Clássicos ou inusitados, há sempre pratos para saborear com essas uvas
por Maria Bolonhese
Vinhos varietais podem ser uma caixa de surpresa na matéria de harmonizações
Que pratos combinam com Cabernet Sauvignon? E com Merlot? Essas perguntas são comuns entre enófilos, iniciantes ou não.
No fundo, todos queremos um pequeno guia, uma indicação de caminho para não errar ao colocar um vinho ao lado de um prato. Antes mesmo disso, porém, tentamos partir de um “porto seguro” já na escolha do rótulo. E aí entram os varietais.
Falar em Cabernet Sauvignon, Merlot, Carménère, Chardonnay etc. serve de parâmetro para que imaginemos, genericamente, o estilo de um vinho. É claro, no entanto, que um varietal pode diferir muito de outro dependendo de diversos fatores, tais como o terroir (basta pensar em um Pinot Noir da Borgonha versus a mesma casta em um terroir no novo mundo por exemplo) ou mesmo o estilo de vinificação do produtor.
Mas, partindo desses varietais “genéricos”, é possível, sim, sugerir harmonizações interessantes. Sendo assim, convidamos três renomados sommeliers para sugerirem soluções gastronômicas para as 10 variedades de uvas mais consumidas no Brasil entre os amantes de vinho. Gianni Tartari, Diego Arrebola e Thiago Locatelli dão dicas valiosas e surpreendentes para engrandecer seu acervo pessoal, e desafiar seus sentidos. Confira.
Uma das uvas mais importantes do mundo, a Cabernet Sauvignon é amplamente utilizada no assemblage dos vinhos de Bordeaux, na França, e também nos quatro cantos do mundo, da Austrália ao Chile, da Califórnia à Ásia. O sommelier Gianni Tartari sugere uma harmonização clássica com o Gigôt d’Agneau, pernil de cordeiro com perfume de alecrim. A estrutura e firmeza do vinho são ideais para escoltar um bom rótulo bordalês.
Pernil de cordeiro com perfume de alecrim, um clássico com Cabernet Sauvignon
Para uma versão mais jovem deste tinto, com taninos vivos e bastante frescor, uma escolha significativa está na combinação com embutidos com cura intensa. Os taninos jovens terão um papel fundamental nesta harmonização, dando conta da untuosidade criada pelos embutidos.
Em uma proposta pouco usual, Gianni diz que “nunca lembramos de colocar lado a lado um Cabernet Sauvignon e a carne de porco, seja com costeletas ou lombo”. Explica que são carnes brancas muito saborosas e – às vezes gordurosas –, que pedem um vinho forte, com estrutura e taninos valentes. E deixa o desafio: “Já pensou em provar um torresmo com um Cabernet?”.
A casta originária de Bordeaux (que agora desenvolve-se quase que exclusivamente no Chile) produz tintos geralmente de corpo médio. Para ele Tartari propõe costeletas de cordeiro com molhos herbáceos, seja a hortelã, como é comum no Brasil, ou o coentro, como nos demais países da América do Sul. Os Carménère de boa qualidade possuem notas herbáceas mais proeminentes, taninos macios e acidez equilibrada para uma carne menos gordurosa como o cordeiro.
Empanadas chilenas com Carménère
Para uma refeição mais descontraída, a harmonização sugerida é por convergência geográfica. Um bom Carménère chileno com as famosas empanadas, também chilenas, preferencialmente as mais tradicionais preparadas com azeitonas verdes em abundância. Taninos amigáveis e notas herbáceas e de especiarias trarão complementariedade à carne magra e generosamente temperada das empanadas.
Agora, por que não ousar? Há um fundo defumando no Carménère que funciona bem com pratos que incluem bacon. Uma salada de inverno com espinafre, bacon e queijo azul traz novidade e sabores potentes e equilibrados para o inverno.
De boa tipicidade, mostra notas especiadas e de ervas envolvendo sua fruta lembrando ameixas e amoras maduras, tudo sustentado por acidez refrescante, taninos de grãos finos e final persistente, com toques terrosos e de alcaçuz.
Elegante e redondo, este tinto do Valle de Colchagua se destaca por notas de frutas maduras, especiarias e toques vegetais e de chocolate. Encorpado e de taninos aveludados, é um ótimo Carmenere assinado por Baron Philippe de Rothschild.
Como falar de clássicos sem trazer para a lista o mítico Beef Wellington? Filé envolto em foie gras e duxelles, finalizado com uma camada de massa folhada, este é um prato que reivindica um elegante Merlot francês da região de Pomerol, com a mesma força e presença do prato. Os vinhos desta AOC trazem concentração e acidez, com exuberância de fruta e taninos finos que compatibilizam simetricamente com o Wellington.
Beef Wellington é um clássico com Merlot
Para os Merlot italianos, com frutas negras e madeira em evidência, sem que percam a delicadeza, uma opção é um belo espaguete ao sugo com almôndegas. Uma combinação que pode caminhar de mãos dadas em estrutura, frescor e intensidade.
O Brasil tem produzido ótimos rótulos com esta variedade. De excelente tipicidade, com ameixas maduras, notas florais e toques terrosos, um bom Merlot brasileiro pode ser, sim, ser a companhia de um queridinho brasileiro, como o frango assado, com pouca gordura e suculência, compensada pela estrutura tânica do vinho e sua acidez refrescante, e final persistente.
Pelas mãos do grande produtor Cusumano a Merlot ganha uma expressão única com um conjunto harmonioso e agradável, boa concentração de sabor, acidez pronunciada, taninos macios e final médio, com toques de ameixas.
Direto, frutado e gostoso em sua rusticidade, no ponto certo. Destaca as notas florais, terrosas, de especiarias e de ervas. Tem taninos aveludados, ótima acidez e final agradável, pedindo mais um gole. Aqui menos é muito mais.
Entre nós, brasileiros, é inevitável pensar em Malbec sem lembrar da Argentina, e da mesma forma, é impossível desvincular esta variedade da memória de um bom churrasco. Essa é justamente a mais clássica e acessível harmonização para a variedade: um suculento corte de bife de chorizo, de preparo simples e cuidadoso, permitirá sensações ampliadas com a fruta bem marcada, tão característica do Novo Mundo, e o vigor da acidez e taninos bem alinhados que se encontra cada vez mais nos bons Malbec argentinos.
Para os Malbec mais concentrados, de Cahors, por exemplo, produzidos ao estilo bordalês, com taninos mais potentes, que se beneficiam muito com um certo tempo de guarda, uma boa sugestão é o cassoulet francês, cozido de preparação lenta, que une o feijão branco, confit de pato, ganso, embutidos de porco e outras carnes que variam conforme o preparo. A consistência e intensidade do prato clamarão pelos taninos firmes e potentes dos Malbec desta região.
Um suculento corte de bife de chorizo
Como controvérsias sempre existem no mundo dos vinhos, há uma harmonização polêmica, mas bastante celebrada por alguns. Uma das famílias aromáticas do Malbec traz notas de chocolate, trufas e couro, muito proeminentes. Com o acolhimento do inverno, finalizar a última taça da garrafa com um chocolate amargo de alta qualidade pode permitir um desafio memorável ao paladar.
Este 100% Malbec utiliza 30% de engaços e/ou cachos inteiros, fermentação espontânea (sem adição de leveduras) e estágio de 12 meses em foudres de carvalho sem tosta de 3 e 5 mil litros. Toda firmeza e força dos solos de pedras cobertas de calcário de Altamira aparecem aqui, muito frescor, taninos de grãos finos e final persistente e vertical.
Uva bastante aromática, a Sauvignon Blanc é uma das castas mais versáteis e, por isso, acompanha com facilidade de entradas a sobremesas. Para começar, Gianni Tartari sugere a combinação que não pode faltar no inverno, “queijos e vinhos”, especialmente com o queijo de cabra fresco. Os aromas tanto do vinho quanto do queijo se fundem, assim como, a acidez e o frescor se casam de forma precisa.
A boa acidez do Sauvignon Blanc equilibra bem a cremosidade de queijos
Quando colhida tardiamente, a Sauvignon Blanc origina um vinho de sobremesa, doce, porém, com ótimo frescor. Dessa forma, pode-se pensar em uma tarte tatin, a torta francesa de frutas ou ainda um queijo ao estilo gorgonzola. É uma harmonização por contraste em que o resultado é primoroso.
Como uma das funções de um bom sommelier é instigar novas sensações, vale lembrar que a culinária mexicana apresenta algumas possibilidades intrigantes para o vinho. Uma delas é o guacamole; saboroso, intenso e perfeito como um aperitivo para começar a noite. A Sauvignon Blanc, com seu perfil gustativo que traz frescor, uma boa e bem equilibrada acidez, irá com facilidade ao encontro da potência aromática e untuosidade do prato.
Assinado por Germán Bruzzone, enólogo chefe da Bodega Garzón, este Sauvignon Blanc capta o caráter e mineralidade do terroir de Maldonado. Aromático.
Chardonnay e lagosta. Uma das harmonizações mais usuais. A lagosta possui uma carne rica, saborosa, e normalmente as preparações envolvem uma dose generosa de manteiga, o que costuma relacionar-se muito bem com o inverno e com Chardonnay estruturados que tenham passagem por madeira. É importante, no entanto, que seja um Chardonnay ainda com bastante frescor. A recomendação de Diego Arrebola é um inconfundível Borgonha Premier Cru com madeira e acidez para compensar a pouca suculência da carne da lagosta. O resultado da harmonização são ricos aromas, notas tostadas e lácteas da malolática, que equilibrarão as notas da manteiga usadas no preparo da lagosta.
Chardonnay e lagosta. Uma das harmonizações mais usuais
Já pensou em Chardonnay com carne vermelha? Não se assuste, esta é uma harmonização que pode surpreender, afirma Arrebola. Também um Chardonnay da Borgonha, um Premier Cru, de alta qualidade, combinado com filet mignon preparado com molho branco à base de queijo, por ser uma carne relativamente neutra, pouco saborosa. A harmonização dele, em geral, será comandada pelo molho e pelos acompanhamentos. Um molho forte de queijos cremosos, como o brie ou camembert dialoga muito bem com Chardonnay. O encontro dos aromas amanteigados, tostados, do grelhado e dos queijos no molho, com os aromas amanteigados e também tostados da passagem por madeira e da malolática que o vinho fez resultará em uma harmonização virtuosa.
Um Chardonnay do Novo Mundo, californiano, com fruta mais intensa e madeira bem marcada no nariz, pode harmonizar com pipoca na manteiga. A dica é simples: filme na TV e uma harmonização convergente com o amanteigado do vinho e da pipoca. Não há como errar.
O excepcional vinhedo “Le Clos Saint Pierre” é conhecido por gerar uvas que obtém uma bela maturidade e, no caso do Macon-Charnay “Les Clos Saint Pierre” do Domaine Verget, essa característica é bem presente no vinho.
Este é um 100% Chardonnay sem passagem por madeira. Muito bem feito nesse estilo de maior madurez e untuosidade, ideal para acompanhar peixes mais gordurosos ou carnes de porco.
O perfil aromático da Syrah é bastante amplo, porém, tende com mais energia às especiarias. Para acompanhar esta uva francesa muito utilizada na região do vale do Rhône, Gianni Tartari sugere mais um clássico, o filet au poivre. E amplia o conselho: “O segredo é servir o vinho ligeiramente mais refrescado para seus aromas ficarem ainda mais evidentes e a sensação alcoólica, mais sutil”.
A Syrah produzida no norte do Rhône resulta em vinhos caracterizados por frutas vermelhas e negras, junto ao conhecido toque sutil de pimenta negra. Nessa área, o vinho é firme, com taninos que se revelam um pouco mais que o habitual. A pedida aqui é o pot-au-feu, ou o nosso conhecido cozido, com carne vermelha e legumes variados preparados lentamente. Após longa cocção, a carne fica macia e suculenta e o sabor do prato ainda mais evidenciado, com esse leve toque de especiarias que estabelecerá um perfeito diálogo com a Syrah.
O clássico do Rhône, Steake au Poivre e Syrah
Para sair do usual e talvez ver surgir um novo amor, a sugestão é convidar a Syrah para um jantar com o melhor da culinária asiática e seus condimentos marcantes, sempre bem acentuados. Com essa proposta, a Syrah catalisará as sensações aromáticas e palatáveis proporcionadas por especiarias como pimenta negra, pimenta da Jamaica, cravo e todas as outras que a gastronomia da Ásia se utiliza.
Este é um Syrah cultivado em vinhedos de altitude e com toda elegância que lembram os vinhos do Rhône Norte. O vinhedo possui mais de 50 anos e o vinho conta com estágio de 12 meses em barricas de carvalho francês, sendo 35% novas. Tem final suculento e persistente, com toques de ameixas, de ervas e de especiarias picantes.
Diego Arrebola começa a falar desta casta espanhola com o que os profissionais do setor denominam “harmonização de manual”, aquela que é sempre encontrada nos livros como uma referência: Tempranillo e queijo manchego. O queijo espanhol com certo envelhecimento e notas de ranço adequa-se muito bem com vinhos Tempranillo mais maduros, em especial os Gran Reserva, com períodos mais longos em madeira e notas oxidativas. Além disso, há a própria gordura do queijo que vai balancear com o vinho, em mesma medida, o salgadinho do queijo que equilibrará os taninos do Tempranillo.
Apesar de ser uma variedade espanhola, uma harmonização pouco comum é com a paella. Embora seja habitual pensar a paella com frutos do mar (que Arrebola não considera ser a melhor combinação para a Tempranillo), uma paella à caçadora, com carnes de caça, como coelho, por exemplo, destaca-se como uma excelente opção. Um Tempranillo com notas de envelhecimento, com taninos mais macios, mais delicados, mas que ainda carregue frescor, para compensar a falta de suculência natural das carnes de caça, mais magras; e com intensidade de sabor e aroma para equilibrar com os temperos da paella, em especial o açafrão.
Tempranillo pode ir muito bem com um Hambúrguer
Se as propostas anteriores se mantiveram em solo espanhol, o sommelier agora aposta em um queridinho internacional. Com a crescente das hamburguerias, o mais tradicional dos hambúrgueres, com uma boa carne, leve gordura, cheddar e cebola caramelizada, fará sucesso com um Tempranillo Roble. Apesar de não ser uma categoria oficial da legislação espanhola, é o Tempranillo de madeira, com fruta intensa, e o bom frescor com toque tostado da madeira irão se relacionar em boa medida com o grelhado do hambúrguer. Assim como as riquezas do vinho e do queijo serão exaltadas e, junto às cebolas caramelizadas, resultarão em uma harmonização que merece ser valorizada.
Símbolo da Califórnia, a harmonização clássica, sugerida por Thiago Locatelli são as pork ribs com molho barbecue, famosas costelas de porco com os toques adocicados e picantes. Um estilo mais encorpado de Zinfandel possui riqueza suficiente para harmonizar com a intensidade do prato. O álcool elevado ajuda a equilibrar a doçura e a untuosidade, e a fruta madura fica perfeita com os sabores especiados do molho.
Uma harmonização não tão comum, e ainda na linha de um Zinfandel mais encorpado, é também o chocolate amargo de alta qualidade. O sabor naturalmente achocolatado de um Zinfandel bem maduro pode ser uma ótima companhia para um chocolate colombiano do tipo Nacional (Arriba), que possui pouco amargor e sabores de especiarias e baunilha.
Locatelli sugere explorar outro estilo de vinho possível com a Zinfandel: o White Zinfandel, um rosé leve, frutado, que vai do meio seco ao meio doce. E é exatamente por esse toque adocicado combinado ao frescor que faz desse vinho uma ótima escolha para enfrentar os sabores ricos e apimentados de pratos que levam curry, como na gastronomia tailandesa.
Estruturado e untuoso, tem taninos macios, acidez na medida e final persistente e cheio, com toques tostados e de mocha. Muito bem feito em seu estilo de maior madurez e suculência.
Este tinto da Puglia é redondo e sedoso. Exibe notas de frutas vermelhas e pretas maduras, especiarias, toques defumados, de tabaco e chocolate. Persistente, tem taninos polidos e maduros e acidez equilibrada.
Uma variedade muito apreciada, Arrebola harmonizará a Pinot Noir com outro clássico da gastronomia francesa, o beef bourguignon, um cozido de carne de preparo lento, com cogumelos e legumes. É um prato muito substancioso, intenso em aromas e sabores que pede um Pinot mais estruturado, como o da Borgonha, que tem naturalmente toques terrosos, tem frescor para balancear a harmonização.
Uma harmonização atípica, porém, notável, é também um clássico da Borgonha: Pinot Noir com o coq au vin, o galo cozido lentamente no vinho tinto, normalmente em Pinot, que fica excelente com um Borgonha mais delicado que não tenha tantos taninos, e não brigue com a textura do galo. Também é um prato com intensidade de sabor, com um molho muito intenso e, assim, o frescor da Pinot acaba compensando a falta de suculência natural dessa carne.
Para finalizar, uma brincadeira com o Pinot Noir. A ideia é escolher um Pinot de outras regiões, como Alsácia ou Alemanha, mais leve e com acidez elevada, para harmonização com kobe beef, a carne de gado wagyu. Uma carne com muito marmoreio, e que, a princípio, parece ter muita gordura – e gordura pedirá tanino – que não é o caso da Pinot Noir. Aqui está o segredo. O wagyu é carne marmorizada, e possui uma gordura de textura amanteigada, leve, que se liquefará em grande parte no momento do preparo. A gordura liquefeita, como o azeite e a manteiga clarificada, pede mais acidez que tanino, perfeito para um Pinot de boa procedência, de elevada qualidade e com frescor manifesto.
Com estágio de 12 meses em barricas de carvalho francês, esse vinho ostenta tensão e frescor, realçando a qualidade de sua fruta, além de acidez vibrante, taninos macios e final saboroso e cativante.
Estrutura com lindos taninos que mostram, ao mesmo tempo, elegância e potência, tipicidade do Chambertin, vinho tinto preferido de Napoleão.
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