Don Emílio de Solminihac conta sua história, que, seguramente, confunde-se com a história do vinho chileno
por Christian Burgos
Encontramos Don Emílio de Solminihac para um agradável almoço degustando seus vinhos Surazo no DOM. Este verdadeiro gentleman, nascido em 1935, e em atividade até hoje, foi o primeiro chileno a graduar- se em enologia em Bordeaux, no ano de 1958.
No regresso ao Chile, iniciou um laboratório de análises químicas e se dedicou a dar assessoramento técnico a vinícolas que iam do Vale de Maipu até o de Colchagua. Ao mesmo tempo, passou a lecionar na Universidade Católica do Chile, ministrando aulas de enologia e formando toda uma geração de novos profissionais que revolucionaram a indústria vitivinícola chilena.
A humildade de Don Emílio surpreende - para alguém que é uma verdadeira enciclopédia da história vitivinícola chilena, não por leituras e estudos, mas por ter vivido e participado ativamente da construção desta história de sucesso.
É tido como certo que a grande revolução do vinho chileno se dá na década de 1990. O que ocorria no Chile até então?
Nessa época, havia interesse no desenvolvimento dos vinhos, mas a situação sócio-política afastava os investimentos no setor. Por isso, a indústria ficou estagnada durante longo tempo. O desenvolvimento da indústria vitivinícola começa na época do golpe militar, após 1973, porque nos transformamos numa economia aberta e os empresários nacionais e internacionais começaram a investir. Tudo isso foi acompanhado de um interesse geral em investir em melhorias tecnológicas, melhoria de vinhedos e capacitação.
Nos anos 80, chegam os primeiros investimentos internacionais, certo?
Sim, um dos primeiros investidores estrangeiros a chegar foi Miguel Torres.
Antes deste momento, os chilenos compreendiam os princípios de produção voltada à qualidade?
Creio que compreendiam, mas precisava ser acompanhada de vontade de investir, e isso não existia. Quando Miguel Torres chegou, ele foi o primeiro a utilizar tanques de aço inoxidável. Embora já tivéssemos conhecimento dessa tecnologia, ninguém podia aplicála. Naquela época, tínhamos a inquietude de fazer o melhor possível com os meios que tínhamos a nosso alcance. Tínhamos que descobrir como trabalhar com tanques de madeira de forma a emular o aço inoxidável.
Como faziam?
Ao fim do processo de vinificação, formava-se uma crosta de cristais de potássio nas paredes de madeira. Ao invés de raspá-la, descobrimos que devíamos cuidar dela, mantendo-a dentro de níveis de sanidade para alcançar um processo de vinificação similar ao dos tanques de aço. Tínhamos a inquietude de melhorar as coisas. Fundamos uma pequena associação de enólogos e mantínhamos um alto nível de intercâmbio.
E a que se dedicava seu laboratório?
Tínhamos a responsabilidade pela vinificação de aproximadamente 25 vinhedos. Acompanhar o processo de amadurecimento das uvas, determinar o momento da colheita e depois supervisionar e dar conselhos sobre o processo de vinificação. Após a vinificação, classificávamos os vinhos, pois a maioria era de produtores que vendiam seus vinhos às grandes vinícolas. Meu trabalho principal era na época da vindima e, depois, nos cortes. Além disso, tirava algum tempo para poder acompanhar e comercializar os vinhos que eu mesmo produzia. Isso foi interessante, pois acabei estabelecendo laços com todas as grandes vinícolas do Chile naquele momento e com as grandes personalidades do vinho chileno.
Que personalidade destacaria?
Haviam vários personagens que você deve conhecer. Por exemplo, em Concha y Toro, nesta época, estava Augustino Neus, um grande investidor chileno em vinhos, que, hoje, além de possuir a Viña Vera Monte no Chile, está associado a um investidor europeu e tem uma vinícola de grande sucesso nos Estados Unidos. Depois de trabalhar para grandes grupos no Chile, comprou seu primeiro vinhedo na Califórnia e chegou a ser presidente da associação de vitivinicultores norte-americanos. Vamos convir que é um vôo e tanto!
Incrível, você viveu a história do vinho chileno...
Junto à varias pessoas que executaram as transformações necessárias...
Você deve ter companheiros que tem histórias de sucesso e outros que passaram por maus bocados..
Sim. Por exemplo, Santa Rita, uma empresa que, apesar de grande, não estava em boas mãos comerciais até que foi comprada por Ricardo Claro - um grande empreendedor que investiu muito na vinícola, assessorou-se de grandes enólogos - e, por fim, firmou-se como uma das três maiores do Chile. Lamentavelmente, Ricardo faleceu há pouco tempo.
Conhecendo tantas histórias, qual é o segredo do sucesso e o maior risco de fracasso para as vinícolas chilenas?
Cada vez se faz mais importante, no Chile e todo o mundo, a parte comercial. É preciso entender o problema, traçar a estratégia e executá-la.
E a qualidade do vinho?
Trata-se de uma condição sine qua non. Se não há qualidade, cedo ou tarde isso se faz notar e a vinícola sucumbe ao perder prestígio. Posso citar o caso da Viña Montes. Pude trabalhar com Aurelio Montes, que foi gerente de operações após eu me retirar de San Pedro. Nesse momento, o gerente de exportações era seu sócio atual, Douglas Murray. Ainda cito como motivo de sucesso seu terceiro sócio e grande administrador financeiro.
A Viña Montes é uma empresa que fez tudo direito e alcançou grande êxito. E veja que eles começaram depois de nós! Mas sou mais enólogo que comerciante de vinhos. Veja que, na primeira vez que fui à Vinexpo, fui com duas malas com 12 garrafas e não tinha estande, meus conhecimentos de inglês não eram muito fortes, não sabia como redigir um contrato e não sabia exatamente quanto vender, a que preço ou como receber. Sou como um bom médico que não estudou administração de empresas e acabou dirigindo um hospital [risos].
Você não crê que supervaloriza o lado comercial por conhecer tão bem o processo produtivo e sempre valorizamos o que nos falta...
Sabe... Pode ser que sim... De fato, um dono de vinícola com habilidades comerciais enfrenta problemas que não tenho... Ele tem que buscar enólogos de sua confiança, entregar tudo em suas mãos e investir no desenvolvimento de competência de outra pessoa.
E este enólogo pode ter, de certa maneira, a personalidade do vinho em suas mãos, certo?
Sim. Isto sem falar que o enólogo formado pode ir embora para trabalhar no concorrente... Uma situação muito incômoda [risos].
E falando de personalidade de vinhos, os seus apresentam uma personalidade incrivelmente distinta.
Quando iniciei este projeto, em 1977, já tinha tido a oportunidade de trabalhar com variedades e vinhedos em várias regiões e identificar as variedades com melhor adaptação a cada área e a conhecer os terroirs. Quando comecei, considerei importante apostar em um estilo um pouco diferente dessa onda que representa o estilo do Novo Mundo. Desenhei um sistema de vinificação e elaboração de vinhos para que tivessem maior complexidade.
Como você descreve essa diferença?
É importante que o vinho se sobressaia por ter a fruta característica de cada variedade, mas que, além disso, encontre uma complexidade mais interessante, com menos contrastes que possam caracterizar desequilíbrio.
E como funciona o processo para alcançar isso?
Está intimamente ligado ao processo de maceração antes de o processo de vinificação, tanto em brancos quanto em tintos. Uma maceração em frio, e bem controlada, atendendo às características de cada variedade. Por exemplo, de forma a não exagerar e perder a elegância e a fineza e característica de varietal. Essa maceração em frio ajuda na extração dos componentes precursores dos aromas.
E depois?
Depois vem muitas coisas. Após a maceração, é importante uma pós-maceração, sob certa temperatura, e que pode se estender - dependendo da concentração que tenha uva - por até 15 dias. Nesse processo, é acompanhar constantemente e ver se o vinho continua ganhando e como evoluem os taninos. Temos ainda o manejo da fermentação, controle de temperatura e fermentação malolática nos tintos e um pouco no Chardonnay. Julgo importante a fermentação malolática nos vinhos chilenos.
Tomei um Gran Reserva Merlot 2002 e foi uma surpresa degustar um vinho 2002 do Chile, e que seja o vinho comercializado hoje pela vinícola.
Para mim, como o estilo dos vinhos do Novo Mundo que vem a mercado hoje, em sua grande maioria, são marcados por muita fruta e muita madeira, quis me afastar um pouco disso. Prefiro que meus vinhos não tenham fruta com tanta intensidade, e que tenham mais fineza da fruta e tragam aromas de maior complexidade. Além disso, conservo em mim a escola de Bordeaux e, nesse tempo todo, acompanhamos que os grandes vinhos, os mais valorizados, são todos vinhos com boa capacidade de guarda.
Quantas colheitas fez?
Só em meus vinhedos, iniciei em 1977.
Mas, com seu laboratório, acompanhou ainda mais colheitas...
Nesse caso, iniciei em 1959. Foi minha primeira colheita. E foi uma grande sorte ter sido um enólogo que tinha mais conhecimento que a maioria no Chile. Recordo que aquele ano foi tremendamente chuvoso. As uvas brancas apodreceram todas! Lembro de que, quando vinham as caixas com uvas em más condições sanitárias, havia tanto suco no fundo que dava tristeza. Nos tintos, acontecia um pouco do mesmo.
E não havia, no Chile, experiências de vinificações com uvas enfermas nessa intensidade. Na França, ao contrário, como o clima é, muitas vezes, ruim, o enólogo está obrigado a saber lidar com problemas sanitários e o faz bem. Naquele ano no Chile, tinha-se que fazer uso correto de anidrido sulfuroso e fazer certas clarificações, pois os vinhos brancos e tintos ficaram cor de café. Era até difícil diferenciar um branco de um tinto. Tive a sorte de saber como vinificar e nossos vinhos brancos saíram brancos e os tintos saíram tintos [risos].
#Q#E isto fez seu marketing...
[Risos] Sim, isso me tornou conhecido. Fui chamado por 10 vinícolas da região e trabalhei para tornar seus vinhos comerciáveis, visto que não se pode recuperar a qualidade que tem uma uva sã. Pelo menos eram vinhos honestos que se podia comercializar.
Quantos hectares têm em seus vinhedos?
Comprei o vinhedo em 1967, com 40 hectares. Depois, comprei terras adjacentes que haviam sido entregues a assentados. Lamentavelmente, essas pessoas receberam a terra, mas nenhum apoio e não puderam seguir como empresários, visto que não sabiam lidar com dinheiro, e muitos nem ler. Então, fui comprando parcelas até completar 100 hectares. Os vinhedos, naquela época, já tinham 40 anos, mas eram plantadas misturadas. Selecionei a variedade Cabernet Sauvignon e os transplantei. Felizmente, cerca de 95% pegaram e essas videiras antigas - com cerca de 60 anos - são as que integram os vinhos top que produzimos. Depois, comprei videiras de Merlot, Chardonnay; todos de produtores que admirava.
Como você viveu o fenômeno do Carménère no Chile?
Comprei e plantei vinhedos de Merlot. E quando veio o enólogo francês, Versicot, ele percorreu os vinhedos chilenos e constatou que muitos eram 70% Carménère, outros eram totalmente Carménère. Ao visitar Santa Mônica, constatou que nossos vinhedos eram 100% Merlot [risos]!
Que azar...
Na verdade, não. Pois um viveiro veio e passou a comprar nossas mudas de Merlot para vender a outros vinhedos [risos].
Falamos do segredo do sucesso de outras vinícolas e esquecemos de falar do seu segredo de sucesso.
Tive a sorte e a oportunidade de me formar e adquirir conhecimento numa época em que não haviam muitos enólogos no Chile. Além disso, tive a sorte de trabalhar para os outros, antes de me lançar empresário. Além do mais, como já falei para minha esposa, Mônica, tive a oportunidade de tornar-me produtor e fazer o que gosto. Entretanto, acreditei que teria mais tempo, pois, como empresário, sinto-me um pouco como "palhaço em circo pobre"; cobra a entrada, senta as pessoas, toca música, faz o espetáculo [risos]...
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