Atlas histórico

Descubra os tesouros escondidos nos primeiros mapas vitivinícolas da França

A brevíssima história de um ambicioso projeto de reapresentar os vinhedos da França ao mundo

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por Lucas Bertolo

Numa Paris ocupada pelos nazistas, o editor Louis Larmat empreende, patrocinado pelos Comitês Nacionais das Denominações de Origem dos Vinhos e Aguardentes, de Propaganda em favor do Vinho, e do Sindicato Nacional do comércio atacadista de vinhos, cidras, destilados e licores da França, um atlas de todas as regiões vinícolas da França.

A iniciativa de reunir materiais cartográficos de Bordeaux, Borgonha, Champagne, Loire etc., era inédita, e buscava acompanhar a evolução da legislação sobre as Appellation d’origine.

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O projeto era ousado. Pouco antes, graça a um decreto-lei do senador Joseph-Marie Capus, de junho de 1935, havia surgido o Comité National des appellations d’origine (um embrião do que hoje é o Institut national de l'origine et de la qualité – INAO –, órgão que regula, entre outras coisas, as denominações de origem francesas).

As primeiras “appellations”, aliás, foram formalmente definidas um ano depois. Capus, que presidiu o órgão até sua morte em 1947, fez um extenso trabalho de direito agrícola sobre as denominações de origem (que foi publicado por Louis Larmat).

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Para o ex-ministro da Agricultura francês, as appellation d’origine, como instituição e regime jurídico de regulação, operam como vetores de identidades, a circunscrever, no tempo e no espaço, a cultura e a expressão de uma gente. 

Nesse cenário de valorização dos produtos franceses, o trabalho de Larmat era essencial. Tanto que, já em 1939, um boletim do INAO já citava o lançamento de seus mapas. Contudo, início da II Guerra impediu a publicação. Ainda assim, o primeiro volume foi publicado em 1941.

O tomo I tratava dos vinhos de Bordeaux. As decisões estéticas, de composição gráfica dos mapas, de cores opacas, fonte não-serifada e detalhamento acadêmico do espaço físico, impressionaram e fizeram sucesso. 

Antes do trabalho de Larmat, apenas obras esparsas haviam sido publicadas, principalmente na indústria do vinho pré-filoxera, como o mapa vinícola do Departamento da Gironda, de 1856, desenhado pelo cartógrafo bordalês Unal Serres para a Câmara do Comércio de Bordeaux. Houve também os mapas do célebre “Bordeaux et ses vins”, do britânico Charles Cocks e do francês Michel-Édouard Féret, publicado em 1850, superado em qualidade apenas pelos volumes de Larmat, quase cem anos depois.

Vale lembrar que, na época, em meados do século XIX, os países concorriam para exaltar suas qualidades, tanto que Napoleão III promoveu a famosa Exposição Universal dos produtos da Agricultura, da Indústria e das Belas Artes em Paris em 1855 e, entre outras coisas, requisitou o sistema de classificação dos melhores vinhos de Bordeaux – que até hoje é reconhecido.

Uma referência

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O projeto de Larmat nunca foi concluído, haveria um sexto volume que incluiria aguardentes e Cognac; o sétimo deveria ter os vinhos do Loire e Alsácia; e, por fim, o oitavo e último volume, de vinhos doces e fortificados

O volume de Larmat, além de abarcar os decretos da época, como a adição das categorias AOC Bordeaux Supérieur e Bordeaux Mousseux (para vinhos espumantes), de 1941, reinaugurou com clareza e elegância a literatura do vinho.

Os volumes seguintes, Borgonha (1942), Côtes du Rhône (1943), Champagne (1944), Côteaux de la Loire, primeira parte (1946), eaux-de-vie et Cognac (1947), seguiram a mesma estrutura do primeiro: os mapas coloridos e dobráveis, são acompanhados por textos introdutórios em francês, inglês, alemão e italiano (em certas edições, em espanhol e português também), feitos pelo presidente do Comitê Nacional das Denominações de Origem, e apresentações das regiões e microrregiões feitas por líderes sindicais locais. 

O atlas contém gravuras dos principais vinhedos e châteaux, além de fotografias do processo de vinificação, da colheita ao engarrafamento manuais dos vinhos, e retratos dos vários trabalhadores envolvidos no processo, dos toneleiros que fazem as barricas de carvalho aos enólogos.

Entre as edições, mudanças significativas foram feitas: o volume “vinhos de Bordeaux” de 1944 possui oito mapas dobráveis; o de 1949, dezesseis, de dimensões reduzidas, mas com maior destaque para as microrregiões. Não precisamos dizer que a legislação agrícola também era atualizada a cada reedição. 

Para se ter ideia da importância do trabalho do editor francês, o britânico Hugh Johnson, autor do primeiro atlas de vinhos do mundo, de 1971, reconhece Larmat como o seu único predecessor.

E até hoje o “Atlas de la France Vinicole”, graças ao seu detalhamento, é referência para alguns dos principais livros e tratados publicados, como o recente “Champagne: The Essential Guide to the Wines, Producers, and Terroirs of the Iconic Region” de Peter Liem, por exemplo.

Mistério

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O atlas contém gravuras dos principais vinhedos e châteaux, além de fotografias do processo de vinificação, da colheita ao engarrafamento manuais dos vinhos,

No entanto, o projeto de Larmat nunca foi concluído. O sexto volume, de aguardentes e Cognac, deveria incluir Armagnac e Calvados; Muscadet e Anjou seriam adicionados ao volume de vinhos do Loire; um volume sobre a Alsácia ainda deveria ser feito; e, por fim, o oitavo e último volume, de vinhos doces e fortificados.

Em 1950, o editor parisiense, que à época vivia no suntuoso Boulevard Haussmann, número 80, publicou uma série de mapas de estrada, chamada routes des grands crus. Em 1954, ano de início da Guerra de Independência da Argélia, publicou os mapas da “Argélia Vinícola”, de Georges Lafosse. 

No entanto, Louis Larmat é uma dessas figuras na história que se esconde à plena vista: nasceu, provavelmente, em 1890, e a única pista que há sobre sua trajetória é que publicou mapas na Provence, em 1924, antes de abrir a própria editora em Paris. Como obteve autorização e patrocínio para editar o primeiro atlas das regiões vinícolas da França é um completo mistério, tal como as condições e a data de sua morte. 

A racionalização do espaço físico dos vinhedos, a modernização do produto agrícola, do alimento-vinho, e a promoção da cultura da bebida, revelam-se peças inestimáveis do que chamamos hoje de soft power francês.

Para o editor Louis Larmat, e os seus contemporâneos, contudo, esse projeto de poder não tinha nada de suave: emprestar o prestígio das belas-artes francesas à vitivinicultura foi trabalho essencial para a valorização do vinho

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