A culinária brasileira é riquíssima, certamente uma das mais ecléticas do mundo, o que abre um leque incrível de possibilidades
por Arnaldo Grizzo
Estamos acostumados a pensar em harmonizações com comidas típicas de determinados locais. Aliás, uma das “regras” do casamento entre vinhos e outros alimentos é exatamente a questão do terroir. Uma massa italiana certamente cairá bem com um belo Chianti, por exemplo. Um boeuf bourguignon estará bem acompanhado de um Pinot borgonhês. Um leitão da Bairrada pode tanto ser pareado com os típicos tintos locais feitos com Baga como com os espumantes também tradicionais na região. Ou seja, quase sempre há uma conformidade entre prato e vinho de um determinado local.
Mas e quando falamos de locais onde não há uma tradição tão enraizada de vinhos? No Brasil, por exemplo, onde o vinho faz parte da cultura de algumas poucas regiões, mais destacadamente no sul do país, nem sempre é fácil criar um vínculo entre uma comida e um vinho. Ainda assim, isso não quer dizer que não seja possível pensar em harmonizações para tornar a companhia de algumas receitas tradicionais ainda mais especiais e saborosas.
A culinária brasileira é riquíssima, certamente uma das mais ecléticas do mundo. Aqui tivemos influências portuguesas, obviamente, mas também africanas, indígenas, italianas, espanholas, alemãs, japonesas, libanesas, francesas, inglesas, norte-americanas etc., que deram e ainda dão origem a uma miríade de pratos, alguns essencialmente brasileiros, outros adaptações ou recriações com nosso toque, nossos ingredientes, nossos sabores.
Sendo assim, ADEGA fez uma seleção de 10 receitas tipicamente brasileiras e sugeriu algumas possibilidades de harmonização com vinhos. Confira.
Não dá para começar se não for com o prato brasileiro mais famoso no mundo, a feijoada. Esse cozido de feijão preto com partes do porco, paio, linguiça, servido com arroz branco, couve e laranja (entre outros acompanhamentos possíveis) teria raízes na escravidão, quando os negros juntavam o que podiam para um caldo com feijão e restos de carne. Contudo, historiadores apontam que ele, na verdade, foi inventado no Rio de Janeiro no final do século XIX.
Deixando a origem de lado, a questão é que, harmonizar toda essa mistura com vinhos não é tarefa simples. Há gordura, textura cremosa, sabores intensos, tons amargos, enfim, vários fatores a serem levados em consideração e, por isso, na maioria das vezes sugere-se um espumante seco para acompanhar. Pode-se ainda pensar em um Lambrusco, com gaseificação mais sutil. Aposte em um espumante não muito intenso, algo que não brigue com o peso do prato.
Tinto frisante seco elaborado exclusivamente a partir de Lambrusco Salamino. Pura fruta vermelha e negra fresca, é tenso e gastronômico, esbanjando acidez e taninos de ótima textura. Delicioso de beber.
Há “variações sobre mesmo tema”, mas a moqueca, prato tradicional de diversas partes do litoral brasileiro, costuma ser um cozido de peixe com vegetais e frutos do mar. O estado em que o prato ficou mais famoso certamente é no Espírito Santo, de onde a moqueca capixaba saiu para ganhar espaço pelo interior do Brasil. Uma receita quente e de sabores intensos, a moqueca costuma pedir vinhos que lhe aplaquem o calor.
Aqui então entram diversos tipos de brancos desde os mais leves e com boa acidez (tipo Vinhos Verdes) até os mais encorpados. Quem quiser fazer uma ponte com os tons vegetais, por exemplo, pode optar por um Sauvignon Blanc. Quem quiser parear a sensações minerais dos frutos do mar, pode escolher um Riesling. Mas pode-se sustentar a estrutura do prato com um belo Chardonnay ou Sémillon, por exemplo. As alternativas são muitas e cada uma delas pode realçar um aspecto dessa receita saborosíssima.
Uma ótima safra deste corte branco composto de uvas Avesso, Chardonnay e Arinto, com envelhecimento sobre as borras em barricas de carvalho francês e austríaco durante cerca de 18 meses. Apresenta uma fruta nítida e de qualidade, acompanhada por notas florais, de frutos secos, de especiarias e de ervas. Harmonioso (com a madeira bem integrada ao conjunto), tem deliciosa textura, acidez vigorosa e final persistente.
Prato vindo da culinária cearense, o baião de dois é uma mistura de dois ingredientes básicos da mesa do brasileiro, o arroz e o feijão. O termo baião, que deu origem ao nome do prato, provém de uma dança típica do nordeste, por sua vez derivada de uma forma de lundu (dança africana), chamada “baiano”. Além do feijão e do arroz, a mistura leva queijo coalho, há quem acrescente toucinho, linguiça, carne seca desfiada etc., dando mais corpo.
Isso tudo, obviamente, pede a companhia de um vinho tinto com algum porte, mas não em demasia, para não sobrepujar o prato, que, apesar dos sabores intensos, não é “maçante” na boca. Portanto, aqui vale a pena pensarmos em estilos de tintos leves, refrescantes, com taninos sutis e boa acidez, como um belo Borgonha, ou ainda um Tempranillo joven, ou um País chileno feito no antigo estilo campesino.
Tinto composto a partir de Pinot Noir e Gamay. De boa tipicidade, mostra frutas vermelhas escoltadas por notas florais, terrosas e de ervas. A acidez refrescante, taninos de boa textura e final agradável pedem uma segunda taça.
Esse prato é literalmente um patrimônio da culinária paulista. Tradicional das segundas-feiras, o virado à paulista é originalmente composto por feijão engrossado por farinha de milho ou de mandioca e toucinho de porco. Sua origem data do século XVII. O primeiro documento histórico que cita o virado à paulista é de 1602, quando o bandeirante Nicolau Barreto descreveu o prato. Acredita-se que alimentos como o feijão, a farinha de milho, a carne seca e o toucinho chacoalhavam e ficavam “revirados” durante as expedições bandeirantes e isso deu origem ao prato, que hoje ganhou acréscimos de ovos fritos, banana, couve refogada etc.
Assim como na feijoada, essa mistura é bastante encorpada, abarcando uma série de texturas e sabores diferentes. Por isso, uma das propostas mais interessantes para amalgamar esse ecletismo todo é, novamente, um espumante, de preferência leve e refrescante. Um exemplar nacional pode casar bem.
Espumante branco brut, composto de 60% Chardonnay e 40% Pinot Noir, elaborado pelo método tradicional em um perfil mais maduro. Tem acidez vibrante, gostosa textura e final agradável e refrescante, com toques tostados e de flor de limoeiro.
Esse cozido de carne em panela de barro (daí o nome) é o prato mais tradicional do Paraná, especialmente da parte litorânea do estado. Diz-se que a origem teria influências açorianas e a receita teria se disseminado especialmente na época do carnaval para recuperar as energias dos foliões. O barreado é feito com carne de segunda e uma diversidade de condimentos. A panela de barro é então vedada (barreada) com uma massa feito com farinha, para que o vapor fique dentro e permita uma longuíssima cocção, de mais de cinco ou seis horas.
Tudo isso faz com que o prato tenha uma intensidade de sabores extraordinária e peça um vinho que esteja à altura. No caso, um grande tinto no estilo bordalês pode ser uma ótima combinação, pois ele terá estrutura de corpo e taninos para suportar a carne e toda a exuberância do barreado. Pode-se ainda ter a companhia de um Supertoscano, ou de um blend duriense, de um GSM do Rhône ou de alguma outra região.
Tinto composto a partir de 86% Merlot, 10% Cabernet Sauvignon e 4% Cabernet Franc, com breve estágio em barricas de carvalho francês. Uma boa edição desse vinho fácil de beber e de agradar, que mostra frutas vermelhas maduras seguidas de notas florais, terrosas, de ervas e de especiarias, tudo equilibrado por acidez refrescante e taninos de boa textura.
Diz-se que a galinhada nasceu também das expedições bandeirantes pelo interior do Brasil, tanto que há diversas versões sobre suas origens e também variações de preparo – mesmo que sutis. Esse prato é típico brasileiro e se tornou ainda mais famoso depois que o chef Alex Atala colocou-o em seu cardápio do restaurante Dalva e Dito. A receita é bastante simples, como todos os preparos caipiras, bastando cozinhar arroz com pedaços de frango. Dependendo da região, os temperos podem variar, mas a essência é esse cozido de frango (às vezes com legumes). Para muitos, essa é considerada uma comida revigorante. Dependendo do preparo e dos condimentos, a galinhada pode ser mais ou menos intensa em sabores.
Diante disso, podemos optar aqui por vinhos distintos. Pode-se tanto casar com brancos – especialmente os mais encorpados, especialmente quando se usa o frango caipira, que tem sabor mais intenso que o de granja – quanto com tintos – neste caso, mais leves e sutis, como Pinots, por exemplo.
Tinto composto exclusivamente por Pinot Noir, com estágio de 12 meses em barricas francesas (10% novas). Exibe boa complexidade, com frutas vermelhas maduras, especiarias, floral, ervas e toques de couro, que se confirmam no palato. Tem acidez pronunciada, taninos de ótima textura e final persistente, com notas de cerejas e terrosas.
Essa iguaria tipicamente baiana costuma ser produzida majoritariamente por mulheres – mães e filhas de santo -, e oferecida em seus famosos tabuleiros. O acarajé é preparado com um bolinho de feijão-fradinho frito em azeite de dendê e depois recheado com vatapá (leite de coco, castanha de caju, amendoim e camarão), vinagrete e camarão seco. Pode ser servido “quente” ou “frio”, ou seja, com muita ou pouca pimenta. Sua origem vem do candomblé, dos povos africanos, sendo que o nome vem de akará (bola de fogo) e jé (comer), cujo significado vem da história de Xangô com sua esposa Iansã.
Definitivamente não é fácil sugerir algo que tenha porte para acompanhar uma receita como essa. Some-se a isso a pimenta e definitivamente a tarefa fica bem complicada. Mas, lembrando que é um petisco litorâneo, vale a pena tentar apreciar junto a um belo espumante ou então a um saboroso e despretensioso rosé. Apenas desfrute.
Fresco e sedutor, exibe notas de frutas vermelhas, florais e de ervas, que se repetem no palato. Tem acidez vibrante, que dá suporte ao delicado dulçor, gostosa textura e final agradável, com toques de cerejas.
Um dos pratos mais tradicionais da região norte do Brasil, especialmente do estado do Pará, o famoso pato no tucupi é um receita de origens indígenas – que usavam o tucupi para cozinhar e conservar as carnes. Tucupi é o caldo extraído da raiz da mandioca brava. Posteriormente foi acrescentado à receita o jambu, uma erva típica do norte. Vale dizer que o tucupi e o jambu também estão presentes em outra iguaria amazônica, mas à base de camarão, o tacacá. O pato é marinado, refogado e cozido e, posteriormente, fervido junto ao tucupi e jambu.
Os sabores todos combinados são muito intensos e há os que preferem harmonizar com brancos e outros que tendem a sugerir tintos. A estrutura do prato certamente clama por brancos mais encorpados e estruturados, sem deixar de lado a acidez para limpar o paladar. Experimente com um portentoso Chardonnay ou ainda um Sauvignon Blanc (as notas herbáceas ajudam a criar um vínculo com o prato). Se for de tintos, prefira algo leve, como um Barbera ou uvas mais rústicas como um Teroldego.
Elaborado exclusivamente a partir de Chardonnay, com estágio de 10% do vinho em carvalho francês novo (foudre), 40% em tonéis de carvalho de segundo uso (principalmente de 500 e 600L) e 50% em tanques de aço inoxidável. Exuberante e complexo, mostra frutas tropicais e brancas maduras, especiarias doces, frutos secos e toques amanteigados.
Fruto típico do serrado brasileiro, o pequi ingressou na culinária brasileira, especialmente do Centro-Oeste, criando pratos típicos como o arroz com pequi, que é reivindicado como um patrimônio de Goiás. De cor amarela e sabor intenso (dito inconfundível), ligeiramente adocicado, o pequi costuma dividir opiniões – tipo, amo ou odeio. O fato de ter um gosto bastante característico e dominante, faz com que as harmonizações muitas vezes gerem um conflito no paladar ou então sejam sutis demais. No preparo do arroz, há quem coloque um pouco de vinho branco e aproveite para casar o prato com o mesmo vinho (sempre uma boa pedida).
Para o pequi, podemos pensar em brancos com muito frescor de acidez como os Vinhos Verdes, ou ainda um belo Sauvignon Blanc, ou um Alvarinho de porte. No entanto, uma outra opção interessante para combinar com o prato é um rosé de estirpe, com grande frescor e um bom corpo para tentar equilibrar a estrutura do prato.
Elaborado a partir de um blend de variedades viníferas não revelado e sem passagem por madeira. Fresco, cativante e gostoso de beber, mostra frutas vermelhas e brancas escoltadas por notas florais e de ervas, tudo equilibrado por vibrante acidez, textura cremosa e final cativante, com toques cítricos e de morangos.
A história do mais famoso doce brasileiro vem da política. Pois é. Em 1945, o Brigadeiro Eduardo Gomes era um dos principais candidatos à presidência, concorrendo com Eurico Gaspar Dutra (que acabou eleito). Para angariar fundos para a campanha de seu favorito, a confeiteira Heloisa Nabuco de Oliveira inventou um docinho feito de leite condensado, manteiga e chocolate que acabou levando o nome de brigadeiro. De receita simples, atualmente pode-se criar diversas variações, mudando o tipo de chocolate e até mesmo não usando chocolate.
No entanto, quando falamos de algo bastante intenso em doçura e sabor de chocolate e ainda com a textura do brigadeiro, a harmonização que vem à mente remete aos vinhos fortificados. As escolhas geralmente recaem sobre os Vinhos do Porto, principalmente os de estilo Ruby, apesar de muitos preferirem os Tawny – especialmente quando o chocolate é amargo. Sendo assim, experimente com um belo Ruby ou então um LBV ou ainda um Vintage.
Tinto fortificado doce elaborado a partir de Vinhas Velhas cultivadas exclusivamente no ano de 2016, com estágio de 2 anos em barris antes do engarrafamento. Mostra frutas negras maduras acompanhadas de notas florais, de ervas e de especiarias doces, com sua acidez refrescante e seus taninos firmes e de boa textura sustentado o conjunto. Fluido e gostoso de beber, tem final suculento, com toques de violetas, de cassis e de ameixas.
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