Curiosidades

Quais grandes vinhos já foram citados em clássicos da literatura mundial?

Yquem, Gruaud Larose, Margaux, Taittinger... Algumas marcas ficaram eternizadas em grandes livros

por Arnaldo Grizzo

Depois de acordar, pediu almôndegas, uma garrafa de Château d’Yquem e uvas, papel, tinta e a conta. Ninguém notou nada de especial nele; estava tranquilo sereno e amável. Tudo indica que se suicidou por volta da meia-noite, embora seja estranho que ninguém tenho ouvido o disparo e só o tenham descoberto hoje, à uma da tarde, depois de baterem na porta e, não obtendo resposta, arrombarem-na. A garrafa de Château d’Yquem estava consumida pela metade, sobrara também meio prato de uvas. O tiro fora dado com um pequeno revólver de três tiros diretamente no coração. Correra muito pouco sangue; o revólver caíra no tapete. O próprio jovem estava meio deitado num canto do divã. Pelo visto a morte fora instantânea; não se notava nenhum sinal da agonia da morte no rosto. A expressão era serena, quase feliz, faltava pouco para estar vivo”.

Assim Fiódor Dostoievski descreveu a cena de um suicida “incidental” em uma de suas obras mais contestadoras, “Os Demônios”, do início dos anos 1870. Nessa época, Yquem já era um vinho famoso em toda a Europa, inclusive na Rússia czarista. Foi o escritor russo, contudo, quem ajudou a tornar Yquem a “bebida dos suicidas” graças a esse trecho. Mas, convenhamos, o rapaz poderia ter bebido a garrafa toda...

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Assim como Dostoievski, na história da literatura inúmeros autores se valeram do vinho para criar cenas inesquecíveis. A maioria, contudo, raramente nomeia uma “marca” específica de vinho como o escritor russo fez neste caso. Ainda assim, há citações célebres de marcas conhecidas em grandes obras – isso sem falar de clássicos da antiguidade que apontavam vinhos de locais específicos que, na época, podíamos chamar de “marcas”, pois, muitas vezes, não havia uma noção tão clara do produtor como o nome por trás de um vinho de qualidade.

Margaux divino

Sem voltar tanto assim no tempo, além do Château d’Yquem, alguns outros clássicos de Bordeaux também foram consagrados em páginas de obras-primas do século passado. Um deles foi o Château Margaux. Uma citação importante é feita por ninguém menos que Ernest Hemingway em seu “O sol também se levanta” do final dos anos 1920. Em uma cena, o narrador e protagonista Jacob Barnes aponta: “Entrei para jantar. Para a França, era uma grande refeição, mas após a Espanha a comida parecia distribuída com parcimônia. Pedi uma garrafa de vinho. Seria uma boa companhia. Um Château Margaux. Era agradável beber lentamente, saborear o vinho, beber sozinho. Uma garrafa de vinho é uma boa companhia”.

No mesmo livro, que conta a história de um grupo boêmio de amigos expatriados após a I Guerra Mundial, Hemingway também cita o Champagne Veuve Clicquot, mas, na verdade, os personagens acabam bebendo Mumm. Contudo, Margaux mereceu uma citação ainda mais eloquente em outro clássico, desta vez de William Styron, em seu “A Escolha de Sofia” publicado em 1979 – que posteriormente se tornou filme estrelado por Meryl Streep. Vale a pena “degustar” o trecho:

“Não fazia ideia de que na América pudesse existir aquilo — aquele néctar dos deuses! A garrafa que Nathan comprara era de tal qualidade, que levara Sofia a redefinir a natureza do gosto: ignorando a mística do vinho francês, não precisou que Nathan lhe dissesse tratar-se de um Château Margaux, ou que era de 1937 — a última das grandes safras de antes da guerra — ou que tinha custado a espantosa quantia de quatorze dólares (mais ou menos metade do que ela ganhava por semana, pensou, incrédula, ao reparar no preço grudado na garrafa), ou que poderia ter ganho um buquê se tivessem esperado um pouco. Nathan parecia entender de todos esses detalhes, mas Sofia só sabia que o sabor lhe dava uma sensação inigualável de prazer, um calor imenso, descuidoso, que parecia sair do fundo do coração e lhe descia para as pontas dos pés, tornando válidas todas as velhas máximas sobre as propriedades curativas do vinho. A cabeça nas nuvens, como se as preocupações lhe tivessem desaparecido como por encanto, ouviu a si mesma dizer, quando terminavam de jantar: — Sabe, quando a pessoa leva uma boa vida e morre santamente, deve ser isto o que dão a ela para beber, no paraíso”.

Bordeaux mágico?

Em outra obra-prima da literatura mundial, “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, é outro château bordalês que aparece logo de supetão quando o protagonista chega para sua “visita” ao primo doente em um sanatório nos Alpes suíços. “Serviu-os uma criada amável, de fala gutural, com vestido preto e avental branco, rosto largo de cores muito sadias, e para seu divertimento Hans Castorp aprendeu que ali, em alemão suíço, as criadas eram chamadas Saaltöchter, ‘filhas de salão’, literalmente. Pediram a ela uma garrafa de Gruaud Larose, que Hans Castorp devolveu porque estava fria demais: que retornasse em breve”.

O Château Gruaud Larose é um Deuxièmes Crus da classificação de 1855 de Bordeaux e o protagonista provavelmente deveria conhecê-lo bem, pois em sua família haviam negociantes de vinho. No longo livro, cuja trama se passa antes da I Guerra Mundial, Hans Castorp ainda faz uma bela e improvisada apologia ao vinho em um momento de “pressão” – “presente divino feito aos homens”, propõe. E, mais adiante, du - rante um lauto jantar, um personagem bonachão solicita grandes quantidades de comida e vinho e quem agrada a todos é um Champagne Mumm:

“E pediu o cardápio. Colocou no nariz um pincenez com aros de chifre, e cuja ponte se erguia na altura da testa. Encomendou champanhe, três garrafas de Mumm & Cia, Cordon rouge, très sec, acompanhadas de petits fours, pequenas guloseimas, deliciosas e coniformes, com uma saborosa massa cor de barro, revestida de um glacê de açúcar, recheadas de cremes de chocolate e de pistache, e oferecidas sobre papeizinhos com beiras rendadas. A sra. Stöhr lambia os dedos ao prová-las. O sr. Albin, com uma calma displicente, libertou a primeira rolha da sua gaiola de arame e deixou o cogumelo de cortiça desprender-se do gargalo adornado, com o estalo de uma pistola de criança, e saltar até o teto. Em seguida, conforme tradição elegante, embrulhar a garrafa num guardanapo, antes de despejar o vinho. A nobre espuma molhou o linho das toalhas que cobriam as mesinhas auxiliares. Fizeram tinir as taças, e esvaziaram-nas de um só trago. O estômago sentia-se eletrizado pelas cócegas do líquido gelado e aromático. Os olhos começaram a brilhar”.

Champagne

Algumas das marcas de vinho mais antigas definitivamente são as de Champagne. Des - de muito cedo, as famílias produtoras estamparam seus nomes nas garrafas e investiram em “marketing”, fornecendo para diversas casas da nobreza europeia. Nos livros de Ian Fleming sobre James Bond, um clássico da literatura pop, por exemplo, há diversas citações de marcas conhecidas.

Em Casino Royale, o primeiro livro da série do agente secreto, Bond afirma que Taittinger Blanc de Blancs Brut 1943 seria “provavelmente o melhor Champagne do mundo”. Contudo, seu gosto provou ser bastante maleável no decorrer da série de aventuras. Em Moonraker, publicado apenas dois anos depois, Bond diz que Taittinger era “apenas uma moda minha” e bebe Dom Pérignon. Outras marcas citadas são Bollinger (que aparece em Diamonds Forever e On Her Majesty’s Secret Service), Veuve Clicquot, Krug e Pommery. Bond também parece gostar de Bordeaux clássicos e chega a beber algumas safras de Château Mouton Rothschild em suas andanças.

Doce sensual e poesia

Mais recentemente, houve um boom de vendas de um vinho que chegou a ser um dos mais aclamados doces do mundo, o Constantia, um sul-africano favorito de Napoleão, que já havia sido citado – de forma genérica obviamente – por Charles Baudelaire, Charles Dickens e Jane Austen em suas obras. Contudo, em 2012, em “Cinquenta Tons Mais Escuros”, livro pertencente à trilogia best-seller de “Cinquenta Tons de Cinza”, a autora E. L. James cita um baile de máscaras em que há um menu de um jantar harmonizado. Entre os vinhos servidos está o Klein Constantia Vin de Constance 2004. Ele aparece sendo harmonizado com figos cristalizados com chiffon de nozes, molho zabaione e sorvete de bordo. A citação levou os fãs da saga a procura - rem este vinho.

No entanto, no mesmo menu, a autora cita outros produtores menos conhecidos como o Châteauneuf-du-Pape Vielles Vignes 2006 do Domaine de la Janasse e rótulos do produtor norte-americano Alban Estate. Ainda no livro, são citadas as Champagnes Cristal e Bollinger.

Também recente é um livro de poemas de Sharon Olds, cujo título já remente ao vinho, “Stag’s Leap” – o mesmo nome de uma consagra - da vinícola norte-americana. O livro é baseado na separação do marido e, na poesia de abertura, ela compara o desenho do rótulo (veado sal - tando) com seu ex-esposo: “Então o desenho no rótulo do nosso vinho tinto favorito parece com meu marido, lançando-se em um precipício em seu fervor para se livrar de mim”. Enfim, grandes vinhos e grandes obras, por vezes, formam uma harmonização infalível.

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