Filha da lenda de Ribera del Duero, Alejandro Fernandez, Olga conta a trajetória de seu pai, sua vinícola e seu município
por Arnaldo Grizzo
Até pouco tempo atrás, a gigante Ribera del Duero era terra de uma só vinícola, a Vega Sicilia (quando se tratava de renome). Mas isso foi até Alejandro Fernandez, atualmente com 80 anos, realizar o sonho de ter sua própria vinícola. Sem nunca ter estudado enologia, Fernandez deu início à história da Pesquera em 1972, no minúsculo município de Pesquera de Duero, e já começou com tudo. Tornou a desconhecida Tempranillo sua queridinha e colocou sua vinícola monovarietal em um patamar alto, ao lado de Vega Sicilia. Ele deu cor, corpo e concentração aos seus vinhos e refutou a filtração e clarificação.
Além da lenda Alejandro Fernandez, a Pesquera também abriga outro mito: Janus, o vinho "Gran Reserva dos Gran Reserva", segundo a filha de Alejandro, Olga Fernandez, tido como um dos grandes clássicos espanhóis.
O Grupo Pesquera, atualmente liderado quase que somente por mulheres (as quatro filhas de Alejandro - que lhe deram sete netas e um neto), possui, além da vinícola de mesmo nome, outras três: El Vínculo (em La Mancha), Condado de Haza (Ribera del Duero) e Deheza La Granja (Zamora).
Como qualquer filha, Olga fala do pai com orgulho e consegue demonstrar, com palavras, a garra e a motivação deste homem que é ícone da região. A trajetória dele conta um pouco e se confunde com caminhos do vinho em Ribera.
Qual foi a história de seu pai até chegar ao vinho?
Meu pai começou a trabalhar muito cedo, porque meus avós eram agricultores e ele era o mais velho de seis irmãos. Ele nasceu em 1932, pouco antes da guerra civil e da ditadura de Franco. Ele foi trabalhar como carpinteiro e depois passou a fazer máquinas que seriam usadas na agricultura, como as colheitadeiras de beterraba, para a obtenção de açúcar, que naquela época era um produto muito importante na nossa zona, um município muito pequeno, tem somente 500 habitantes. Meu pai sempre quis ter uma vinícola, sempre fez vinho, junto com meu avô, para consumo próprio, assim como muitos agricultores naquela região. Então, com o dinheiro que ele foi ganhando com a venda de maquinaria agrícola, começou seu projeto comprando terras e plantando vinhas. Em princípio dos anos 1970, a situação era completamente diferente, todos os agricultores abriam mão das vinhas para poder plantar beterraba, e meu pai fazia o contrário. E naquela época o cultivo da vinha era praticamente residual, quase não havia. Então, todo mundo pensava que Alejandro Fernandez estava louco.
"Em princípio dos anos 1970, a situação era completamente diferente, todos os agricultores abriam mão das vinhas para poder plantar beterraba, e meu pai fazia o contrário"
Como era a região de Ribera del Duero antes da vinicultura?
Era eminentemente agrícola. Cultivava-se a beterraba açucareira e também muitos cereais, como a cevada e o trigo. Era uma região agrícola, não havia nenhum tipo de indústria.
De onde veio o conhecimento enológico de seu pai?
Ele sempre plantou uvas com o meu avô, mas nunca estudou. Todo seu conhecimento veio de experiências pessoais e seu saber natural, uma vez que vinha de uma família de agricultores.
"Não temos a certificação de 'orgânico', mas o somos. Nunca utilizamos herbicidas nem fertilizantes a não ser esterco, e somos o mais respeitosos possível com o vinho. Não usamos leveduras artificiais, não vamos provocar nenhum tipo de fermentação, não filtramos, não clarificamos" |
Você e suas irmãs estão seguindo os passos de seu pai na vinicultura. Chegaram a estudar algo de enologia?
Sim, minha irmã mais nova, Eva Maria, é enóloga. Primeiro estudou em Madri e depois em Bordeaux. Nós três, as mais velhas, não. Eu estudei direito, minha irmã Maricruz fez filosofia clássica e a outra fez marketing e relações públicas. Na realidade sempre soubemos um pouco de enologia, pois desde pequenas ajudamos nossos pais na vinícola, então foi uma aprendizagem contínua, pois começamos do zero.
Quando ele começou a bodega?
Foi em 1972, e a primeira safra foi a de 75.
Ele foi o primeiro a plantar vinhas em espaldeira por lá?
Sim, foi. Meu pai viajou muito, por conta do maquinário que vendia, e, em algumas viagens que fez a Bordeaux, viu como funcionavam as vinhas de lá, onde em muitas zonas são plantadas em espaldeiras, e guardou a ideia para quando tivesse sua própria vinícola.
Desde o começo da Pesquera Alejandro optou pela Tempranillo?
Sim, sempre. Essa casta sempre foi a sua melhor. É a uva que melhor se condicionou à região.
"Acredito que a Tempranillo seja a uva mais importante da Espanha, em maior quantidade e que está enraizada lá há séculos. Seria importante que o país fosse reconhecido no mundo por ela"
Há quem defenda a Tempranillo como a variedade símbolo da Espanha, vocês que só plantam Tempranillo, como veem isso?
Acredito que a Tempranillo seja a uva mais importante da Espanha, em maior quantidade e que está enraizada lá há séculos. Seria importante que o país fosse reconhecido no mundo por ela. Há muitas outras variedades que também são autóctones de lá, como a Garnacha, mas, por alguma razão, a Espanha se mostra como a casa da Tempranillo. Na nossa região, ela tem papel fundamental, pois é uma uva de ciclo curto, e temos invernos muito longos e duros e verões curtos, mas muito quentes, com grande amplitude térmica. Precisamos de uma uva de maturação rápida, e ela é perfeita, é talvez a que melhor se adapte às nossas condições climáticas.
O octagenário Alejandro Fernandez começou sua empresa com lucros de venda de maquinários agrícolas e se tornou uma figura lendária da vitivinicultura em Ribera del Duero |
Sobre a região de Ribera del Duero, que tem algumas das vinícolas mais famosas da Espanha, como a sua e a Vega Sicilia, quais são suas peculiaridades? O que faz essa região tão especial? É coincidência que dois dos maiores produtores espanhóis sejam de Ribera?
Além do mérito das próprias vinícolas, há também o aspecto do terroir. As condições fazem com que essa região seja muito singular, que a qualidade da uva seja muito boa. Mas não nos esqueçamos que as pessoas é que fazem os vinhos. A Vega Sicilia sempre foi um ícone, uma referência para todos. E logo veio meu pai, que soube aproveitar o que a natureza e a vida estavam colocando em seu caminho. Quando ele saiu para vender seu vinho, praticamente ninguém conhecia a Tempranillo. Fomos a primeira vinícola monovarietal de Tempranillo e que usava carvalho americano para envelhecer. Isso chocou o mundo do vinho, pois a influência francesa é muito grande e forte. E meu pai foi até os Estados Unidos para apresentar seus vinhos em um tempo que ela não era conhecida.
E depois que seu pai foi até os Estados Unidos já houve comoção pela uva ou isso demorou um pouco a acontecer?
Demorou um pouco, mas não tanto. Nosso primeiro vinho foi o de 75, e Robert Parker provou a safra do ano 1982, então, para o que é a história de uma vinícola, não foi tanto tempo assim. Nós somos relativamente jovens, o conselho regulador da denominação de Ribera del Duero nasceu em 1983 e nós éramos muito poucos. Fora as cooperativas que existiam lá, éramos cinco. Hoje já há algo ao redor de 280 produtores.
Vocês pensam em explorar outras regiões da Espanha?
Sim, na verdade já exploramos. Temos a El Vínculo em La Mancha, que se estabeleceu em 1999, e temos a vinícola Dehesa La Granja, que está em Zamora, perto da região de Toro. Lá começamos em 1998. E todas as vinícolas são de Tempranillo. Agora estamos lançando no mercado um vinho branco com a uva Airén.
Essa é uma casta conhecida na Espanha?
Não, ela é mais conhecida por sua quantidade do que pela qualidade. Quando chegamos em La Mancha, em 1999, queríamos fazer um vinho branco, e um branco de Airén, mas foi só em 2007 que encontramos a vinha que buscávamos, muito velha, para que a produção fosse pequena e a concentração na uva maior. Nossa primeira colheita foi em 2007 e se chama Alejairén, que é uma junção de Alejandro e Airén. É um vinho branco de 24 meses de barrica americana muito especial, de muito corpo, num estilo Borgonha, e está destinado à guarda.
Por que escolheram La Mancha?
Meu pai sempre gostou da região, pois diz que ela tem algo que ninguém pode comprar, que é o frio do inverno e o calor do verão. De nada adianta ter a melhor tecnologia dentro da vinícola se você não estuda o terreno, o clima e não tem boas uvas. A vinha é o mais importante. E para nós a qualidade da vinha sempre foi muito importante, porque somos muito "naturais", não só na vinha como também na vinícola.
"Quando meu pai saiu para vender seu vinho, praticamente ninguém conhecia a Tempranillo. Fomos a primeira vinícola monovarietal de Tempranillo e que usava carvalho americano para envelhecer. Isso chocou o mundo do vinho, pois a influência francesa é muito grande e forte"
"Janus é um deus romano de duas faces, uma olhando para trás e outra para frente. É como o símbolo entre o passado e o futuro" |
Vocês são orgânicos?
Não, não temos a certificação de "orgânico", mas o somos. Nunca utilizamos herbicidas nem fertilizantes a não ser esterco, e somos o mais respeitosos possível com o vinho. Não usamos leveduras artificiais, não vamos provocar nenhum tipo de fermentação, não filtramos, não clarificamos. Sempre seguimos essa linha mais ecológica.
Como o Janus se transformou em um mito? Qual foi a história por trás dele?
Até 1982, meu pai elaborava os vinhos em lagar do século XVI, pisando na uva em uma prensa de viga, bem ao estilo antigo. Depois disso, modernizou-se, transformou a vinícola, mas não estava completamente seguro de que isso seria bom. Então, elaborou metade da safra no lagar antigo e a outra metade na parte mais moderna da vinícola. A essa mescla demos o nome de Janus. Janus é um deus romano de duas faces, uma olhando para trás e outra para frente. É como o símbolo entre o passado e o futuro. Desde então o Janus em Pesquera é um ícone. Só sai nas colheitas em que a vinícola considera excepcionais, e é como um Gran Reserva dentro do Gran Reserva. A primeira foi em 1982, depois em 86, em 1991, 94, 95 e agora está no mercado o vinho da safra de 2003. Em 30 anos, fizemos seis colheitas. Isso mostra como são especiais.
Quais são os desafios de uma vinícola que trabalha com apenas uma variedade de uva?
O desafio está aí todos os anos, pois nunca sabemos como vai ser a safra. Cada ano é único, nunca há o mesmo calor, ou o mesmo frio, e a uva sente isso. Independentemente de ser Tempranillo ou Cabernet Sauvignon. Por isso, o desafio é fazer sempre o melhor com o que a terra e a vinha estão lhe dando. Agora não pensamos em plantar outra uva, mas quem sabe no futuro.
Vocês, filhas de Alejandro, como lidam com as tradições? Estão sempre tentando quebrá-las?
Não, gostamos de tradições. A única novidade foi o envelhecimento em barricas francesas em uma pequena quantidade de vinho. Foi uma ideia de minha irmã mais nova e foi muito bem aceita por parte de meu pai. Mas não pensamos em romper com o estilo do Grupo Pesquera.
VINHOS AVALIADOS
|
Confira a avaliação completa na seção Cave (a partir da página 83)
+lidas
1000 Stories, história e vinho se unem na Califórnia
Vinho do Porto: qual é a diferença entre Ruby e Tawny?
Pós-Covid: conheça cinco formas para recuperar seu olfato e paladar enquanto se recupera
Os mais caros e desejados vinhos do mundo!
Notas de Rebeldia: Um brinde ao sonho e à superação no mundo do vinho