Na Sicília os vinhedos responsáveis por vinhos encantadores ainda são moldados pela lava, areia e pedras jogadas pelo vulcão Etna
por Christian Burgos
Na mitologia, Ulisses foi o primeiro grego a visitar a Sicília. Lá encontrou um grupo de ciclopes, monstros gigantes de um olho só, que habitavam uma terra fértil, onde as pastagens brotavam sem esforço permitindo-lhes viver apenas de pastorear seus rebanhos de ovelhas.
Tendo sido feito prisioneiro do ciclope Polifemo, que já comera dois de seus homens no jantar e dois no café da manhã, Odisseu (nome grego do herói) entorpece o gigante servindo-o abundantemente de vinho. Grato, Polifemo pergunta a Ulisses seu nome, prometendo que ele seria o último a morrer. O rei de Ítaca responde chamar-se Outis (“ninguém”, em grego).
Assim que o ciclope adormece, o herói aquece uma ponta de estaca na fogueira até ficar em brasa e, com quatro de seus homens, enterra-a no olho do monstro. Cego e angustiado de dor, Polifemo começa a gritar. Seus vizinhos ciclopes vêm em seu socorro e perguntam quem o havia ferido, ao que Polifemo responde: “Ninguém”. Com isso, Ulisses consegue escapar com seus homens para sua embarcação, mas, ao partir, zomba do ciclope que atira pedras do alto do Etna em direção à voz do grego, quase acertando seu navio e deixando enormes pedras na costa que podem ser vistas até hoje.
Entender o Etna é entender a Sicília no sentido figurado e também literal. Ainda antes dos gregos, os fenícios já haviam fundado entrepostos comerciais na ilha. Uma importante razão para a fixação grega foi o enorme território (27.710km²), com água doce e terra fértil.
Neste caso, a contribuição do Etna é fundamental, visto que suas encostas elevadas no inverno se cobrem de neve, que depois derrete fornecendo água doce para seu entorno de rico solo vulcânico. Os árabes também vieram e, por sua vez, introduziram as frutas, técnicas de irrigação, medicina e astronomia. E assim, conquistadores após conquistadores (fenícios, gregos, romanos, cartagineses, vândalos, ostrogodos, bizantinos, árabes, normandos, italianos, aragoneses, espanhóis e franceses) sucederam-se destruindo e agregando, da tecnologia à cultura, e remodelando os costumes de um povo que aprendeu a aceitar isso, sem perder suas raízes.
Talvez por ser esse polo sociocultural, muitos filósofos e homens da ciência ali viveram, de Arquimedes e Platão até o desconhecido inventor do sorvete, um punhado de neve do Etna regado ao sumo de limão siciliano.
Por tudo isso, uma viagem à ilha demanda uma estada na região do Etna e uma viagem de lá até Palermo. Ao redor do vulcão, as paisagens são dominadas por sua presença, constantemente expelindo fumaça numa lembrança permanente de sua atividade, encarada de forma corriqueira pela população local.
O Etna, mesmo sujeito a erupções frequentes, não reclamou a vida de nenhum siciliano por muitas décadas, nem mesmo durante a grande erupção de 1969. Por isso, ao contrário de seu conterrâneo Vesúvio, é tido como um vulcão feminino, maternal e gerador de vida (a própria palavra Etna é feminina).
Mas o Etna ainda está definindo sua altura, podendo tanto crescer como diminuir; e não tem apenas uma cratera, mas mais de 250. Outras ainda podem se abrir a qualquer momento ou lugar.
Por estar constantemente expelindo fumaça, é como uma panela de pressão em funcionamento, cuja lava costuma escorrer e não explodir em violentas erupções. A lava escorre lentamente e, a não ser que forme uma parede muito alta (até 60 metros), costuma ser dirigida para longe dos vilarejos com uso de tratores.
Após esfriar, ela se torna preta e, com o tempo, vai esbranquiçando. Durante ao menos 30 anos, esse solo não será fértil, pelo contrário, caracterizar-se-á por formar um deserto de lava. Somente após esse período de transformação é que o terreno vulcânico vai favorecer a agricultura e inundar os vinhos ali cultivados com sua instigante personalidade mineral.
Ao subir o Etna, ao longo das sinuosas estradas, é possível notar que vamos encontrando cada vez mais verde, até adentrarmos as florestas de pinheiros, por onde muitos passeiam para apanhar nozes e o Lactarius deliciosus, um cogumelo que, puxado no azeite, substitui exemplarmente o bacon como acompanhamento de ovos mexidos no café da manhã.
Essas encostas que rendem esqui de qualidade no inverno e a água do degelo da neve junto às parcas precipitações, garantem a umidade necessária para o cultivo da vinha. Nessa região, a irrigação não é permitida e a vindima é tardia, sendo que, quanto mais alto, mais tardia.
A pedra de basalto parece estar em todo o lugar, inclusive na construção das casas antigas, devido à sua capacidade de isolamento térmico, controlando os extremos de temperatura tanto no inverno quanto no verão.
A vitivinicultura no Etna remonta à antiguidade e a região foi a primeira da Sicília a obter a certificação de Denominação de Origem Controlada para seus vinhos feitos a partir das uvas tintas Nerello Mascalese, Nerello Cappuccio e das brancas Carricante e Catarratto.
É desnecessário apontar a mineralidade como a grande característica desses vinhos, que podem chegar a causar estranheza para não iniciados. Destaque absoluto para os feitos com Nerello Mascalese, que possuem elegância e complexidade ímpares, com traços característicos da Nebbiolo e dos Pommard da Borgonha. Já sua irmã Nerello Cappuccio é uma autóctone que, para muitos, tem similaridade com a Carignan.
Os vinhedos do Etna se encontram entre 450 e 1.100 metros de altitude, o solo é formado pela lava, cinzas e areia, com presença de cobre, fósforo, magnésio e outros minerais, e é bastante irregular como se nota pelas enormes pedras “atiradas pelo ciclope” e muitas vezes incrustadas entre as parreiras.
Ao caminhar pelos vinhedos da Cantina Russo, que cultiva uva para vinho desde 1860, parece que andamos sobre cinzas, e o enólogo Francesco Russo explica que esse solo macio tem 2 metros de profundidade e depois dá lugar a uma compacta camada de pequenas pedras vulcânicas.
Segundo Russo, a irrigação, além de proibida na DOC Etna, seria inútil e impossível, pois a drenagem do solo é tamanha que a quantidade necessária de água seria inviável. Essa camada de material piroclástico apresenta uma infinidade de minerais, com exceção do cálcio, e por isso Russo acrescenta cálcio ao solo uma vez por década.
Ainda percorrendo a encosta nordeste do Etna encontramos a pequena cidade de Linguaglossa, cujo nome, como o de várias outras, é curiosamente a repetição da mesma palavra em grego e romano (neste caso lingua=glossa).
Linguaglossa foi construída sobre uma camada de lava, pois acreditava-se, como no caso do raio, que a lava não atingiria duas vezes a mesma localidade. Entretanto, pesquisas arqueológicas recentes encontraram sete diferentes camadas de lava sob a cidade.
Nessa região encontra-se a Vini Gambino, onde vê-se que os terraços de lava com vinhedos são comumente acompanhados por outros dedicados ao cultivo de oliveiras e frutas. Os 10 hectares de vinhedos encontram-se a 840 metros de altitude e enfrentam enorme diferença térmica, ficando cobertos pela neve no inverno e exigindo, no verão, que uma camada de folhas cubra as uvas para protegê-las do sol escaldante.
Seu proprietário, Francesco Raciti, declara que a “qualidade não é um prêmio, mas a soma de pequenas coisas que se faz no vinhedo e na produção” e é responsável por alguns vinhos surpreendentes, como o Petto Dragone (barriga de dragão) batizado com o sugestivo apelido da localidade. Se depender de Raciti, seu vinho não chegará ao nosso país: “Produzo apenas 80 mil garrafas e é muito complicado exportar para o Brasil”.
Seguindo do nordeste para o sul do Etna, cruzamos a estrada Mareneve, assim batizada pois, no inverno, em 20 minutos deixa-se a praia para esquiar.
A paisagem muda, o clima é mais seco e as cinzas do vulcão parecem mais presentes no céu. A altitude também difere e a vinícola Nicosia, fundada em 1898, situa-se entre 600 e 650 metros de altitude e maneja um total de 250 hectares de vinhedos que vão além da encosta sul.
Cercada por um vilarejo, aqui a modernidade se faz mais presente, com uma cantina nova, o cultivo de variedades autóctones e internacionais, e a experimentação, como no caso do uso da madeira de acácia nas barricas de alguns vinhos brancos.
Saindo da região do Etna, seguindo pelo litoral norte da ilha rumo à cidade de Palermo, dois pontos merecem ser visitados. O primeiro, a Abbazia Santa Anastasia, em Castelbuono. Uma abadia do século XIII que foi comprada e transformada numa vinícola com 75 hectares de vinhedos orgânicos situados a 450 metros de altura e com “vista para o mar”. Em 2000, a vinícola foi restaurada e recebeu infraestrutura enoturística com hotel, spa e restaurante adepto à filosofia “Zero Mile”, em que os ingredientes são cultivados na própria vinícola ou em propriedades a menos de uma milha de distância.
Outra parada obrigatória é a histórica (e turística) cidade Céfalu, à beira mar, fundada pelos gregos e protegida pelo forte no alto de um penhasco. A cidade apresenta preciosidades como a deslumbrante catedral construída em 1.131, cujo interior é decorado com mosaicos do período bizantino e com arquitetura restaurada ainda no século XVI. Experimente o delicioso sorvete local enquanto passeia pelas ruas estreitas (e cheias) com lojas com antiguidades e construções seculares como o lagar e a “lavanderia” alimentada com água do mar.
Palermo é uma grande cidade ao norte da ilha e em nenhum outro lugar a arquitetura revela as ondas conquistadoras como ali. As construções, mais do que preservadas, vão sendo ampliadas com novos estilos arquitetônicos formando um mosaico da história, seja nas casas mais simples, seja nos prédios mais imponentes. Uma cidade cheia de vida de dia e de noite, com excelentes restaurantes e centros de compras.
Partindo de Palermo, em passeios de um dia, é possível visitar os terroirs do centro da ilha.
* Texto originalmente publicado em junho de 2020
com o título "A Sicília e suas lendas, paisagens e
o vulcão que molda vinhos encantadores"
e republicado após atualização
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