A revolução vitivinícola brasileira

Do seminário, ao exército e, por fim, à vitivinicultura. Juarez Valduga é um dos personagens que ajudaram a mudar a cara do vinho no Brasil

por Christian Burgos

Há cinco anos, quando ADEGA começou, visitamos a Casa Valduga pela primeira vez. Já havia uma estrutura impressionante e o foco na produção de espumantes e no enoturismo eram marcas registradas. Acompanhar ano a ano, safra a safra, o desenvolvimento do Vale dos Vinhedos é estonteante, e sentar para conversar com Juarez Valduga - com seu jeito colono e hospitaleiro - dá a certeza de que a transformação do vinho brasileiro está a todo vapor.

Juarez dirige a Casa Valduga, com os irmão João e Erielso, desde muito jovem, com a coragem de um militar e a determinação de um missionário. Se tivéssemos que definir este ex-seminarista e exmilitar em duas palavras seriam: visão e inovação. Mas se permitissem somente mais uma característica, esta seria: opinião franca, como pode-se acompanhar na conversa a seguir.

Há um ponto nevrálgico para o desenvolvimento do vinho no Brasil: o preconceito, que felizmente está diminuindo em relação ao vinho nacional. acho que é obrigatório a todo produtor brasileiro ler o livro do "Julgamento de Paris", que relata a história da indústria norte-americana, que também passou por preconceito interno e superou-o. Lá isto se deu por um reconhecimento externo...
O vinho brasileiro é muito reconhecido no exterior, na Alemanha, na Suíça, e o que falta é realmente isso. Temos que mudar o Brasil. Na minha época, imaginar o Brasil como um país vinícola era quase impossível. E agora temos a primeira DOC da América Latina, é quase impossível de acreditar.

Como foi o caminho trilhado pela Casa Valduga?
Vendo de longe, tudo aconteceu muito rápido mesmo. Há 30 anos, no final dos anos 70, de 1975 a 1978, foi dado o primeiro passo importante, que foi quando importamos as primeiras cepas de Cabernet Franc e Riesling Itálico. Vínhamos de uma família tradicional, até arcaica, com sistemas de vinhedos antigos e uvas híbridas americanas; o processo de vinificação também era muito antigo e isso perdurou por mais um tempo. Nosso primeiro passo foi dado onde mais precisávamos mudar, que eram os vinhedos.

Quando plantaram esse vinhedo, já foi em espaldeira?
Não. Toda mudança em vinícola é delicada até mesmo culturalmente. Meu pai era considerado "o último dos moicanos". Ele mudou a viticultura, aceitou a espaldeira, mas foi lento. Ele queria aproveitar o que tínhamos, porque o custo era menor. Mas conseguimos mudar. O marco principal foi isso. João, meu irmão, trabalhando pela Embrapa, eu como o elo de ligação, e o Banco do Brasil do outro lado, que confiou em mim. Fui ao banco e o gerente falou que, se eu tivesse tanta palavra quanto meu pai, teria tudo no banco. Peguei o empréstimo para comprar um trator e o gerente disse que, se eu não conseguisse pagar, ele pegava o trator de volta - mas tinha que estar em bom estado. Então, de nervoso, a gente usava o trator de dia e de noite guardava na sala de casa [risos]. Depois daquele primeiro, fiz muitos outros empréstimos para investir.

Arnaldo Grizzo
"Há quantos anos falo que o Cabernet Sauvignon não é o nosso vinho? O brasileiro toma o Cabernet Sauvignon não como vinho, mas como marca"

Qual era sua idade naquele momento?
Tinha 24 anos quando assumi a Casa Valduga, e tinha que assumir o princípio da mudança. Comprei o primeiro trator agrário da região em 1978, e estava muito assustado. Mas gosto de inovar, e acho que faço isso bastante, crio muitas coisas em conjunto com nossa equipe. A inovação da Casa Valduga ajuda a viticultura.

E vocês também inovam no sentido de lançar muitos produtos novos dentro da própria linha de vinhos.
Gosto muito de quebrar paradigmas. Quando digo eu, estou me referindo à equipe inteira da Casa Valduga. E tínhamos que quebrar paradigmas. Desde 1982, quando lançamos o Rosé Seco, já estávamos quebrando paradigmas, inovando. As vendas da primeira safra foram um fracasso. Bebemos tudo. Depois tentamos de novo. Desta vez bebemos 90% e demos 10% para os amigos [risos]. Mas, de tanto insistir, ele se tornou um de nossos produtos de sucesso. Agora, inovamos no suco de uva.

Como nasceu seu suco de uva?
Em 1995, quando íamos entrar no ramo de sucos, contratamos uma pesquisa para ver se era um setor favorável. O resultado foi totalmente negativo. Um desastre. Qual era o suco menos desejado? Suco de uva. Qual o refrigerante menos desejado? Fanta Uva [risos]. E a gente já tinha investido... E esse é um dos motivos pelos quais não faço mais pesquisas. Mas persistimos, montamos uma fábrica, e hoje um dos melhores sucos é o suco de uva. Por isso acho que é importante inovar. Hoje faço parte do planejamento estratégico da viticultura brasileira e quero que essas mudanças sejam maiores. Esse planejamento já deveria ter acontecido há muitos anos.

Hoje estamos vivendo um momento duro no mercado do vinho no sentido de existirem correntes com ideologias diversas, como a da implantação do selo fiscal, e estamos percebendo que há um estoque de vinho não vendido no Brasil, a maioria sem ser de vitis vinifera. Você acredita em replantar estes vinhedos?
O suco absorveria quanto dos vinhedos? Acredito que, pensando em Brasil, há muito poucos vinhedos. Precisaríamos de um incentivo para o produtor plantar. Não é que a gente não tenha subsídios, porque estamos tendo um apoio do governo em alguns projetos a curto ou longo prazo. Mas precisamos incentivar o produtor a aumentar a superfície de plantio de vinhedos. Deveríamos deixar o que está aí, conduzir isso para suco, deixar todas híbridas americanas para suco e fazer um projeto para os próximos três ou cinco anos só com vitis vinifera. Esse seria nosso grande passo. É só ver o espumante nacional. Há uma tendência de o Brasil a ser muito forte nos espumantes, mas, para isso, temos que plantar.

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"Cada região se identifica com um tipo de vinho"

"Deveríamos deixar o que está aí, conduzir isso para suco, deixar todas híbridas americanas para suco e fazer um projeto para os próximos três ou cinco anos só com vitis vinifera. Esse seria nosso grande passo"

No caso do espumante, esse potencial está absolutamente presente. Se tem um vinho nacional com que o brasileiro se acostumou é com o paladar de seu próprio espumante. Isso já está enraizado...
Isso nos deixa alegres e convencidos de que o setor vinícola vai perdurar. Mas o que precisamos agora é ter pé no chão. Não podemos aceitar que façam espumante com híbridas americanas.

Por outro lado, você vê alguns pesquisadores brasileiros andando na contramão, querendo fazer uvas híbridas de vitis vinifera com americana...
Sou uma cria da Embrapa, mas ela não pode pensar em híbridas de vitis vinifera com americana. Isso não existe. Temos que desenvolver aqui as viníferas que têm potencial. Temos que ver qual é a vinífera brasileira. Temos que avançar. E percebo que o futuro vai acontecer. Não acredito em crescer isoladamente. O setor se faz num todo, o vinho se faz num todo. O Brasil tem que crescer junto. Se temos que mudar, vamos mudar todos. E temos que partir de uma linha que identifique o vinho brasileiro. Não podemos deixar todos plantarem tudo. Existem regiões propícias para cada tipo de uva.

Cada empresa acredita que necessita ter seu portfólio completo de varietais...
Muito bem, mas você paga por isso. Se souber que na sua região é melhor plantar a Chardonnay em vez da Cabernet Sauvignon, você vai ter mais benefícios.

Você acredita que o potencial do Merlot é maior do que o potencial do espumante aqui na região?
Sinceramente, não. O Merlot pode ser numa pequena região. Tem uma região, dentro do Vale, em que ele é muito bom. Como vinho, tem potencial. Na viticultura, não. O Merlot vai ser um vinho diferente, a natureza dele aqui é muito favorável, os taninos são bons. E há quantos anos falo que o Cabernet Sauvignon não é o nosso vinho? O brasileiro toma o Cabernet Sauvignon não como vinho, mas como marca. E o Merlot, mesmo melhor, não chega a esse patamar. O Cabernet Sauvignon é vendido por conta, porque já está enraizado nas pessoas, e o Merlot não. Eu mesmo tenho dificuldades de vendê-lo. Mas não deveria ser assim. Cada região se identifica com um tipo de vinho. Se um número maior de vinícolas se dedicar a mudar esse cenário, talvez ocorra uma transformação.

Uma coisa que vemos na Valduga hoje é um cuidado muito grande com a estética, com o design, com o lançamento de linhas mais exclusivas e isso até seus concorrentes reconhecem como uma força da vinícola. Como isso acontece?
Essa filosofia está enraizada em nossa cultura. Sempre foi assim. E agora estamos retomando um pouco nossa história, o cuidado do design, o cuidado da apresentação, para tentar aproximar o consumidor. Você sempre precisa olhar para o outro lado, se envolver. O papel da Casa Valduga é inovar, criar e desenvolver momentos únicos. Uma identidade.

fotos: Arnaldo Grizzo
"Não podemos aceitar que façam espumante com híbridas americanas"

Você fez parte do seminário e do exército?
Exato. Como era a ovelha negra da família, fui seguir carreira solo de militar. No primeiro ano, passei a ser cabo, depois, terceiro sargento e, por fim, veio a Academia Militar. Mas, nessa mesma época, houve a desgraça na Valduga, perdi dois irmãos e tive que pedir licença do exército. Antes, no seminário, aos 18 anos eles me mandaram embora - após eu criar uma associação de seminaristas para propor mudanças - dizendo elegantemente que eu não tinha vocação para ser padre. Fiquei muito desiludido, porque tinha saído de casa com oito anos. Então, imagina descobrir 10 anos depois que achavam que você não tinha vocação. Dei muito duro nesses dois lugares. O seminário era tão duro que me dei super bem no quartel. Levantar às 5h da manhã era moleza. Tomar banho frio, moleza. As comidas do quartel eram quase um banquete [risos].

"Se o setor vitivinícola tivesse absorvido todo esse mercado, como importadora, seriamos muito mais fortes, o vinho seria muito mais barato, muito mais acessível para o consumidor e o negócio estaria na nossa mão..."

Uma coisa interessante em vinícolas, como a Valduga, é ver como algumas famílias conseguem lidar com as vocações de cada um de seus membros.
Ás vezes penso: "que bom que meus irmãos me aceitam". Nosso sucesso está em quando essa união gera uma soma maior...

Sei que o João (Valduga, irmão enólogo que teve carreira na Embrapa) faz o que gosta.
Faz... E o Erielso também. Não conheço ninguém que trabalha como ele. Até parece que vai ficar doente. Se você lhe dá cinco dias de férias no final do ano, ele volta no quarto. E o João... ele era um funcionário público, uma pessoa mais ponderada, tranquila... Não teve as peripécias que tive na vida. E ele gosta do vinho, adora o vinho. Entre elaborar e tomar, ele é o que mais gosta. Nosso elo de ligação é fundamental. Ver o objetivo da equipe. Não tem diferença entre João, Erielso e eu... É tudo igual, todos com o mesmo pensamento. Em todos os problemas familiares procuro não envolver a Casa Valduga.

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E você tem uma nova geração de Valdugas chegando. Como prepará-los?
Prepara-se não dizendo, mas fazendo. Os dois que estão aí são humildes. Profissionalmente, eles têm que se dedicar. Meu filho se formou em enologia na Argentina. Vai buscar alguma especialização. Mas a formação dele se dará junto com a equipe e acredito que vá acontecer de modo natural. Quando meu filho voltou da Argentina, voltou pensando que já iria substituir o pai, que iria assumir o controle da empresa, mas logo percebeu que não é assim. Não é assim, e nem quero. Tem de haver uma preparação.

É possível meritocracia numa empresa familiar?
Sou diretor por mera formalidade, mas não trato ninguém com diferença, nem meus irmãos. Todos os funcionários são iguais. Faço de tudo para não acharem que, por ser diretor, tenho vantagem. Não tenho vantagem alguma, não tenho diferença nenhuma, com nenhum funcionário, e todos tem que ser assim. Até acho que agora as pessoas me dão mais respeito, depois da morte do meu pai. Estão me ouvindo mais. Todos me respeitam, sim, mas não consigo isso sendo um ditador, ao contrário, os funcionários me corrigem. E eu corrijo eles, e gosto disso, porque estamos numa equipe. Meus filhos têm que aceitar isso, porque é essa a filosofia da Casa Valduga.

fotos: Arnaldo Grizzo
"O que falta é não tentar desqualificar o processo (método Charmat), mas, sim, qualificar o produto"

"O seminário era tão duro que me dei super bem no quartel. Levantar às 5h da manhã era moleza. Tomar banho frio, moleza. As comidas do quartel eram quase um banquete [risos]"

Hoje a Casa Valduga tem outras frentes, como a Domno, na produção de espumantes charmat e importação; a Casa de Madeira, com geléias, sucos e aceto; as pousadas.
É importante você aceitar o chapéu Casa Valduga, o conceito. A Casa Valduga tem que ter, acima de todos, os princípios éticos. O que acontece são oportunidades de negócios que não descartamos. A importadora é um projeto que venho discutindo nos últimos 20 anos. Temos que absorver o mercado. E podemos abrir fronteiras para a Casa Valduga lá fora. Por que não? Por que os outros vão chegar na Argentina e nós vamos ficar de braços cruzados? Dizer que somos 100% brasileira? Ótimo. Mas, se podemos importar, não podemos perder essa oportunidade.

Quando entrevistamos o Angelo Gaia perguntei por que ele era, ao mesmo tempo, produtor e grande importador de Bordeaux na Itália. Ele explicou que antes ia aos Châteaux e não deixavam ele ver nada. Depois, que ele virou importador, apresentaram tudo para ele, e ele utilizou o conhecimento como produtor. Foi a primeira vez que vi uma racionalização desse processo.
Nossos concorrentes estão com Chile, Portugal, África do Sul, e o que acontece? Temos que deslumbrar este potencial que temos. Porque, na parte de importações, eles são muito mais fortes. Sou muito pequeno. Então temos que nos unir. Se o setor vitivinícola tivesse absorvido todo esse mercado, como importadora, seriamos muito mais fortes, o vinho seria muito mais barato, muito mais acessível para o consumidor e o negócio estaria na nossa mão...

Costumamos sugerir às importadoras o caminho o contrário: adotar vinhos nacionais dentro do seu portfólio. Deixar de pensar como importadora e pensar como distribuidora. Como nas monarquias europeias do séculopassado, ou seja, quando você consegue um casamento entre duas famílias, as guerras vão acabando...
É esse um ponto. Se os importadores tivessem absorvido essa ideia, não estaríamos concorrendo, porque cada importadora teria um vinho nacional. Elas fortaleceriam o vinho nacional e também pegariam mercado.

"Em método tradicional (Champenoise), somos uma das vinícolas de maior potencial. Ela vai crescer gradativamente. Mas não é porque faço método tradicional que vou dizer que é melhor"

E sobre internacionalizar as vinícolas nacionais?
Meu maior sonho, e que realizaremos, é colocar uma vinícola Casa Valduga fora do Brasil. Temos que demonstrar força e coragem.

A Casa Valduga tem um limite de quatro milhões de litros de vinho, e não mais do que isso. Hoje vocês estão produzindo quanto?
Estamos produzindo quase dois milhões de quilos de uva. Indo à fronteira pode ser que aumentemos para 4 milhões de quilos. A abertura dos espumantes também nos dá um bom suporte. Com a Domno, temos o potencial de 8 milhões. Ela tem essa capacidade na vinícola e vai crescer em torno de 30% ao ano.

Existe terra para expandir dentro do Vale dos Vinhedos?
O que está acontecendo aqui? Valores absurdos. Eu estou falando de terreno de 100 mil reais aqui no Vale. 100 mil por hectare! O custo que está tendo o Vale dos Vinhedos é absurdo.

De terra mais implantação?
De terra mais implantação. Estou um pouco freado em crescer aqui no Vale. Estamos com 100 hectares, e acho que isso é suficiente aqui, e não vamos crescer mais do que isso, não.

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Vocês apostaram muito no método Champenoise (elaboração de espumantes com segunda fermentação em garrafa) e agora, com a Domno, atuam com o método Charmat (as duas fermentações em tanque).
Com a Valduga, temos um propósito bastante definido: vamos fazer um belo Champenoise. Em método tradicional (Champenoise), somos uma das vinícolas de maior potencial. Ela vai crescer gradativamente. Mas não é porque faço método tradicional que vou dizer que é melhor.

Você fala que não existe realmente um demérito técnico do método Charmat para o Champenoise e que isso é exacerbado?
Elaborei, na Domno, um Charmat longo. E foi um dos melhores espumantes que já tomei. O problema seria o alto custo do processo. Se você persistir com isso, vai falir. Mas não há diferenças de qualidade se a autólise com a levedura durar o mesmo tempo.

Pode-se dizer que Charmat, afinal, permite produzir um espumante de boa qualidade mais rapidamente, e assim atingir em uma faixa de preço mais acessível?
Exato. O que falta é não tentar desqualificar o processo, mas, sim, qualificar o produto.

"Temos que desenvolver aqui as viníferas que têm potencial. Temos que ver qual é a vinífera brasileira"

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