Descubra como François Rabelais imortalizou o vinho como metáfora de prazer, conhecimento e liberdade intelectual
por Arnaldo Grizzo
A "divina garrafa" é um símbolo central no último livro de François Rabelais da sua série de obras protagonizadas pelos gigantes Gargântua e Pantagruel. Esta série satírica, publicada no século XVI, mistura fantasia, filosofia, e crítica social. São consideradas baluartes da literatura renascentista e uma das primeiras fontes do humanismo. Mas, acima de tudo, traz o vinho como um dos pontos centrais.
Apenas para situar, Gargântua é o pai de Pantagruel, descrito como um gigante com apetite insaciável por comida, bebida e conhecimento. Ele é um símbolo do ideal humanista, por ser um gigante, não apenas fisicamente, mas também em sabedoria, bondade e generosidade.
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Já Pantagruel é filho de Gargântua e, como seu pai, também é um gigante e compartilha a mesma sede por conhecimento e experiência. Um príncipe educado e um líder justo. O nome deriva de palavras gregas que simbolizam "grande sede" — tanto literal quanto metaforicamente — de beber e conhecer o mundo.
Pantagruel é o personagem central da série e sua jornada é acompanhada por seu fiel e astuto companheiro, Panurgo, um personagem de moral ambígua, que proporciona muitas das cenas cômicas.
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Pode-se dizer que o tema central a partir do terceiro livro (ao todo são cinco) se dá em torno do pretenso casamento de Panurgo que, antes de contrair matrimônio, quer saber se não será traído pela mulher futuramente. Para isso, consultam-se diversos especialistas e, por fim, promove-se uma viagem em busca do oráculo da “Divina Garrafa”.
Quando os colegas pantagruelistas finalmente chegam a um local chamado Lanternois, onde vivem lanternas vivas, pedem para ver a rainha, uma lanterna adornada com cristal de rocha e diamantes, para serem guiados até o oráculo.
No dia seguinte, atravessam um grande vinhedo e passam por um arco decorado com símbolos de felicidade, colocando ramos de videira nos sapatos e chapéus albaneses para simbolizar o desprezo pela embriaguez (condição para serem recebidos pela profetisa do oráculo).
Eles descem por um arco pintado com dançarinas e sátiros, e o narrador compara essa cena às Caves Painctes (caves pintadas) de Chinon. Eles descem uma escada de mármore e, no fim, encontram um portal de jaspe, com a inscrição "No vinho, verdade".
Ao entrarem, o templo é iluminado por uma lanterna com uma chama eterna, sobre uma fonte que dá ao vinho o sabor imaginado pelos homens. A profetisa Bacbuc troca as roupas de Panurgo e o faz ouvir a palavra da "Divina Garrafa".
Depois de uma canção, Bacbuc explica que a verdade está no vinho e exorta a todos a serem intérpretes de suas próprias ações. A “Divina Garrafa”, portanto, simboliza tanto o prazer quanto a sabedoria, mas não no sentido tradicional de uma verdade moralizante ou dogmática.
A sua divindade reside no prazer da descoberta e da liberdade intelectual. Beber da garrafa é uma metáfora para o ato de mergulhar na vida, sem as amarras de sistemas rígidos de pensamento.
As "Caves Painctes" (adegas pintadas) estão localizadas na cidade de Chinon, na França. Elas são mencionadas por Rabelais como um lugar mítico e simbólico, representando uma fusão entre a realidade e a imaginação satírica. Na obra, as "Caves Painctes" são descritas como estando na primeira cidade do mundo (Chinon), supostamente construída por Caim (que teria sido um fundador de cidades), graças a um jogo de palavras entre "Caïn" e "Caÿnon" (antiga versão do nome Chinon).
Ela é a capital do Vale do Loire, listada como Patrimônio Mundial da UNESCO, e se estende por colinas de calcário, com o rio Vienne correndo ao seu lado. No século XII, a fortaleza foi uma das principais de Henrique II, o rei Plantageneta da Inglaterra. O Logis Royaux (residência real), que esteve em ruínas por quase 200 anos, foi completamente restaurado.
Rabelais nasceu em La Devinière, perto de Chinon. Ele é ainda a principal figura associada à cidade, como evidenciado pela estátua de bronze que vigia a cidade e pela rua de pedestres que leva seu nome. Em sua época e até hoje, uma das características mais notáveis da cidade são provavelmente as caves escavadas nas antigas pedreiras de pedra de tuffeau.
As Caves Painctes, nas muralhas da cidade velha, consistem em várias galerias subterrâneas escavadas abaixo da fortaleza de Chinon. Este local histórico atualmente abriga o Sindicato dos Vinhos de Chinon. A visita guiada inclui uma fonte conhecida como “Divina Garrafa” e ao redor dela há esculturas contemporâneas que contêm quase 2.000 garrafas.
Outras duas caves privadas estão abertas para visitas nas chamadas “cavernas trogloditas”, onde o vinho Chinon é envelhecido em barricas. As antigas pedreiras, que forneciam pedra para construir os castelos do Loire, têm a atmosfera perfeita para o envelhecimento do vinho. Degustações de vinhos de Chinon são oferecidas na Cave Monplaisir e na Cave Plouzeau.
A confraria dos Entonneurs Rabelaisianos realiza um capítulo solene quatro vezes por ano sob as imensas abóbadas das Caves Painctes. Nesses dias, os dignitários nos trajes cerimoniais vermelhos, dourados e arminhos recebem os futuros cavaleiros durante uma cerimônia de posse. Cada um desses capítulos é apresentado pelo grupo de canto da confraria, que convida convidados a acompanhá-los cantando as famosas canções de Chinon.