade. Se você não é um produtor de vinho ou um importador de porte capaz de fazer com que um viticultor amigo crie um rótulo só para você, não são muitas as opções que restam. Uma delas, contudo, pode ser muito sedutora.

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Já imaginou seu nome em um rótulo da Borgonha? Parece impossível, mas, na verdade, qualquer pessoa no mundo pode fazer isso. Como? Através do leilão do Hospices de Beaune.

Tradição do leilão

O Hospices de Beaune é uma instituição de saúde (um hospital genericamente falando) da vila de Beaune, na Borgonha, fundado em 1443 por Nicolas Rolin e sua esposa Guigone de Salins, com a ajuda do duque da Borgonha, Filipe, o Bom, para cuidar dos mais necessitados. Desde então, o local sempre foi mantido com o apoio dos próprios borgonheses, que faziam doações (em dinheiro, vinhos etc.).

Em 1457, ocorreram as primeiras doações de vinhas. As doações continuaram e hoje somam 60 hectares (50 de Pinot Noir e o restante de Chardonnay) em propriedade do Hospices. Em 1795, o hospital decidiu fazer um leilão beneficente de seus vinhos, mas foi somente a partir de 1859 que a prática se consolidou como forma de financiamento da instituição.

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Até pouco tempo atrás, os principais compradores eram os próprios produtores e negociantes borgonheses, que viam aí uma oportunidade de conseguirem bons vinhos (já que a maioria das propriedades são de vinhedos Grand Cru e Premier Cru), além de fazer um ato de caridade.

Já houve época, aliás, em que os preços das barricas vendidas no leilão ajudavam a definir os valores que seriam cobrados pelos vinhos de uma determinada safra, no estilo das vendas en primeur de Bordeaux. No entanto, em 2005, o leilão deixou de ser restrito aos franceses e seus convidados quando o Hospices iniciou uma parceria com a casa de leilões Christie’s, que passou a organizar o evento, sempre no terceiro domingo de novembro.

Desde então, sob o comando da casa de leilões inglesa, o evento foi se abrindo ao mundo, dando a possibilidade de qualquer pessoa adquirir uma barrica e, assim, quem sabe, criar seu próprio rótulo.

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hospices de beaune
Desde 2005, o leilão deixou de ser fechado para convidados e abriuse para o mundo por meio de lances virtuais. Mas não adianta apenas arrematar a barrica, você precisa contratar um “éleveur

Seu nome no rótulo

Com gente do planeta todo dando lances e adquirindo vinhos do leilão, era preciso dar suporte aos enófilos que não eram necessariamente produtores ou negociantes de vinho, e tampouco estavam na Borgonha.

A Christie’s então passou a sugerir empresas (negociantes ou produtores) que fazem a finalização e engarrafamento do vinho – já que o Hospices faz apenas a fermentação alcoólica e armazena o líquido em barricas novas logo em seguida. Todo o restante do processo é necessariamente feito fora da instituição.

Dessa forma, quem comprar uma barrica (pièce – como é chamada) no leilão pode contratar alguém para fazer a finalização e, entre outras coisas, rotular o vinho com seu nome, da sua empresa ou da confraria, à sua escolha.

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Um dos que oferecem esse serviço é o tradicional Domaine Albert Bichot, por exemplo, mas há diversos “éleveurs” (que finalizam o vinho), incluindo a Anima Vinum, que abriu uma representação no Brasil há dois anos. Dependendo do negociante/produtor escolhido, você pode até mesmo dar pitacos nos últimos estágios de produção de seu vinho. Lembrando que uma barrica equivale a cerca de 24 caixas de 12 garrafas, 288 litros no total.

O Hospices produz 48 cuvées (sendo 33 tintas) em homenagem aos seus doadores históricos. Dependendo das condições da safra e também do tamanho das parcelas de vinhedos, pode-se ter de duas a cerca de 30 barricas por cuvée. Os preços finais tendem a variar de 5 mil a mais de 100 mil euros de acordo com o prestígio do vinhedo. Em 2014, o valor médio das barricas foi de 13.650 euros, em 2015, 17.400, e, em 2017, 13.800.

No total, o leilão de 2017 arrecadou mais de 8 milhões de euros. Outro detalhe importante é que os rótulos dos vinhos leiloados pelo Hospices de Beaune devem vir obrigatoriamente com o brasão da instituição, com a denominação do vinhedo (Meursault, Pommard, Corton, Volnay, por exemplo) e com o nome da cuvée (dado em homenagem a um doador histórico) logo abaixo, para, em seguida, ostentar o nome do comprador (“acheteaur” ou “acquéreur”) e também de quem produziu o vinho – seguindo as normas da legislação de rotulagem para os vinhos franceses.

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Custos

Em 2015, pela primeira vez a Christie’s promoveu degustações de vinhos do Hospices de Beaune no Brasil, além de dar todo o suporte para possíveis compradores brasileiros.

Para os que vislumbram a possibilidade de adquirir uma barrica, o empresário Alaor Pereira Lino, que já se aventurou e adquiriu lotes em anos anteriores, incentiva, mas faz alguns alertas. “É uma bela chance de fazer caridade e ainda usufruir de bons vinhos com o seu próprio nome no rótulo. No entanto, é preciso estar atento a todos os custos – que não acabam com o valor da batida do martelo lá em Beaune”, afirma.

Martelo batido, há a comissão da casa de leilões, o preço da barrica de carvalho (a não ser que você forneça a sua própria, o que dificilmente será uma verdadeira opção) e o valor a ser pago para quem vai finalizar (geralmente uma porcentagem do preço de martelo). Isso sem contar taxas e impostos, e, por fim, tarifas e trâmites burocráticos para trazer as garrafas para o Brasil depois de finalizadas.

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Lino afirma que, depois de tudo isso, a garrafa de um Premier Cru “mais simples” chegaria aqui por cerca de 80 a 120 euros. Ou seja, é preciso estar preparado para gastar mais de R$ 90 mil na operação toda. Entre caridade e o prazer de beber um Borgonha com seu nome, é preciso fazer contas. Mas Alaor garante que vale a pena. Ele arrematou lotes de 2014, 2015 e 2016 e diz que seu desejo é completar a coleção de 48 cuvées.

E caso alguém tenha interesse em adquirir alguns dos lotes comprados por Alaor para a Anima Vinum, deste ou de anos anteriores (que ainda não foram entregues, já que geralmente os vinhos ficam maturando por dois anos em média), também pode e pode personalizar como bem entender.

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