Um casamento entre nobres

ADEGA encarou o desafio de harmonizar vinhos com uma das maiores e mais antigas iguarias da história da culinária, o foie gras

por Marcelo Copello

O foie gras é o fígado de um pato ou ganso que foi super-alimentado. Esta nutrição explora o processo natural através do qual estas aves armazenam gordura em seus fígados, preparando-se para a migração de inverno.

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Dada a envergadura do tema, recorremos ao mais premiado nome da gastronomia carioca, o francês Claude Troisgros.

A dificuldade em combinar vinhos com receitas que envolvam o famoso fígado está em seu caráter extremamente untuoso, sua tendência ao amargor e seu perfil aromático totalmente etéreo. Para uma abordagem didática, pedi a Claude que preparasse um prato que tendesse aos vinhos secos e outro aos doces. Escolhi vinhos que, dentro do perfil de cada prato, oferecem uma ampla gama de opções. Assim, para a "Codorna Recheada com foie gras ao Molho Roxo de Açaí", optei por um branco seco de boa acidez e untuosidade, um tinto de médio corpo, boa acidez e perfil aromático adequado, e um tinto mais potente. Para o outro prato, "Foie Gras Poeles com Caju, Vinagrete, Mostarda e Mel", não poderia faltar a combinação clássica, um Sauternes, que competiu com um branco igualmente doce, mas com maior acidez e menos álcool, e um tinto doce, mas sem tantos taninos. Para esta gala gastronômica, os convidados foram: Ricardo Cravo Albin (presidente do Instituto Cultural Cravo Albin); o advogado Carlos Freita e sua esposa Elisabeth; Julio Worcman (da produtora de TV Synapse); Eduardo Didonet (consultor de TI) e Marcos Bittencourt (diretor de ADEGA).

A TEORIA
Por Guilherme Corrêa*

Nas receitas propostas pelo chef Troisgros, em que o foie gras recebe uma série de parceiros repletos de caráter e texturas, as harmonizações se tornam complexas e desafiadoras. O escalope poêlée terá um aporte extra de tendência amarga do caju e da mostarda, de tendência ácida do vinagrete, de tendência doce, ou doçura propriamente dita, do mel e, finalmente, de picante da mostarda. Os elementos de dureza (amargor, acidez e picante) do prato precisarão encontrar conforto de maciez no vinho, seja de açúcar, álcool ou glicerina, e parece-me que os três vinhos propostos respondem bem a este quesito. A acidez do Riesling alsaciano poderá decretar a sua derrota dependendo da presença ácida do vinagrete no equilíbrio global do prato. Da mesma forma o poderoso Mavrodaphne de Patras poderá sair prejudicado pela presença de taninos atuando sinergicamente com o amargor do caju. Acho que o Sauternes seria uma escolha mais sábia.

Na codorna, o Foie não é protagonista, e trará untuosidade à ave, acompanhada de um molho de açaí, nossa saborosa fruta de caráter terroso e aromas de alcaçuz. Acredito que o Nebbiolo argentino, apesar da potência um pouco acima da do prato, irá ecoar bem esta característica olfativa de alcaçuz do molho, e terá seus taninos amortecidos pelo fígado untuoso. O Borgonha Fixin possui uma estrutura mais adequada à receita, mas seu equilíbrio ao frescor poderá conflitar com a acidez do molho. O Chassagne Montrachet branco é suficientemente intenso e alcoólico para cortejar a codorna e enxugar seu recheio untuoso, mas não aprecio muito a união de molhos de frutas vermelhas com vinhos de cor branca, embora não condene casamentos interraciais em nenhuma instância, mesmo na enogastronomia.
*atual campeão brasileiro de Sommeliers

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OS VINHOS
Para a "Codorna recheada com Foie Gras ao Molho Roxo de Açaí"

Restaurante Olympe

Chassagne-Montrachet Pimont 2004, Verget, Borgonha - França (World Wine, R$ 270). Chardonnay 100% fermentado em carvalho, com 13% de álcool. Amarelo palha com reflexos dourados, brilhante. Aromas muito elegantes e complexos, onde a mineralidade flagrante convive com toques de madeira, de baunilha, amanteigados, e frutas como pêra, manga, pêssegos e cítricos. Paladar de médio corpo, ótima acidez, excelente equilíbrio com a textura untuosa e os 13% de álcool.

Fixin 2004, Mongeard-Mugneret, Borgonha - França (Expand, R$ 278). Pinot Noir da Côte-de-Nuits, com 18 meses em barris de carvalho 50% novos. Vermelho-claro entre rubi e granada. Aromas intensos e de grande tipicidade da casta e da região, com frutas vermelhas frescas (framboesas, groselhas), cogumelos secos, tabaco, madeira, especiarias. Paladar de médio corpo, boa acidez, excelente equilíbrio, 13% de álcool.

Nebbiolo 2003, Viña Alicia, Lujan de Cuyo, Mendoza - Argentina (Decanter, R$ 199,50). Nebbiolo 100% amadurecido três meses em barris americanos e, posteriormente, oito meses em barris franceses. Vermelho-rubi com reflexos violáceos. Aroma potente onde a madeira vem na frente, seguida de minerais (petróleo), geléias de frutas, como ameixa e cerejas pretas, violetas, tabaco e especiarias. Paladar de grande estrutura, ainda bastante tânico, com maciez alcoólica pronunciada (14,5%).

Os vinhos da noite

Para o "Foie Gras Poeles com Caju, Vinagrete, Mostarda e Mel"

Riesling Schlossberg Grand Cru Vendanges Tardives 1995, Domaine Weinbach, Alsacia - França (Terroir, R$ 300). Uvas colhidas tardiamente, com maior concentração de açúcar. Cor amarelo-dourado. Aromas intensos de mel, geléia de laranja e de abricó doce, baunilha, amêndoas, toques de glicerina e querosene. Paladar doce, textura de grande untuosidade, pouco alcoólico, 10,5% de álcool, boa acidez, muito longo.

Mavrodaphne of Patras 2000, Antonopoulos Vineyards, Patras - Grécia (Mistral, US$ 45,50). Ótima novidade. Elaborado em Patras, norte do Peloponeso, na Grécia, com uvas Mavrodaphne (de caráter aveludado), fortificadas com adição de aguardente vínica. Vermelho rubi muito escuro. Potente no nariz, com muito chocolate, café, frutas maduras e especiarias em profusão. Paladar entre meio-doce e doce, estruturado por bons taninos (macios) e 17,5% de álcool, longo.

Château Coutet 1999, Sauternes- Barsac - França (Casa do Porto, R$ 354). Da realeza de Bordeaux, um Prémier Cru Classé de 1855. Elaborado com 75% Semillon, 23% Sauvignon Blanc e 2% Muscadelle, fermentado em barris de carvalho por 18 meses. Amarelo dourado muito brilhante. Aroma potente e complexo, no qual o caráter do fungo botrytis se destaca, seguido de mel, amêndoas, baunilha, geléias de maracujá, manga e laranja, especiarias e florais. Paladar bastante doce, quente, com 14% de álcool, acidez boa, largo e untuoso, muito longo. Espetacular.

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"Codorna Recheada""Foie Gras Poeles"

A PRÁTICA
"Codorna Recheada com Foie Gras ao Molho Roxo de Açaí"

O prato de codorna, com variantes em sua receita, é um dos mais pedidos no Olympe. A escolha do melhor parceiro para a codorna não foi unânime. O Nebbiolo, muito potente, foi a escolha de Ricardo, um confesso amante dos tintos poderosos, e do casal Beth e Carlos. Julio optou pelo branco, por sua melhor acidez, limpando a gordura do palato. O Fixin conquistou, além de mim, Eduardo e Marcos, por seu nível de sabor, bom conjunto acidez-taninos e perfil aromático. O chef Claude dividiu-se. Para ele, o Chassagne Montrachet foi o ideal para o Foie Gras, o Nebbiolo, para o molho, e o Fixin, para a codorna. Na média, o vencedor foi o Pinot Noir da Borgonha.

Detalhe da cozinha

"Foie Gras Poeles com Caju, Vinagrete, Mostarda e Mel"
A receita chegou com grande equilíbrio entre os ingredientes, sem domínio de nenhum de seus elementos. O vinho grego, apesar de excelente, foi unânime como sendo inadequado ao prato, por seu perfil que pede mais uma sobremesa à base de chocolate. O favorito Sauternes foi o predileto do chef Claude, de Eduardo e o meu, por sua maior doçura e perfil de aromas, enquanto o Riesling apresentava acidez acima do desejado. Para os demais, o Riesling tardio foi o campeão. Para Marcos, o Sauternes não se deu bem com o caju, e para o casal Beth e Carlos, era doce demais para o prato.

Esta experiência nos mostrou que vinhos doces fora da sobremesa ainda causam estranheza, mesmo em casamentos clássicos como foie gras e Sauternes. Alguns participantes confessaram que prefeririam um vinho seco ao invés dos grandes doces apresentados. Freud, pai da psicanálise, provou que nossos desejos mais profundos são os infantis. Por isso o prazer atávico do doce é tão forte. Não é à toa que a percepção da doçura cause divergências em nossos paladares. Viva a nobreza do foie gras, com tintos, brancos, secos ou doces.

TABELA DE AVALIAÇÃO
ESTRELASCLASSIFICAÇÃOPONTOS
Extraordinário ( de 95 a 100 pontos)
(93 a 94)
Excelente (90 a 92)
(88 a 89)

Muito Bom

(85 a 87)
(83 a 84)
Bom (80 a 82)
(76 a 79)
Médio (70 a 79)(70 a 75)
-Fraco (50 a 69)(50 a 69)
= Beber
= Beber ou Guardar
= Guardar
Preços aproximados no varejo, sujeitos à variação.

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