Entrevista

Florent Baumard fala das polêmicas e as sutilezas da Chenin Blanc

Florent Baumard lida com as sutilezas da Chenin Blanc no Loire da mesma forma com que trata as polêmicas em que o Domaine des Baumard se envolve

por Por: Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan

Foto: Gladstone Campos/RealPhotos  

Ao relembrar seus primeiros anos trabalhando na vitivinicultura, Florent Baumard diverte-se com sua antiga petulância juvenil. “Sei tudo de vinho”, teria dito ao pai ao largar os estudos. Em pouco tempo, porém, o pai, Jean, e o trabalho nas vinhas do Loire fizeram com que ele entendesse que, de fato, não sabia de nada.

Apesar de dizer que não fez muito mais do que continuar o legado de seu pai, algumas de suas inovações fizeram com que o Domaine des Baumard se envolvesse em polêmicas. Florent, porém, não se exime das controvérsias e as tira de letra, assim como faz com as sutilezas da Chenin Blanc, a casta mais importante e também a mais complicada de se trabalhar no Loire.

Nessa conversa franca, Florent explica como uma mesma uva pode resultar em tantos tipos diferentes de vinhos graças a uma maturação repleta de fases diversas, conta como fez a opção pelas tampas de rosca (e o porquê de não se arrepender), revela os motivos de sua “briga” com um jornalista, além das contendas com o órgão responsável pelas denominações de origem na França (INAO), que o fizeram não aceitar a classificação do clássico Quarts de Chaume como Grand Cru.

Quais as origens do Domaine des Baumard?

Temos um ancestral que cultivava vinhas em 1634 em Rochefort sur Loire. Mas foi meu pai quem criou o Domaine como ele é. Meu avô fazia vinho, mas era viveirista, plantava vinhas, e meu pai lhe disse: “Não vou fazer nada além de vinho”. Ele estudou enologia e viticultura, e depois ensinou na universidade em Angers durante 20 anos para financiar os vinhedos. Tudo o que existe (40 hectares) foi meu pai que comprou. Eu simplesmente continuei a fazer a mesma coisa, só que de uma forma mais precisa. Porém, realmente não mudei nada, só continuei o que meu pai me ensinou.

Onde estudou?

[Colocar Alt]

Estudei na Borgonha, em Bordeaux, no sul da França, e depois sai um pouco passear para todos os lados. Quando voltei para nossa região, sabia tudo de vinho, por isso sai da escola. E disse isso a meu pai. Ele então falou: “Você vai criar sua própria empresa e depois vamos ver”. Foi sábio. Durante dois anos, aluguei vinhas, material etc. Como tinha um diploma de jovem agricultor, podia emprestar dinheiro com juros baixos. Depois, juntei-me a meu pai pouco a pouco. Anos depois, dei-me conta muito rápido de que tudo o que aprendi antes não se aplicava em nossa região. Em linha gerais, sim, mas fazer vinhos lá, com nossas uvas, Chenin Blanc, é muito diferente. É muito mais complicado. E eu não sabia.

Quais as diferenças?

A diferença principal e maior é que a Chenin Blanc não matura de maneira homogênea. É muito heterogênea em uma mesma vinha, em uma mesma parcela, em um mesmo vinhedo, mas também em um mesmo cacho. Isso é complicado, pois obriga a selecionar à mão. Com um tipo de uva, posso fazer um vinho branco seco; com outro, posso fazer um vinho seco, branco e mais rico; com outro posso fazer um vinho muito suave; e com outra faço o vinho doce que amo. Isso é muito importante. Nosso segredo está aí. Chenin é a única casta que utilizamos para nossos vinhos principais, mas, se pensarmos por essa linha, temos 10 cepas diferentes. Vocês possuem vinhedos nas duas margens do Loire.

Quais as diferenças entre os vinhos dos dois lugares?

O rio Loire corre de leste para oeste. Na nossa parte, em Anjou, o único vinhedo ao norte é o de Savennières. Lá há cerca de 150 hectares em toda a denominação, ou seja, é do tamanho de um Château médio no Médoc. Somos 25, 30 produtores. Todo o restante dos vinhedos é ao sul do Loire. E a razão pela qual fazemos o vinho branco seco no norte, na vila de Savennières, é que há dois graus de temperatura media anual a menos no norte do que no sul. Portanto, há uma maturação um pouco inferior e, por isso, é propício para o vinho branco seco. O vinho doce é mais no sul e o tinto também.

Quando fez a opção por usar somente tampas de rosca em seus vinhos? Por quê?

 Fiz a mudança em 2003. Tecnicamente as tampas metálicas são o melhor método para proteger o vinho. Isso é indiscutível. Teria começado a usar há 35 anos, sabia que existia, mas não tinha condições. Mas não escolhi esse método para “aparecer”. Faço um vinho muito fino, delicado, preciso, que tem uma personalidade muito forte, marcada, mas com discrição, elegância, e, com a rolha de cortiça, tinha muitos e frequentes desvios aromáticos. O vinho não estava ruim, mas não estava puro, preciso, como tinha colocado na garrafa. E para explicar isso para um consumidor é muito complicado. Quero que as pessoas gostem do meu vinho, mas, se não gostarem, que não gostem por causa do vinho e não da rolha – de algo que escapa ao meu controle. Você dedica a vida a cultivar, a escolher as uvas, selecionar, fracionar o mosto, e no fim...

É verdade que a primeira experiência nesse sentido foi em uma safra em que faltaram garrafas?

Isso foi em 1987, minha primeira safra. Como “sabia tudo”, gastei o dinheiro que tinha rapidamente e, para uma cuba de vinho branco seco, eu não tinha dinheiro suficiente para comprar garrafas ou rolhas. Meu pai me salvou uma vez mais: “Dou-lhe garrafas de segunda mão, de Crémant, e você sela com tampa de metal. Isso não custa nada e é muito eficaz”. Guardamos muito vinho de reserva dessa forma, como se faz em Champagne, e fazemos isso há mais de 30Vendi e, depois de alguns anos, alguns clientes disseram: “Bebemos e o vinho estava bom depois de 30 anos”.

Portanto, não se arrepende dessa decisão?

Durmo muito melhor à noite. Em uma degustação, não tenho medo de ter uma garrafa ruim. Pode até ter, mas a razão pode ser a conservação, o transporte, a variação de temperatura, mas não a rolha. Estou 100% satisfeito. O modelo de tampa de rosca que usamos é mais sofisticado, é melhor e mais caro. O vinho não é mais que a precisão. É como uma poesia, se as palavras não são colocadas em uma boa ordem, a poesia não é boa, ou a frase não faz sentido.

Você perdeu clientes por causa disso?

Muitos e ainda hoje perco. Muitos dizem: “Faça-me uma edição especial com rolha de cortiça”. Há demandas como essa, mas digo que não. Agora, faz mais de 10 anos e os vinhos são magníficos. Podemos fazer uma degustação vertical e vocês verão que os vinhos evoluem, ganham em complexidade. De fato, as melhores rolhas de cortiça exercem a mesma proteção que uma cápsula. Só que as cápsulas são todas idênticas. Pode haver problemas técnicos, mas é mais raro. Na cortiça, há variedade. O lobby da cortiça é rico, ela é boa para muita coisa, mas não para proteger o vinho. Digo isso, pois o vinho evolui em um meio redutor, ao abrigo da oxidação. Todas as pessoas que dizem que é preciso ter uma troca com o exterior, pois é preciso o oxigênio etc., isso é obscurantismo. Isso já foi demonstrado em 1976 por enólogos do mundo todo.

Então não é preciso oxigênio para que haja evolução em garrafa?

Só antes de o vinho ser engarrafado. A oxidação é necessária durante a fermentação, a vinificação e mais ou menos durante os anos em garrafa. Tenho uma ideia de quando e onde a oxidação é necessária para meus vinhos, e costumeiramente me engano. Mas, quando coloco o vinho na garrafa, há uma oxidação feita com o ar (que pode estar na garrafa) e há a oxirredução – um fenômeno químico, que existe. Mas, se acrescento um elemento incontrolável, uma rolha porosa, então uma garrafa pode estar maravilhosa, talvez melhor do que aquela que foi perfeitamente selada (pelo menos em um primeiro momento, mas não no longo prazo), e outras que não estão boas.

Por que você foi contra a classificação proposta para o vinhedo de Quarts de Chaume?

Há várias razões. Primeiro porque era só para Quarts de Chaume e, para mim, a denominação não precisa disso. Ela tem um renome de qualidade que é anterior, tem mais de mil anos. Não fui contra a ideia de poder criar um Grand Cru, mas culturalmente lá não usamos essa terminologia ou, se usamos, não era oficial. O sistema francês de classificação é muito emaranhado, assim como o espírito de muitos franceses, talvez o meu também. Se pergunto a um leigo: Grand Cru ou Premier Cru, qual o melhor? Provavelmente vão dizer Premier. Então é preciso escrever Premier Grand Cru. Assim pode-se compreender, mas ninguém quis. E, se fizer a classificação, é preciso fazer para Coteaux du Layon também, para toda a região. Mas não. “A ideia é começar pelo Quarts e depois vemos”, disseram. Isso é antidemocrático. Não estamos mais no século XVIII. A outra razão para ser contra é que, para beneficiar a denominação Grand Cru, eles mudaram o caderno de regras e, com as novas regras, eu estava excluído, pois não cultivo a vinha da mesma forma.

Vocês usam alguma técnica específica de condução nos vinhedos?

Sim, o vignes hautes et larges (VHL) – vinhas altas e largas – é um modo de condução praticado no mundo inteiro, de forma mais ou menos diferente dependo da região. É um sistema que meu pai começou a usar em 1955. A ideia, a grosso modo, é que afastamos um pouco o espaço entre as fileiras e isso permite o crescimento da vegetação mais alta e aumenta o período de eficácia da fotossíntese. Nas vinhas tradicionais, antigas, deve-se tirar as folhas para circular o ar, colher, fazer tratamentos e isso freia o processo de fotossíntese. Temos dois estilos de condução nos nossos vinhedos, o antigo e VHL. E observamos um grau, um grau e meio de diferença de maturidade no momento da safra. Por isso, diminuímos a densidade. Mas, no começo, não sabia disso, então aumentamos a densidade na fileira. O INAO disse que não podemos fazer isso, que é um sistema inaceitável. Meu pai se inspirou em um modo de condução que era praticado na Áustria nos anos 1950. Eles tinham o mesmo problema que nós por estarem no limite norte da viticultura, onde é preciso ter a melhor maturação possível. E, aumentando o tempo de sol, isso nos permitiu. Na França, por razões políticas, é um sistema que está condenado a desaparecer. Mesmo nas escolas e mesmo quando eu estava na escola, era muito mal visto. E hoje não é mais ensinado. Mas talvez haja uma segunda onda disso. A densidade, a complexidade, a riqueza do vinho têm paralelo com os mesmos aspectos da cultura da vinha. Poderíamos dizer que, no mundo inteiro, cultivamos a vinha em lugares onde não há água e é preciso fazer com que ela venha até o vinhedo. Isso não é natural, não é muito coerente. Não estou de acordo com isso. Tudo é discutível. Mas vamos continuar a fazer como na Idade Média, essa é solução.

A crioextração também era um problema, pois é algo que vem sendo questionado?

Também tem a crioseleção, que é relativamente importante e as pessoas não sabem o que é. Detalhamos ela no nosso site, pois um jornalista [Jim Budd, colaborador da Decanter] estúpido manipulou informações, foi desonesto. As regras atuais nos obrigam a colher as uvas quase mortas, mas, se você faz o vinho com essa uva superbotrytizada, concentrada, faz o mesmo vinho que pode fazer com Riesling, Gewürztraminer, Sémillon, pois a botrytis traz a doçura e domina. E uma uva em estágio anterior de maturação traz o frescor, o gosto de fruta. E a fruta reflete o lugar com sua acidez, seu frutado. Se colho assim, é bom, mas, se espero dois dias, não será mais assim e não terá mais fruta ou elegância. Para escolher perfeitamente o grão, faço seleção manual, muito mais que meus colegas, e essa seleção, em alguns anos, não é suficiente. E é impossível, pois se você tocar a uva, a pele é tão frágil, que rompe, o suco sai e há oxidação da fruta. Isso não é bom. Em um cacho em que há grãos verdes e outros magníficos, você não quer os verdes. Então, é preciso pegar o cacho todo e encontrar um meio de não extrair o suco das uvas que não estejam suficientemente ricas. A seleção a frio permite isso. É muito complicado tecnicamente, demanda muita mão de obra, pois precisa transportar e recolher as uvas em caixas muito pequenas, não pode empilhar. E sou alvo de críticas, assim como meu pai antes de mim, por continuar a fazer assim. Mas todos podem fazer como nós. Na França, é tudo bloqueado por ignorância. As denominações têm sede de poder politico e econômico, e são dirigidas pelas grandes regiões produtoras. Sou partidário da liberdade. Não há mais liberdade na França assim.

AD 91 pontos

DOMAINE BAUMARD SAVENNIÈRES CLOS SAINT YVES 2012

Domaine Baumard, Loire, França (Mistral US$ 52,50). Branco seco elaborado exclusivamente a partir de Chenin Blanc, sem passagem por madeira. Mostra aromas de frutas brancas e cítricas acompanhados de notas herbáceas, florais e minerais, que se confirmam na boca. Estruturado e cheio de tensão, tem acidez vibrante e final persistente, com toques salinos. Seu ótimo volume de boca e textura quase cremosa evidenciam o período de nove meses do vinho em contato com suas borras – sur lie. Álcool 13%. EM

AD 89 pontos

DOMAINE BAUMARD ROSÉ DE LOIRE 2013

Domaine Baumard, Loire, França (Mistral US$ 23,90). Rosado composto de Cabernet Franc e Grolleau, sem passagem por madeira. Cheio de frescor, mostra frutas vermelhas frescas escoltadas por notas florais e herbáceas. Leve, gostoso de beber e gastronômico, têm boa estrutura, ótima acidez e final persistente, com toques salinos e de ervas, pedindo mais um gole. Álcool 11%. EM

AD 90 pontos

DOMAINE BAUMARD ANJOU LOGIS DE LA GIRAUDIÈRE 2010

Domaine Baumard, Loire, França (Mistral US$ 33,50). Tinto elaborado a partir de Cabernet Franc e Cabernet Sauvignon, com maceração carbônica e sem passagem por madeira. Cheio de frutas e num estilo mais vibrante, mostra acidez refrescante, taninos de ótima textura e final carnudo e suculento, com toques minerais e de ervas. Direto, para beber sem pensar, aparentando ser menos complexo do que realmente é. Álcool 13,5%. EM

AD 93 pontos

DOMAINE BAUMARD QUARTS DE CHAUME 2008

Domaine Baumard, Loire, França (Mistral US$ 167,90). Branco doce elaborado exclusivamente a partir de uvas Chenin Blanc atingidas pela podridão nobre (Botrytis cinerea), sem passagem por madeira, mas com sur lie entre nove e 18 meses. Untuoso, complexo e muito elegante, apresenta frutas cítricas e de caroço seguidas por notas florais, especiadas e de camomila, além de toques minerais e de mel, tudo envolto por grande cremosidade. Cheio e profundo, tem acidez e estrutura para equilibrar todo seu dulçor e madurez. Álcool 12%. EM

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