Enólogo da Errazuriz sabe que muitas de suas opiniões a respeito do vinho chileno nem sempre são unânimes, tampouco bem compreendidas
por Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan
Para fazer vinhos de culto, verdadeiros ícones, é preciso deixar de olhar para o umbigo e provar outras coisas, outros sabores, outras cepas, outras comidas e, assim, com o clima e solo únicos do Chile, fazer os grandes vinhos do futuro. [...] Deixaria de usar a palavra ícone. Para mim, os ícones se transformam em tal não porque o sujeito ou coisa considerado/a como tal declare a si mesmo como ícone, mas porque ganhou essa qualicação do exterior, do consumidor, do adorador”.
Quem lê o artigo “Desafiando o conceito de ícone” (cujas últimas linhas estão acima transcritas) pode erroneamente acreditar que foi escrito por algum produtor pequeno do Chile, que não consegue espaço diante das grandes corporações que dominam o mercado naquele país. Contudo, se dissermos que essa peça saiu da pena (e da cabeça sagaz e nada conformista) do enólogo responsável por uma das vinícolas chilenas mais conhecidas e respeitadas no mundo, é de causar espanto.
Francisco Baettig, enólogo da Viña Errazuriz, sabe que muitas de suas opiniões a respeito do vinho chileno (assim como de tantas outras coisas da vida) nem sempre são unânimes, tampouco bem compreendidas. “Eduardo [Chadwick, dono da Errazuriz] não ficou muito contente”, revela, ao comentar sobre o artigo. Essa visão de Baettig sobre os ícones é ainda mais surpreendente se considerarmos que seu “chefe”, Eduardo, é um dos que mais fez pela promoção dos vinhos considerados ícones no Chile. Em janeiro de 2004, pouco antes de Baettig realizar sua primeira colheita em Errazuriz, Chadwick promoveu a famosa “Cata de Berlim”, em que colocou seus principais rótulos às cegas lado a lado de vinhos mundialmente famosos e venceu – aumentando ainda mais o status de ícone de seus produtos.
Dessa forma, apesar de Baettig ver em Chadwick um progressista com mente bastante aberta, isso não impede que eles tenham conceitos de opinião bastante duros. Uma delas foi durante a implantação da nova linha de vinhos de Aconcágua Costa, por exemplo. Mas, deixamos que Baettig dê sua visão a seguir:
Como foi pensada e quando foi desenvolvida a linha de vinhos de Aconcágua Costa?
Em 2005 desenvolvemos um vinhedo na Costa, a 12 quilômetros do mar em linha reta. Começamos com Sauvignon Blanc. Depois, falei com Eduardo [Chadwick] e disse que Pinot Noir e Chardonnay também funcionariam bem. Ele disse sim para Chardonnay, mas não queria Pinot. Insisti. Hoje temos 70 hectares de Pinot. Depois de 10 anos, ele viu que o vinho está muito bom e quis fazer um ícone de Pinot e de Chardonnay. Disse: “Chega de ícones. Já há muitos. Vamos fazer o melhor que pudermos, mas com o conceito de lugar e não como nome de produto. Vamos manter a denominação Aconcágua Costa, buscar solos, insolação, orientação etc, e quais os lotes mais elegantes, descobrir quais os equivalentes a um Grand Cru, Premier Cru e Village”.
Então a ideia está no desenvolvimento de classificações similares às da Borgonha, em que o terroir determina o estilo e a qualidade do vinho?
Estamos trabalhando na concepção de um mapa geológico de toda a propriedade. Há 230 hectares ao todo, é como Volnay. Mantemos Aconcágua Costa, mas damos uma designação pequena – como um climat. Um deles é “Las Pizarras”. Vamos começar com Chardonnay e Pinot e ver quais são os lugares que entregam vinhos como os Grand ou Premier Cru. Mas vamos construindo de baixo para cima. Ele [Eduardo] aceitou o conceito de rótulos iguais. Foi uma discussão de oito meses, pois queria colocar um nome de ícone que perdia o link com o lugar. Você quer fazer vinhos de estilo borgonhês em Aconcágua Costa? Creio que a Borgonha tem uma tipicidade que não sei se vamos encontrar e tampouco sei se essa é a finalidade. Mas o estilo geral é por aí, um vinho com potencial de guarda, com uma nota interessante na boca mais austera, com um pouco de giz, elegância. O Pinot do Chile não estava nesse caminho. Mas o Chile tem que fazer seu próprio caminho, que não sei onde vai terminar. Não sei qual a tipicidade final do Chile. Não sei para onde esse caminho leva ainda, mas, sim, ter a Borgonha com referência é importante.
O Pinot chileno evoluiu muito nos últimos anos? Como pensa nos seus?
Os Pinots hoje se limparam muito. Isso é um grande passo, pois são mais frescos, com boa acidez. Mas o passo seguinte é buscar vinhos que tenham um pouco mais de estrutura de tanino, se quiser ser um grande vinho de guarda. Os Pinot, em geral, evoluíam muito rápido, primeiro pois se colhia muito tarde e a acidez era muito baixa. Então z extração mais suave, não faço pigeage, faço remontage suave, faço maceração fria na maioria dos lotes por cinco e sete dias. Alguns lotes macero um pouco mais buscando integração mais suave com o tempo. Evito mover demais com os trasfegos.
E o Chardonnay?
O Chardonnay é interessante pois mescla duas coisas. Muitos dizem que parece Chablis por essa salinidade em boca, mas outros dizem que no nariz é mais profundo e, portanto, parece Côte de Beaune. O Chardonnay da Costa está 100% fermentado em barrica francesa usada. O nariz é muito mais de frutos secos, mais delicado e austero. Não tanto fruta tropical exuberante. Em boca, é muito linear. Evitamos todo o estresse da vinha, a exposição direta ao sol. Colho três semanas antes. Em anos mais quentes, até um mês antes. Não é algo ortodoxo, mas quero um vinho com mais acidez. Tento não usar a palavra mineral, uso algo mais como seco, com giz. Bastante vertical. O solo não é calcário, não tem a mineralidade clássica da pedra. O Chile pode ter mais Chardonnay nesse estilo. Essa mudança é recente, de três a cinco anos para cá, mas é uma mudança real. E creio que as pessoas começam a sentir.
Quando e por que começou a colher mais cedo?
Na minha cabeça começou em 2008. É uma evolução de gosto. Uma mudança minha. Quando criança, você gosta do doce, não do amargo nem do ácido. Hoje o doce me incomoda. O dulçor de madurez foi me incomodando. Tive uma boa conversa com Marcelo Retamal [enólogo da De Martino] quando ele já tinha a ideia de eliminar as barricas, fazer vinhos com mais elegância. Mas eu realizei isso muito mais tarde. Marcelo tem muito mais liberdade para tomar decisão. Eu tenho que ir convencendo internamente. Errazuriz tem um nome e não tinha como partir do zero. “Porque fazer tantas mudanças se os vinhos vão bem?” “Creio que podem ir melhor se fizermos isso”. O único que apoiou a linha Aconcágua Costa desde o princípio fui eu. E, depois, nos ícones da vinícola, estou começando a fazer uma mudança interessante, muito suave, mas que vai se traduzir em breve. Em 2005 e 2006 foi o ápice da madurez e da madeira. Isso começou a mudar. O Viñedo Chadwick de 2015 colhi em 20 de março, sendo que antes se colhia em 20 de abril.
Quando entrou em Errazuriz e como promover mudanças em uma vinícola bem estabelecida?
Comecei em meados de 2003. Errazuriz sempre teve boa imagem, mas tinha muito para fazer. Chile e Errazuriz tinham muito para fazer. Renovei muito vinhedo. O Chile cometeu alguns erros nos lugares de plantação, mas também não se preocupou com a renovação, algo que na França é normal. O país nunca renovou nada. O manejo restritivo de água afetou muito os vinhedos que tinham 15, 20 anos e estavam em condições ruins. Então, replantei muito. Tentei limpar um pouco mais os vinhos. Sempre há desafios importantes e Eduardo está muito envolvido. Em uma entrevista recente, você chegou a dizer que hoje há uma “apologia aos defeitos do vinho”.
O que quis dizer?
Isso foi um pouco duro. Mas vou dar um pouco de contexto. O Chile, apesar de ter uma longa história vitivinícola, é um país novo na cena de vinhos de qualidade, de terroir, modernos, limpos. São apenas 20, 30 anos, o que, no mundo do vinho, não é nada. O que me referia com isso é que, hoje em dia, começamos a descobrir coisas diferentes, vinhos de personalidade, mas limpos, com fruta. Porém, encontra-se um pouco de tudo, alguns com Brettanomyces, sujos, verdes. Por exemplo, a maceração carbônica, às vezes, é vista como fantástica, mas depende do vinho. Em País funciona bem, pois é uma cepa muito difícil, de pouca cor. Mas, em um Pinot, se você usa, não se sente tanto o lugar, é puro aroma.
Em outra entrevista você também disse que, no começo, encontrava muito problema com Brett.
Quando cheguei, havia muito. A passagem pela França [fez um mestrado na faculdade de enologia de Bordeaux em 2001] foi muito boa para mim. Não aprendi muitas coisas, mas aprendi poucas muito importantes. Por exemplo, o problema de TBA, que no Chile não se conhecia. Em 2005 e 2006 houve muito. Apareceu em Errazuriz e pude consertar em um ano, mas fizemos um investimento de mais de 1 milhão de dólares. No começo diziam: “Está louco”. E o mesmo ocorreu com Brett. Tem que conviver com Brett, pois eliminar 100% não dá. Tem que saber eliminar quando se descobre antes que contamine.
Em sua conta no Twitter...
Digo muitas aberrações no Twitter. É pessoal, não digo nada de Errazuriz. 20% é vinho, o resto é sociologia, qualquer coisa. Creio que no Chile as pessoas se expressam pouco. Têm um certo receio de dizer o que pensam. São um pouco castradas. Tento expressar outras coisas. Isso me trouxe alguns problemas.
Enfim, você participou de uma jornada de reflexão do vinho no Chile?
É a quarta edição de que participo e escutei o mesmo que na terceira, na segunda, na primeira. Era só choro, autoflagelação... Errazuriz não é isso, mas deve ter poucas vinícolas que escapam dessa realidade vitícola difícil. O diagnóstico é duríssimo. O Chile tem problemas estruturais brutais. Não posso dizer todos, pois são complicados, mas creio que falta trabalhar a imagem de país. O consumo local é zero e isso é um problema gigante para um país que produz e tem que exportar tudo. Com consumo interno maior, você não precisa suplicar para que lhe comprem vinho. O Chile exporta 70% do que produz e o preço médio é um dos mais baixos do mundo, 30 dólares a caixa, isso há 15 anos. Além disso, em anos de pouca produção, uva de mesa milagrosamente se transforma em uva vinífera. E ainda tem o problema da estrutura das denominações de origem que são tremendamente amplas, não têm sentido de local, de complexidade. Um vinho Reserva por 1000 pesos (R$ 6) e ninguém diz nada. São problemas importantes que requerem muita generosidade, associações e longo prazo para resolver. O Chile às vezes pensa como Velho Mundo, que está sentado e não faz nada. Mas eles, no Velho Mundo, seguem trabalhando e ainda sabem vender valor. O que o Chile vende de valor, de luxo, de imagem? Nada. Não sabe vender valor.
Mas, ainda assim, vemos mudanças importantes acontecendo na vitivinicultura chilena. Não é um país estagnado nesse aspecto...
Quem influi nas mudanças? Em geral, os enólogos, porque entendem com quem competem. Viajamos muito. Se me perguntam: “Onde iria fazer vinho hoje?” Digo: “Hoje iria ao Chile”. Não é mentira. Há um potencial gigante. Mas ainda falta muito. O Chile tem que trabalhar a sua imagem. A França vende vinho, mas vende gastronomia, paisagem, história, tudo, assim como a Itália também. O Chile não tem esse apoio, então tem que ir só com vinho.
Mas trabalhos como de Eduardo Chadwick acabam reforçando a imagem do Chile, não?
Mas não há muitos Eduardos. Quem faz esse trabalho de imagem? Poucos. As maiores vinícolas querem gastar os recursos em consumo, não em imagem. Deveriam trabalhar os dois pensando: “Isso não é para a minha geração”. Mas essa mentalidade é difícil.
Qual seria o caminho para o vinho chileno então?
Há cinco anos achava que o Chile não ia para nenhum lado. Mas hoje creio que começa a mostrar coisas interessantes e tem um futuro muito bom. Há mais produtores pequenos, uma aproximação da enologia com o terroir, vinhos um pouco mais acessíveis – pois o Chile fez vinhos baratos, saltou para ícones e, no meio, não havia quase nada. O país está olhando para um potencial de solo, de clima, que não olhávamos muito antes, além de loso a de trabalho. Acho que há uma diversidade importante que pode nos posicionar entre os grandes países produtores como Espanha e Itália, que têm uma diversidade gigante de lugares e estilos. O Chile pode fazer isso no médio e longo prazo. Precisamos explorar melhorar isso. Vejo um bom futuro, mas vai precisar das cabeças que dirigem o vinho no país. Creio que eles vão ter que aceitar a mudança, mas assumindo essa mudança por um choque contra a realidade, não porque processaram isso. Ainda há muita resistência a mudanças? Quando o MOVI (Movimiento de Viñateros Independientes) começou, por exemplo, eles não entenderam, mas hoje se deram conta de que precisam deles, pois isso representa a diversidade do Chile. Não digo que os vinhos sejam necessariamente super bons, mas os críticos querem ver. Adoro que existam, pois são produtores pequenos que empurraram os grandes, e que me permitiram fazer essas coisas novas. O establishment aceitou MOVI não porque achou que os produtores pequenos aportavam algo, mas porque teve que aceitar. Da mesma forma, vão ter que aceitar muitas outras coisas mais. Mas seria bonito que fizessem mais reflexões e isso acontecesse por si só.
E qual o futuro de Errazuriz?
Errazuriz hoje está mesclando duas coisas e gosto que sejam assim. Eduardo tem um furor por vinhos ícones importante, garrafas de muito valor e margem muito alta. Só há cinco vinícolas no Chile que podem vender esse tipo de vinho: Montes, Errazuriz, Almaviva, Don Melchor e Casa Lapostolle. Não há outras que tenham vendas significativas de vinhos acima de US$ 350 a caixa. Porque não usar isso para empurrar um pouco o Chile de valor, mas também um pouco mais o de lugar, como a linha Aconcágua Costa, por exemplo? Eu respeito isso, mas trato de aportar outros vinhos mais de lugar.
Sonha em ter um projeto próprio?
Sim, todos os dias. Mas é difícil. Tenho isso na cabeça. Não tenho dinheiro para vinhedos na zona central, onde a terra é muito cara. Mas gosto mesmo do sul. Sul profundo, 600 quilômetros de Santiago. Creio que lá há um potencial muito interessante.
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