Resgate de tradições vênetas

O Amarone e outros vinhos clássicos de Valpolicella de Sandro Boscaini, o “Mister Amarone”

por Por Guilherme Velloso

Sandro Boscaini, proprietário e presidente da Masi, importante vinícola do Vêneto, também é conhecido por “Mister Amarone” (Senhor Amarone). O apelido é mais do que simples associação com o nome de um dos vinhos mais conhecidos da Itália, o Amarone della Valpolicella, produzido na região próxima à cidade de Verona. “Mister Amarone” é o título da edição italiana do livro “Amarone – The Making of an Italian Wine Phenomenon” (Amarone – a construção de um fenômeno italiano do vinho), da jornalista inglesa Kate Singleton, cujo foco é o trabalho da Masi e o próprio Boscaini.

O apelido e o livro são um reconhecimento ao incansável trabalho de Sandro em favor da bebida. Primeiro, para colocá-la no pedestal dos clássicos da moderna vitivinicultura italiana; segundo, para torná-la conhecida por consumidores de todo o mundo, por meio de constantes viagens e degustações, inclusive no Brasil, país que tanto ele como seu filho Raffaele, diretor de marketing da Masi, já visitaram.

Sandro Boscaini faz parte da sétima geração no comando do negócio familiar, de cuja administração participam, além de Raffaele, a filha Alessandra e o irmão Bruno (outro irmão, Mario, tem atividade própria, mas é acionista e conselheiro da Masi). As origens da empresa remontam a 1772, com a compra das primeiras terras num vale conhecido como Vaio dei Masi, que acabou dando nome à vinícola. Hoje, ela produz ampla gama de vinhos (brancos, tintos e rosados), em diferentes estilos e faixas de preço. E exporta mais de 90% da produção para quase 90 países. Além dos vinhos que produz na Itália, a empresa tem uma operação na Argentina, a Masi Tupungato. E responde pela produção e distribuição mundial dos vinhos feitos na histórica propriedade Serego Alighieri, no coração de Valpolicella, que pertence, desde 1553, aos descendentes do poeta Dante Alighieri, com os quais também mantêm uma parceria na Toscana. Outra parceria é com o tradicional produtor Bossi Fedrigotti, na região do Trentino.


Amarone emprega técnica milenar conhecida como apassimento (passificação). Depois de colhidas, as uvas são deixadas para secar ao longo dos meses de inverno, por períodos que variam de 90 a 120 dias, acomodadas em “bandejas” superpostas conhecidas por arelas

Reza a lenda que o Amarone nasceu por engano, quando um Recioto foi fermentado por tempo maior que o usual, resultando em uma bebida totalmente seca e com acentuado amargor final

O processo do Amarone

Em que pese essa diversificada atividade, tanto o nome Masi como Sandro Boscaini remetem inevitavelmente ao Amarone. Um dos vinhos mais tradicionais da Itália, embora o nome só tenha começado a ser amplamente utilizado na década de 1960, ele emprega técnica milenar conhecida como apassimento (passificação). Por essa técnica, depois de colhidas, as uvas são deixadas para secar ao longo dos meses de inverno, por períodos que variam de 90 a 120 dias, acomodadas em “bandejas” superpostas conhecidas por arelas. Cada arela mede 1,20 x 4 metros e suporta aproximadamente 100 quilos de uva, que terão perdido de 30 a 40% de seu peso ao final do processo. Um detalhe fundamental é que as arelas são feitas com bambu, outrora abundante nas margens de muitos rios na região do Vêneto, mas que hoje também vêm da Ásia. A preferência pelo bambu é explicada pelo fato de que ele absorve a umidade excessiva e é fácil de limpar. Já o plástico não absorve umidade, o que facilita a proliferação de fungos.

O papel das uvas

O processo de passificação concentra aromas e sabores e os vinhos ganham maior teor alcoólico (em torno de 15%). A técnica está longe de ser uma novidade, pois já era usada pelos romanos, exatamente com o objetivo de aumentar o teor alcoólico do vinho para protegê-lo de doenças e aumentar sua longevidade. A mesma técnica originou, inicialmente, o Recioto della Valpolicella, irmão gêmeo do Amarone, só que doce. Na verdade, há aproximadamente 200 anos, praticamente só se produzia o vinho no estilo doce. Reza a lenda que o Amarone nasceu por engano, quando um Recioto foi fermentado por tempo maior que o usual, resultando em uma bebida totalmente seca e com acentuado, para a época, amargor final, o que deu origem ao nome “Amarone” (que deriva de amaro, ou seja, amargo).

Na verdade, foi a mudança no gosto do consumidor, em favor de vinhos menos doces (fenômeno que também ocorreu com o Champagne), que estimulou a produção do estilo seco. Recioto e Amarone são potentes e frutados quando jovens, ganhando complexidade com o passar dos anos. E o característico amargor final evita que a doçura (no caso do Recioto), ou a sensação de doçura (no caso do Amarone, aportadas pelas uvas quase totalmente passificadas), tornem-se enjoativas.

Tanto o Amarone quanto o Recioto, que ganharam DOCs próprias, são produzidos com as três uvas clássicas da região: Corvina (a principal), Rondinella e Molinara. Cada uma contribui com características específicas para o vinho final, e que se alteram, em maior ou menor grau, durante o processo de passificação. A Corvina, que, em geral, responde por mais de 50% do corte, caracteriza-se pelos aromas e sabores de cereja, que se transformam em licor de cereja ou cerejas ao maraschino no processo – que também costuma render notas sutis de chocolate e de nozes. Quando fresca, a Rondinella, que em geral detém a segunda maior participação no corte, é responsável pela estrutura tânica e pela cor. Esta última característica se intensifica com a passificação, que também torna os taninos um pouco mais suaves. Além disso, ganha-se em acidez, aromas picantes e de frutas em compota. Já a Molinara, cuja contribuição, em geral, não ultrapassa 10% do corte, oferece acidez e frescor, além de marcados aromas de especiarias, como pimenta, características que se acentuam com a passificação.

Após a fermentação, o vinho pronto amadurece em barricas ou barris de carvalho de maior capacidade – alternativa mais usada atualmente por muitos produtores. Um detalhe a ser levado em conta é o conceito de safra que, no caso de um Amarone ou de um Recioto, é um pouco diferente, porque as condições do tempo ao longo do processo de passificação (e não apenas no período de amadurecimento normal das uvas) também influenciarão na qualidade final do vinho.

Sandro Boscaini

Sandro Boscaini (sétima geração no comando do negócio familiar) se tornou quase sinônimo de Amarone. As origens da Masi remontam a 1772

Sinônimo de Amarone

Se o Amarone, assim como as uvas que entram em sua composição e o próprio processo de ressecá-las, é antigo e conhecido, porque Sandro Boscaini (e a Masi) se tornou quase sinônimo desse vinho? Simplesmente por seu empenho em investir na melhoria do processo e em divulgá-lo mundo afora. No final dos anos 1970, Boscaini decidiu deixar o consórcio de produtores, pois, a seu ver, a legislação vigente não assegurava a qualidade de muitos vinhos, que se beneficiavam da fama que o nome carregava sem fazer jus a ela. Assim, em 1979, ele criou o Grupo Técnico Masi, com o objetivo de desenvolver pesquisas para assegurar tanto a qualidade quanto a autenticidade dos vinhos que produz.

Embora focadas, sobretudo, no processo de passificação, elas abrangem todos os aspectos da produção – do clima às leveduras. Esse trabalho resultou, por exemplo, na “redescoberta” de tradicionais variedades do Vêneto, que quase tinham deixado de ser utilizadas comercialmente, a exemplo da uva Oseleta, hoje presente no Osar, um dos vinhos da Masi.

A luta de Boscaini também envolve preservar a personalidade e o peculiar modo de produção do vinho. Ele não admite, por exemplo, práticas destinadas a apressar o processo de passificação, como a de aumentar artificialmente a temperatura das salas onde as arelas com as uvas estão guardadas. E quando ouve questionamentos, cada vez mais comuns em muitos países, a respeito do alto teor alcoólico que esse tipo de vinho alcança, responde simplesmente: “Não se pode cortar as pernas de um gigante”.


O vinhedo de Costasera, acima do lago de Garda, produz o vinho mais célebre da Masi

A Masi também é conhecida por resgatar uma técnica abandonada, que renasceu pelas mãos dos técnicos da empresa em 1964 sob o nome Ripasso

Confiante e orgulhosa de seu trabalho, a Masi criou uma espécie de logomarca, estampada no rótulo de todos os seus vinhos cujas uvas passam pelo processo de passificação. Nele se lê “Apaxximento, Masi Expertise”, seguido pela assinatura do próprio Sandro Boscaini. Essa logomarca, com um dos “x” em destaque, está presente nos cinco Amarones e três Reciotos produzidos pela empresa. Mas o processo não se restringe aos tintos nem aos vinhos produzidos na Itália. A Masi faz o branco Masianco, que é um corte de Pinot Grigio (75%) de maturação normal com 25% de uvas Verduzzo ligeiramente passificadas. E produz dois vinhos em Tupungato, na Argentina, com a mesma técnica: Passo Doble e Corbec. O primeiro é um corte de Malbec (70%) e Corvina passificada (30%); o segundo, cujo nome combina as iniciais das duas uvas, tem presença majoritária da Corvina passificada (70%), com 30% de Malbec.

O renascimento do Ripasso

A Masi é igualmente conhecida por ter resgatado uma antiga técnica de produzir vinhos da região do Vêneto. Praticamente abandonada, ela renasceu pelas mãos dos técnicos da empresa em 1964 sob o nome Ripasso. A técnica consiste em submeter lotes selecionados do Valpolicella a uma segunda fermentação sobre as borras (cascas de uvas e leveduras sobreviventes) do Amarone ou do Recioto. Com isso, obtém-se um vinho mais complexo e um pouco mais alcoólico do que um Valpolicella normal, com a vantagem de ser vendido a um preço mais atraente do que o cobrado pelos bons Amarones e Reciotos. O vinho mais conhecido (e um dos mais vendidos) da empresa a utilizar essa técnica é o Campofiorin.

Hoje, Valpolicella Ripasso também é uma DOC específica. Sandro Boscaini cedeu os direitos sobre o nome Ripasso à cidade de Verona e teve participação decisiva na criação de um consórcio reunindo 12 produtores tradicionais de Amarone (além da Masi, integram esse grupo, entre outros, nomes como Allegrini, Tommasi e Zenato). Na base dessa iniciativa está o temor do grupo de que o sucesso comercial leve à descaracterização do vinho com a produção de muitos exemplares de baixa qualidade, ainda que obedecendo aos padrões mínimos previstos na legislação. “Eles não são suficientes para impedir que isso aconteça”, diz Boscaini. Não por acaso, esse consórcio recebeu o nome de Famiglie dell’Amarone d’Arte (Famílias do Amarone de Arte), em um reconhecimento ao status do vinho como expressão do terroir e símbolo da região de Valpolicella e do próprio Vêneto.

palavras chave

Notícias relacionadas