O espanhol José Manuel Ortega Fournier abandonou a correria do mercado financeiro para desfrutar do mundo do vinho
por Christian Burgos
No mesmo dia que degustou uma dezena de seus vinhos, ADEGA encontrou com José Manuel Ortega Fournier para uma conversa exclusiva. Este espanhol, ex-executivo da Goldman Sachs em Londres e do Banco Santander em Madri, estudou economia e ciências políticas na Universidade da Pensilvânia nos EUA. Em 2000, começou seu projeto vitivinícola em Mendoza e hoje possui vinícolas na Argentina, Espanha e Chile. Casado, pai de três filhos, vive com a família em Mendoza, onde sua esposa é chef do restaurante Urban em O. Fournier. Eles compartilham a experiência de trabalhar juntos e viver com paixão o mundo do vinho.
Você trabalhava no Santander ao mesmo tempo em que fazia os investimentos na vinícola. Como foi isto?
Em Madri, no Santander, tinha responsabilidade por operações na América Latina. A vinícola era gerida por minha irmã e meu cunhado, que viviam na Argentina. Eu contribuia nos finais de semana e nas férias, até 2004, quando tive que deixar de trabalhar para o banco e começar a vender os vinhos de Fournier.
Como e por quê escolheu a Argentina e mais especificamente Mendoza, se sua família é da Espanha, tradicionalmente um país produtor?
Uma das razões foi meu trabalho no banco. Viajava quase uma vez a cada três semanas para a Argentina.
Compramos Finca Sofia em 20 de maio de 2000, com 263 hectares. Possuía umas pequenas casas abandonadas e dois poços. As terras na Argentina, nesse momento, eram infinitamente mais baratas e mais fáceis de comprar que na Espanha. Vimos também que o vinho argentino tinha um potencial muito grande, com qualidade para exportação.
Seus vinhos têm uma personalidade distinta, sobretudo pelo uso de Tempranillo.
Sempre tentamos ser muito humildes e respeitosos, mas também fazer o que acreditávamos que era o melhor para o estilo de vinhos que queríamos. Por isso, fomos ao Vale de Uco. Neste terroir, era óbvio que o Tempranillo ia funcionar, por ser uma zona fria e com solos arenosos que, em alguns casos, são parecidos com outras zonas da Espanha. O Tempranillo é uma variedade interessante, sobretudo para fazer um blend com Malbec e, em alguns casos, com Merlot.
Sua identificação de espanhol com o Tempranillo o levou a este terroir, ou foi o oposto?
Sempre buscamos o terroir e não o local para a variedade. Uma vez analisados o terroir, o solo e a climatologia, analisamos quais variedades serão as mais promissoras. Não se deve querer plantar a variedade errada, pois os vinhos serão medíocres.
Você diz não focar em ser o vinho top de um crítico especializado. Os críticos, muitas vezes, não concordam entre si em suas avaliações.
Quase todos os jornalistas importantes do mundo que provaram nosso vinho concordam que são vinhos de alta gama. Queremos fazer vinhos que agradem a muita gente.
Quais as diferenças entre os jornalistas de cada país?
Eles têm passaportes diferentes (risos). Sinceramente, acredito que cada jornalista é um mundo. É muito importante conhecer a personalidade de cada um, saber o que gosta, e saber como gosta que os vinhos se apresentem. Entender os estilos. Há jornalistas, a quem decidimos não enviar vinhos pois entendemos que o estilo que ele busca pode não ser o que fazemos. Neste caso, prefiro não fazêlo passar mal, e nem eu, e não enviar a amostra. É preciso ter respeito pelo profissional.
Você falou sobre um grupo de degustação que tem. Como se chama? Clos de los 8. Somos oito degustadores: José Galante, de Catena; Jorge Riccitelli, da Norton; Daniel Pi, de Trapiche; Roberto de La Mota, uma instituição da enologia argentina; e nosso enólogo Jose Spisso. Temos ainda Enrique Chrabolowski como líder; um importante empresário de Mendoza, Julio Camsden; e eu, que não sou nem enólogo, nem expert e nem rico. Nos juntamos uma vez por mês na casa de um de nós para fazer uma degustação com um propósito. Podemos degustar vinhos italianos ou Pinot Noir do Novo Mundo. Se há um personagem importante visitando a região, o convidamos. Já recebemos Michel Rolland, Pablo Alvarez, Aurélio Montes. Me dá muito orgulho que os melhores enólogos da Argentina possam se reunir uma vez ao mês, desfrutar, ser amigos, não ter invejas e aprender. Acho que mostra muito do setor vitivinícola argentino.
Você disse que experimentou vinhos argentinos de 1944 a 1985 nessa degustação. Surpreendeu-se?
Sim. Porque muita gente, sobretudo o Velho Mundo, quando quer denegrir a qualidade dos vinhos do Novo Mundo, diz que "os vinhos não envelhecem". Surpreendem-se ao provar um vinho de 1944 da Argentina, e considerá-lo, como eu, um dos maiores vinhos que já provei na vida. Ou provar Trapiches de 64 e 68 com nível de frescura, complexidade e limpeza impressionantes. Isso abre nosos olhos, pois nenhum dos enólogos que estava lá havia feito uma degustação dessas. Um dos problemas das vinícolas do Novo Mundo é que somos muito comerciais, sempre estamos degustando a última safra. Comercialmente, não há muito sentido degustar um Chardonnay de 74, ou um Cabernet de 68. Gostaria de promover degustações desse estilo, para demonstrar o potencial da enologia argentina.
Por que acredita que, mesmo sem ter as condições técnicas ideais nessa época, os vinhos envelheceram bem?
Acredito que eram as condições climáticas. Eram vinhos com menos álcool. Vinhos muito frescos, com acidez muito marcada. Não eram extremamente estruturados, eram mais leves; tinham essa frescura e complexidade que o tempo dá. Apesar de serem vinhos de gama média, floresceram espetacularmente com o tempo. O melhor de todos, de 1944, nunca saiu no mercado. Era um vinhedo muito velho, muito pequeno, que existia na vinícola Norton. Fizeram uma prova, somente para o proprietário, que os têm em sua reserva privada. Mas como continuamos falando sobre este vinho, ele vai ficar com cada vez menos garrafas (risos).
Qual a relação da acidez natural e as temperatudas no vinhedo?
O tema das grandes amplitudes térmicas entre dia e noite é bem conhecido. Fala-se que quanto mais extremo, melhor, mas isso não é totalmente certo. É importante que a a mínima esteja abaixo de 14 ou 15 graus, pois, nesta temperatura, a planta deixa de converter os ácidos em açúcares e pode manter essa acidez natural, extremamente importante para fazer vinhos equilibrados e que possam evoluir com o tempo. Se a máxima é 40 graus e a mínima de 20, embora a amplitude seja extrema, a planta não pára durante a noite.
Você faz muita referência à variedade dos clones no vinhedo. Por quê?
Fazemos uso de seleção clonal, quando a seleção basal não é a correta. Quando plantamos Malbec na Argentina, plantamos clones com amostras de vinhos locais. A primeira seleção é a basal, clones de vinhedos que já produzem, que estão aclimatados à região e dão uva de qualidade alta. Selecionamos as mudas e plantamos. Quando a seleção basal não é a mais adequada, buscamos a alternativa da seleção clonal, para fazer uma melhora na qualidade. Mas, sempre que podemos, tiramos as mudas de vinhedos já existentes. Está aprovada por nós, está aprovada pelos nossos vinhos, jornalistas, clientes. Quando se compra um clone de um viveiro, pode-se ter sucesso ou não.
Como são plantados os distintos clones das variedades?
Nossa propriedade na Argentina tem 80 hectares de vinhedos relativamente novos dividida em 14 sub-propriedades com distintas variedades, clones, quantidade de plantas por hectare, porta-enxertos, manejos de irrigação, etc. Temos um vinhedo experimental de 80 hectares. Por exemplo, este ano, estamos retirando um clone de Tempranillo que não gostamos e reinxertando com um clone de Malbec que aprovamos. A idéia de ir plantando aos poucos, é eliminar o risco de cometer um erro muito grande. Se tivéssemos plantado 50 hectares com esse clone de Tempranillo, teríamos um problema bastante sério.
"Minha aposta pelo mundo do vinho não foi econômica. O que espero é desfrutar"
José Manuel Ortega Fournier
Quando planta esses lotes de clones distintos, você os colhe e vinifica separadamente?
Uma vantagem que temos é o laboratório de micro-vinificação, onde podemos fazer provas de vinificações separadas. Foi o que fizemos com os três clones de Tempranillo. Elaborávamos os clones separados e vimos que havia um que não dava a qualidade de que gostávamos. Então eliminamos. A idéia não é somente ver o que pode dar a uva no vinhedo, mas, trabalhar sua elaboração, inclusive o barril.
Em certo sentido, acaba fazendo um varietal que é um blend?
Sim. Por exemplo, isso acontece em nossa vinícola de Ribera Del Duero, que é um vinhedo único, uma só propriedade de 65 hectares, dividida em lotes. O Tempranillo de um lote difere de outro de outro lote. Um Tempranillo velho difere do jovem.
Também variam pelo tipo de solo, área do vinhedo e tipo de condução. Fazemos elaborações separadas, ainda que só com Tempranillo. Exatamente o que você disse, um blend. Os vinhos de Ribera Del Duero, Spiga e Alfa Spiga são blends de Tempranillo, com características distintas. Na Argentina, também temos uma mesma variedade, mas vindo de lotes diferentes. Uma fica mais aromatizada, outra menos; outra com mais estrutura, outra menos. Aí, o talento do enólogo é poder fazer o corte exatamente do que quer.
Quando o visitamos pela primeira vez, você estava abrindo a vinícola para as pessoas e disse que ia iniciar um complexo enoturístico lá.
Fiz uma parte, o que chamamos de "Centro de turismo". Porque consideramos que, sobretudo na Argentina, e no Chile também, o turismo enológico é um segmento de crescimento muito importante. Lugares como Napa souberam explorar isso de forma incrível.
Investimos bastante dinheiro no centro de visitantes, com um restaurante de alta gama para 70 pessoas, sala de reuniões, wine shop. Estamos muito satisfeitos com o resultado.
Sua esposa atualmente é a responsável.
Ela é a responsável, a chef-executiva, e alcançou considerável sucesso em dois anos. Hoje, os especialistas estão considerando um dos melhores restaurantes de Mendoza.
Por que optou pelo nome Urban e não Alfa Crux para o restaurante?
Porque achamos que a linha Urban precisa de uma potencialização da marca. É uma marca de volume. Tudo que se faz é para apoiar o reconhecimento dela. Além disso, é uma marca global, que já temos em outros países. O restaurante no Chile, também vamos chamá-lo de Urban. Pouco a pouco vamos com nossos pequenos projetos. As condições econômicas, hoje são extremamente difíceis.
Falando de dinheiro e economia, em 2004, quando deixou o mercado financeiro, você devia ter a visão que deixava um mercado com potencial de crescimento muito grande, não?
Sim. Mudou um pouco nas últimas semanas. Muitos amigos me ligaram para dar os parabéns por ter saído logo (risos). A gente nunca sabe quando vai acertar, ou quando vai se prejudicar. Acho que o importante é que cada um faça o que gosta na vida, pois só vivemos uma vez. Se alguém gosta do banco, gostará de trabalhar ganhando US$ 200 milhões ou US$ 2 milhões. Desfruto do setor do vinho e ganho, atualmente, dez vezes menos do que ganhava no banco, mas gosto do que faço. Se ganhar a metade, continuarei gostando. Minha aposta pelo mundo do vinho não foi econômica.
O que espero é desfrutar, que meu filho esteja orgulhoso do trabalho que seu pai, sua tia, seu tio fizeram. E meus netos, quero que possam ver o projeto e também pensem que valeu a pena todo o sacrifício. Isso para mim é a vida, afinal, todos morremos e, o que importa é o que se deixa para trás. Creio que deixar algo que permanece, que tem uma história, reputação, credibilidade, é mais importante que deixar dinheiro.
Seu avô, de certa forma, fez o mesmo pelo seu pai, não?
Sim. Ele veio para Salvador depois da Guerra Civil. Queria dar o melhor para meu pai. Veio, trabalhou cinco anos, poupou e voltou para a Espanha para iniciar uma empresa que vai bem até hoje. Sempre falou muito bem do Brasil e aprendeu um pouco de português.
Seus filhos são hoje mais argentinos que outra coisa, não?
Quase. Minha filha mais velha tem 11 anos, já fala com sotaque argentino, gosta de equitação, coisas que nunca fez na Espanha. Quando joga Espanha contra Argentina, quer que ganhe a Espanha. Mas quando joga Argentina contra qualquer outro país, torce pela Argentina. Põe camiseta e tudo. Uma delas, a mais jovem, nasceu em Mendoza, então já é argentina de passaporte. Tenho muito orgulho de ter grandes amigos argentinos.
Como vê, sobretudo, o papel do Novo Mundo no mundo do vinho?
Acho que é fundamental. A Europa cometeu um erro grave de, a princípio, desqualificar o Novo Mundo como vinhos industriais, "a Coca- Cola do vinho", e não soube ver sua grandeza. Veja o impacto que o Novo Mundo está tendo no consumidor, que, afinal, é quem manda. O mundo do vinho não é diferente de nenhum outro produto. Quem o move é quem compra, não quem faz. No mercado mais competitivo hoje em dia, que é a Inglaterra, o vinho francês tinha 75% do mercado há quinze anos e creio hoje que chegou aos 35%. Se a Coca- Cola perde meio ponto de market share, cai todo mundo: gerente de marketing, de vendas, segurança, todo mundo. Acho que isso deve levar a uma reflexão por parte dos produtores do Velho Mundo.
Sempre falamos em cultura de vinho. Como vê o mercado brasileiro?
Existe paixão pelo vinho hoje no Brasil. Isso é muito promissor. Sobretudo, me impactou muito a evolução do conhecimento do cliente médio no Brasil.
Gostaria que existisse essa paixão pelo vinho na Espanha. Acredito que o País tem um potencial gigantesco. Por isso, para nós, é estratégico, o segundo país de vendas hoje, depois dos Estados Unidos. Uma sociedade de cada vez mais classe média, que pode se permitir o luxo de beber vinho e que tem essa gana por aprender, que é o que mais admiro e aprecio no consumidor brasileiro. Infelizmente, os impostos no Brasil não ajudam, e acho que é uma pena. O vinho é superior do ponto de vista da saúde. É necessário ver com horror a diferença de preço do mesmo vinho no Brasil e em outro país. Espero que pelo menos estes impostos sejam canalizados na melhoria da qualidade de vida da população. Senão, aí sim o desastre é completo.
Você disse que a escolha dos nomes dos seus vinhos eram para poder ser pronunciados no mundo todo.
Quando decidimos os nomes das marcas, tentamos agir com profissionalismo. Escolhemos marcas que possam ser pronunciadas em inglês e espanhol, que não sejam muito difíceis de decorar, curtas. Sempre tivemos o conceito de estrelas. Um conceito que todo mundo considera positivo. Outras preocupações de marketing, como ter os vinhos de alta gama, começando com "A", que os põe em primeiro quando se faz listas por ordem alfabética. Coisas que parecem ser feitas sem querer, mas têm pensamento lógico. Muitas vezes, alguém pode fazer grandes vinhos, mas se a comercialização, o serviço, a comunicação com os jornalistas, a logística não saõ bons, todo o trabalho se perde. Desde o princípio, em O. Fournier buscamos a excelência em todas as faces do que é a vinícola. Temos que ser excepcionais em tudo. Se conseguimos, não sei, mas o objetivo sempre tem que ser o máximo.