O blend de um vinho é uma arte antiga, tradicional e ao mesmo tempo moderna. Conheça como se define a mistura que forma o seu vinho
por Arnaldo Grizzo
A maioria dos vinhos é feita de misturas de uvas. Mesmo algumas garrafas rotuladas como varietais também são. Sim, as leis de rotulagem da maioria dos países permitem que, se cerca de 80% do vinho for de uma única variedade, isso basta para que o produtor possa estampar o nome da casta no rótulo como se fosse um “varietal”, mesmo que os outros 20% da bebida tenham sido feitos com outras cepas. E mesmo vinhos genuinamente varietais também podem ser blends. Como assim? Misturando a mesma variedade, mas de vinhedos diferentes, por exemplo.
Essa ideia pode soar estranha para alguns, mas é algo bastante comum e histórico. Por que isso ocorre? Como e quando se define o blend (mistura) de um vinho? O que um enólogo leva em consideração?
Vamos lembrar que, na antiguidade, os produtores cultivavam diversas variedades e as misturavam para criar um vinho. Acontecia o que hoje convencionamos chamar de field blend, ou seja, a mistura do campo, em que uvas indistintas eram jogadas na prensa para gerarem um mosto. Esse tipo de blend era o mais comum, pois as parreiras eram cultivadas também de forma indistinta e, mesmo quando se conhecia as diferenças, juntava-se tudo, pois, numa lógica de aproveitamento de volume e qualidade, uvas com maior maturação, ou quantidade, ou sanidade, compensavam outras que, por alguma razão, estivessem menos maduras, com rendimento menor ou então prejudicadas por doenças.
Mas também podemos lembrar que os blends, muitas vezes, não se resumem a variedades distintas sendo misturadas. Eles podem ser misturas de vinhos de safras diferentes. Essa é uma técnica bastante usada em Champagne, por exemplo, em que os produtores costumam guardar parte dos rendimentos de um ano para acrescentar no vinho dos anos seguintes, criando um blend cada vez mais homogêneo – que é uma das características mais marcantes dos espumantes daquela região, ou seja, determinam o estilo único de cada produtor.
Como visto, as possibilidades de blend não param por aí. Pode-se misturar uvas de diferentes safras, diferentes vinhedos, diferentes regiões... Enfim, de qualquer modo, o mais comum ao redor do planeta é vermos a junção de variedades diferentes para criar um único vinho de uma única safra. Certamente a região dos blends mais famosos é Bordeaux. Lá a mistura de variedades vem de uma tradição longínqua e foi sendo aperfeiçoada com o passar do tempo, inspirando produtores ao redor do mundo.
O clima de Bordeaux pode, por vezes, arruinar uma safra. Seus padrões climáticos, podem dificultar o amadurecimento das uvas tintas e, por isso, os blends sempre forneceram aos vinicultores rendimentos e vinhos mais confiáveis. Entender a dinâmica dessas uvas permitiu, e ainda permite, que a região produza grandes vinhos mesmo em safras consideradas complicadas.
Por exemplo, a Cabernet Sauvignon costuma ter problemas para amadurecer em um ano frio, ficando muita ácida e tânica. Já Merlot e Cabernet Franc podem atingir a maturação completa com menos calor. Por outro lado, misturar Cabernet Sauvignon totalmente maduro com Merlot menos maduro “ajusta” o alto teor alcoólico do Cabernet e torna o Merlot mais frutado. Colocar Petit Verdot e outras cepas também ajuda a “temperar” o blend final.
Mas hoje há muito mais do que uma proteção contra “baixos rendimentos”. E o blend é um definidor de estilo. Na verdade, faz-se alguns testes de acidez, pH e açúcar, entre outros, antes de chegar à “receita final”. Isso pode ser comparado ao que um chef faz depois de escolher ingredientes e temperos antes de criar um prato. Em Bordeaux, por exemplo, o Cabernet Sauvignon oferece um vinho robusto e profundo com notas especiadas e frutas negras, o Merlot dá mais meio de boca com mais frutas vermelhas. E Cabernet Franc oferece taninos no início que evoluem em suculentas frutas vermelhas e notas de ervas. Com esse conjunto, e mais algumas outras cepas, o enólogo pode escolher quais variedades utilizar e como complementá-las.
“Ao provar um vinho, um amador ou um profissional detecta facilmente o impacto final do blend. Bem sucedido, essa mistura revela o estilo do enólogo, reconhecível de um ano para o outro. Algumas propriedades procuram, por exemplo, finesse e elegância, outras preferem taninos potentes e bem presentes. O blend é um todo. É ao mesmo tempo a pedra angular e o acabamento final que destaca todos os gestos dos viticultores do ano, desde a colheita de uvas de boa maturidade até as vinificações bem conduzidas. No entanto, é difícil identificar com muita precisão todos os segredos do vinho acabado. Mas o conhecedor reconhecerá, por exemplo, em um vinho do Languedoc, um blend de Syrah por sua cor violeta e seus aromas de groselha preta, vermelha e grafite, de Grenache por seu potencial alcoólico e um toque de taninos muito particular, de Mourvèdre por um frescor e aromas balsâmicos, de Cinsault com notas especiadas e a delicadeza dos taninos”, apontou, em entrevista à Revue du Vin, da França, o consultor em enologia, Jean Natoli.
A definição das porcentagens de cada uva no blend é uma tarefa bastante empírica. “Se estou começando com um blend à base de Cabernet, o Cabernet acabará sendo 60, 65% do vinho final. E então aumento a complexidade e tento aumentar o equilíbrio adicionando outras variedades. Se adicionar muitas outras coisas que não têm mais gosto de Cabernet, então fui longe demais”, diz o enólogo Brian Carter. Mas o que porcentagens mínimas podem acrescentar a um vinho? Às vezes, 1% pode gerar uma transformação radical.
Em um artigo escrito em 2017, o crítico de vinhos Kevin Day escreveu: “Tive a chance de experimentar fazer um blend na propriedade Chêne Bleu, no sul da França, e percebi como a mistura de vinhos pode ser extraordinariamente difícil. Estávamos mexendo com Grenache, Syrah e Viognier. E não correu bem. Se o vinho tinha pouco Viognier, sua presença era obsoleta; se tinha demais, os aromas ficaram estranhos. Apesar do mosto realmente bom, a maioria de nossas misturas tinha gosto apenas de Grenache básico. Era como se, em certas porcentagens, as notas de cada uva simplesmente se cancelassem.” “Lembre-se que um pouco de anchova é ótimo para o molho, mas você não quer sobrecarregá-lo com sabor de peixe. Use o bom senso e busque o equilíbrio”, bem apontou o enólogo David Noyes.
É por isso que, muitas vezes, vemos porcentagens bastante baixas de algumas variedades em determinados rótulos. Uvas mais tânicas, como Petit Verdot, ou “tintoreiras” (que dão mais cor), como a Alicante Bouschet, costumam ser usadas em pequenas quantidades em blends para que não se perca o equilíbrio.
Vamos tomar outro exemplo, desta vez de Champagne, onde Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay geralmente se fundem para criar algo único. O Pinot Noir tende a contribuir com aromas de frutas vermelhas e adiciona força e corpo ao blend. Já o Pinot Meunier, o componente de maturação mais rápida em Champagne, contribui com corpo mais suave, fruta intensa e redondeza. Por fim, o Chardonnay confere finesse ao blend, pois traz notas florais, às vezes com um toque mineral.
O ajuste fino da proporção dessas três cepas no blend define o estilo de uma casa. Segundo Didier Mariotti, chef de cave da Veuve Clicquot, o famoso rótulo amarelo “é feito com 50-55% de Pinot Noir – uva que domina todos os nossos cuvées com diferentes expressões de intensidade e complexidade – que lhe confere estrutura. Chardonnay (28-33%) que traz elegância e finesse, e uma baixa porcentagem de Pinot Meunier (15-20%) completa a mistura. As uvas vêm de 50 a 60 safras diferentes”. Como o rótulo é o carro-chefe da empresa, ele “deve ser sempre o mesmo, com o mesmo nível de qualidade, e isso nem sempre é fácil, principalmente com colheitas difíceis. Para atingir isso, incorpora-se entre 30 e 45% de vinhos de reserva dependendo do perfil do ano base”.
Mas o ajuste do blend vai além de experiências para encontrar as porcentagens mais adequadas para cada vinho. E isso nem sempre significa mesclar as melhores parcelas ou melhores cubas. Aurélien Valance, diretor do Château Margaux, conta uma experiência interessante durante a produção do blend da safra 2016.
“Naquele ano, a parcela ‘Igreja’, de Merlot, estava sensacional. A melhor de todas. Para nós, era certeza que iria para o gran vin de Château Margaux. Mas temos outra grande parcela de Merlot, que também estava muito boa, porém um pouco inferior, faltava um pouco de elegância. Pensamos que poderia ir para Pavillon Rouge (segundo vinho), mas não para Margaux. Começamos a fazer o blend. Algo estava estranho no palato, um pouco diluído, faltava meio de boca, e percebemos que isso vinha da ‘Igreja’. Então diminuímos a porcentagem para 25%, para 10%, e, por fim, não pudemos colocar nada no blend. Então tentamos com a outra parcela. E, no blend, foi mágico, mesmo sendo um vinho pior. ‘Igreja’ era melhor, mas tivemos que colocar no Pavillon”.
Valance continua ainda dando exemplo do que ocorreu na safra seguinte, em 2017. “Estávamos muito felizes com o blend, o final de boca estava fantástico, mas queríamos achar algo que equiparasse o começo com o final de boca. Tentamos muitas coisas e não conseguíamos. Tinha uma parcela antiga de Cabernet Franc, que era boa, mas faltava meio de boca e, por isso, não testamos. Nosso chef de cave disse que deveríamos testar. Todo mundo olhou e falou, ‘este Cabernet Franc tem exatamente o mesmo problema que estamos tentando evitar, ou seja, você só vai piorar’. E ele disse: ‘Sei disso, mas em 1995 tivemos o mesmo problema, tentamos com ele e funcionou. Não sei porque, mas foi o que aconteceu’. E ele estava certo. Faltava meio de boca, mas, no blend, ele trouxe meio de boca”, revelou e assegurou: “É por isso que temos que ser seis ou sete pessoas para fazer o blend conjuntamente, e temos que ter muita experiência. Se somar todos, temos 200 anos de experiência em blend de Château Margaux”.
“Você pode pegar dois vinhos macios e misturá-los e eles se tornam incrivelmente tânicos e intragáveis. Da mesma forma, você pode pegar dois vinhos tânicos e misturá-los e, de repente, eles se tornam muito mais sedosos”, aponta o enólogo James Mantone. E isso só se “resolve” com experimentação ou com experiência.
Se o blend é um definidor do estilo, é preciso entender em que momento a junção se dá da melhor forma. Seria vinificando cada variedade e parcela separadamente e juntando apenas antes da maturação (como faz a maioria)? Ou seria fermentando tudo junto como nos field blends? Ou ainda aguardando após o amadurecimento ou a garrafa pronta? Sim, este último é menos comum, mas há exemplos, como o vinho Homenaje, da Ventisquero, em que o enólogo Felipe Toso quis colocar todas as safras da história da vinícola e para isso recorreu a garrafas de safras de 2001 a 2017 e barricas de safras de 2018 a 2020. “Abrimos cerca de 2 mil garrafas. Demoramos um mês a fazer esta mistura. Nunca demoramos tanto em um blend. Não posso repetir este vinho, não tenho como repeti-lo”, disse na época.
“Escolhemos o blend 50/50 porque Cabernet e Merlot são uvas tão diferentes, com sabores tão diferentes, que quando você os mistura, eles se complementam de maneiras incríveis. Também temos Cabernets e Merlots puros, mas a verdade é que o blend é simplesmente incrível. É difícil para um enólogo explicar como e por que isso se mistura. Tudo depende da safra e da qualidade das uvas. No que diz respeito ao blend, tento esperar o maior tempo possível. O vinho mostrará características diferentes no outono do que na primavera, então dar-lhe algum tempo extra antes da mistura me permite determinar para onde os vinhos estão indo individualmente”, diz o enólogo Steve Conca, que faz suas misturas da forma “tradicional”, vinificando separadamente e mesclando antes do estágio final.
Mas, como dito, o enólogo pode decidir pelo blend em diversos estágios. Ele pode misturar diferentes parcelas de seu vinhedo no mesmo tanque para uma melhor sinergia. Ele também pode misturar barricas do mesmo vinho. Ele tem a oportunidade de misturar, após a fermentação e para a mesma cuvée, determinadas uvas de acordo com uma finalidade. Mas há ainda quem acredite que o field blend, ou seja, a mistura de campo (em que as uvas são plantadas meio que indistintamente e colhidas em momento semelhantes) seja o blend mais “integrado” – como se cada uma das castas tivesse tempo para “se conhecer” na mesma cuba e melhor reconhecer as qualidades inerentes de cada uma, subjugando assim a noção de variedade à de terroir.
Ou seja, mesmo dependendo “da mão do homem” para o blend, a ideia seria preservar o gosto do lugar. “Nossa filosofia é difícil de explicar, mas é, antes de tudo, entender o Cru. Preciso de dois anos para entender uma nova propriedade. Você deve capturar o que há naquele Cru, seu terroir, sua expressão, seus defeitos e qualidades, e então manuseá-lo delicadamente, para guiá-lo até sua mais bela expressão. Continuamos enfatizando a finesse ao invés da potência. Concentramo-nos na qualidade dos taninos. Às vezes, você pode acentuar as falhas por ter um rendimento muito baixo; vinhas equilibradas são mais importantes”, já dizia Jacques Boissenot, um dos enólogos consultores mais influentes de Bordeaux, para mostrar que, mesmo diante da atuação humana, o terroir pode prevalecer.
Mas devemos lembrar de blends como os de Champagne, por exemplo, em que, além das variedades e dos vinhos do ano, os enólogos misturam vinhos de anos anteriores para ajudar a equilibrar e manter o estilo da casa. “Há várias décadas conduzimos três soleras, onde o vinho velho educa o jovem, e o vinho jovem nutre o velho. O princípio deste blend eterno é simples, mas exige grande rigor durante a vinificação”, conta Xavier Berdin, do Champagne Palmer, que faz algo semelhante às misturas de Jerez, na Espanha, onde o sistema de soleras e criaderas têm exatamente essa função: aprimorar o blend dos vinhos velhos.
“O objetivo do blend de vinhos é, com base nas características específicas de cada lote, criar cuvées mais equilibradas, complexas e harmoniosas do que cada lote inicial sozinho. Equilíbrio em boca, equilíbrio aromático, equilíbrio de sabores, são todos equilíbrios que vão ao encontro do enólogo e dos seus clientes. Não há equilíbrio, mas equilíbrios. Como não existe uma forma correta de saborear, a arte do blend é tão simples e óbvia quanto pode ser extremamente complexa. É um momento muito especial que exige muita concentração. Claro que tudo isso requer uma boa memória sensorial, mas também (e sobretudo) aprendizado e prática regular”, diz o enólogo Fabrice Maubert.
Eric Boissenot, filho do lendário Jacques, escreveu sobre a arte de fazer blends: “Dentro de uma propriedade vinícola, cada parcela de vinha tem suas próprias qualidades. Estas podem estar ligadas à natureza do solo, à exposição ao sol, à idade das vinhas, à densidade de plantação... e assim obtém-se o maior número de lotes de vinhos. Essa riqueza é essencial, pois condicionará a criatividade no ato de fazer o blend”.
“O blend consistirá, assim, em conceder essas diferenças em nome da qualidade, porque toda a arte reside na associação de complementaridades para realçar a melhor expressão de um lugar, de uma ideia, de uma filosofia, de um estilo. Funciona como uma mágica que exalta as qualidades de cada um. Tornamo-nos conscientes do grau de liberdade que nos é oferecido. A qualidade de um blend é sempre superior às qualidades individuais que o compõem.”
“Imagine, uma sala com seus móveis, suas bugigangas, suas pinturas e o quanto sua decoração pode mudar a tranquilidade e beleza do lugar. É de certa forma um blend, uma harmonização das coisas. Para ilustrar esta evocação, cito esta belíssima frase de Émile Peynaud: ‘O homem fez o vinho à imagem do seu sonho, a sua imaginação dotou-o de espírito. Desde então, o vinho superou seus criadores…’”.
Cabernet Sauvignon
Tende a trazer grande intensidade, potência e peso de boca, com mais intensidade e tanino no final, além de aromas e sabores de frutas negras e ervas.
Merlot
Geralmente traz mais meio de boca com aromas mais focados em frutas vermelhas e chocolate.
Cabernet Franc
Costuma dar contribuir com um componente de ervas, bem como frutas vermelhas intensas, mas que desaparecem no fim de boca.
Malbec
Traz muita fruta, especialmente negra, e tende a realçar o perfil frutado de outras variedades.
Petit Verdot
Um perfil mais ácido e tânico que é colocado em pequenas quantidades para “temperar” o blend, dano mais meio de boca e estrutura.
Grenache
Traz frutas vermelhas e porte especialmente no meio do paladar.
Syrah
Tende a trazer um pouco de especiarias e cor, além de taninos, mas seu estilo varia bastante conforme o terroir.
Mourvèdre
Também acrescentará especiarias, especialmente pimenta, e toques defumados.
Carignan
Pode trazer alguns dos aspectos herbáceos e rústicos para o blend.
Cinsault
Tende a ser leve no paladar, mas com sabores muito intensos e ajuda a reduzir o peso de boca.