A história de como a Quinta do Crasto e os Roquette se tornaram uma das principais referências de vinho português no Brasil
por por Guilherme Velloso
Crasto deriva do latim castrum, que designava os fortes romanos. A localização privilegiada, num ponto elevado do vale do Douro, entre as cidades de Régua e Pinhão, com uma cinematográfica vista do rio, explicaria esse passado “militar” da quinta
A Quinta do Crasto é uma das mais antigas e tradicionais do Douro. Em suas terras, encontram-se dois dos chamados “marcos Pombalinos”, totens de pedra utilizados na primeira demarcação da região produtora de vinhos do Porto, em 1756, por ordem do Marquês de Pombal, à época uma espécie de primeiro-ministro de Portugal. As primeiras referências à propriedade datam de 1615, ainda que o próprio nome sugira origem muito mais antiga: Crasto deriva do latim castrum, que designava os fortes romanos, inclusive na distante colônia que chamaram de Lusitânia. A localização privilegiada, num ponto elevado do vale do Douro, entre as cidades de Régua e Pinhão, com uma cinematográfica vista do rio, explicaria esse passado “militar”. Mas é sua história contemporânea que mais interessa aos amantes do vinho, principalmente dos modernos Douro DOC, de existência recente e prestígio crescente, a ponto de rivalizar com o dos tradicionais vinhos fortificados que tornaram a região famosa.
Esse período se inicia nos primeiros anos do século XX, quando a quinta foi comprada por Constantino de Almeida, grande produtor de vinhos do Porto. Foi ele também o primeiro elo de ligação entre o Crasto e o Brasil. Constantino ficou órfão de pais ainda jovem e morou alguns anos no Brasil, na casa de seus padrinhos. Quis o destino que muito tempo depois uma neta fizesse o mesmo caminho, ainda que por razões distintas. Em 1923, a quinta passou às mãos de seu filho Fernando, que vendeu a Casa Constantino, mas conservou a propriedade. Em 1981, Leonor, filha de Fernando, e o marido, Jorge Roquette, assumiram a maioria do capital e tornaram-se responsáveis pela administração da propriedade. Hoje, já com os filhos Miguel e Tomás participando ativamente da gestão, o casal detém 90% do controle (os 10% restantes pertencem a dois irmãos de Leonor).
Fosse o roteiro de um filme e aqui, para surpresa do espectador, entraria um flashback, mesclando cenas de movimentação militar nas ruas de Lisboa a imagens de uma ainda bucólica praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, em meados da década de 1970.
Em 25 de abril de 1974, um golpe militar derruba o governo de Marcelo Caetano, sucessor de António de Oliveira Salazar, que comandara o país com mão de ferro de 1932 até 1968, quando sofreu um derrame. A chamada “Revolução dos Cravos” provoca grande agitação política e social em todo o país, num movimento que leva à estatização de indústrias e bancos e à ocupação de propriedades rurais. Também ocorrem muitas prisões. Entre os presos estão Jorge Roquette, por sua ligação com o setor financeiro, e seu irmão José, proprietário da Herdade do Esporão. O primeiro fica detido por um mês; o segundo, por seis. Em 1975, com a economia portuguesa quase paralisada e um quadro político indefinido e marcado por radicalismos (a Herdade do Esporão, por exemplo, foi estatizada e só devolvida, em parte, a seus proprietários, em 1978), cinco dos seis irmãos homens da família Roquette (no total eram 11) decidem emigrar para o Brasil. Entre eles Jorge, José e João, que viria a desempenhar importante papel nessa história. Jorge e Leonor chegaram ao Brasil com os três filhos: Rita, na época com 11 anos, Miguel, com oito; e Tomás, com cinco.
Tomás, desde então um apaixonado pelo Brasil, recorda-se dos primeiros meses, vividos em Niterói, quando tinha que acordar muito cedo para pegar a barca em direção ao Rio, onde estudava. Logo a família se mudou para o bairro do Leblon e depois para a rua Redentor, em Ipanema, entre a praia e a lagoa Rodrigo de Freitas. Foi nas praias do Rio que nasceu a paixão de Miguel pelo surf. Tomás, que prefere correr e jogar golfe (e, como diz rindo, “beber vinho”), lembra também, com especial carinho, da casa da família em Búzios, onde passavam férias e fins de semana e onde mantinham uma lancha usada tanto para passeios como para pescarias.
Passados seis anos, com a filha já adolescente começando a namorar, Jorge e Leonor se debatem entre continuar no Brasil ou voltar a Portugal. A situação na terral natal se normalizara gradativamente, com a eleição de uma assembleia constituinte, que dotou o país de uma nova constituição, mais democrática. A economia ainda enfrentava problemas, mas a reconstrução do país, que culminaria, anos depois, com sua adesão ao mercado comum europeu, oferecia muitas oportunidades a quem quisesse empreender. E foi uma dessas oportunidades que precipitou a decisão do casal, pois Jorge foi convidado a participar da fundação de um novo banco, que viria a tornar-se o BPI, hoje o terceiro maior banco privado português.
Com a volta a Portugal, a Quinta do Crasto torna-se o destino preferido do casal e dos filhos nos fins de semana, mas, em 1990, Jorge decide que a propriedade era muito grande e custosa para ser usada apenas para o lazer da família. O Douro começava nova revolução, com a produção de vinhos, principalmente tintos, de mesa (não se engane, lá o vinho de mesa é feito de variedades vitis viníferas). Para entrar nesse mercado, foi construída uma nova adega e, em 1994, são lançadas as primeiras safras dos tintos Crasto e Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas. Mas era preciso enfrentar um problema inusitado. Até que se resolvesse uma pendência jurídica, o vinho não poderia ser comercializado em Portugal com o nome da quinta. Naquela época, os vinhos Douro DOC, como os do Crasto, ainda não tinham alcançado o reconhecimento internacional de que desfrutam hoje. Se não era fácil vendê-los no mercado interno, exportar 100% da produção representava enorme desafio.
Além da qualidade dos vinhos, logo reconhecida por vários críticos internacionais, principalmente ingleses, o Crasto contava com um trunfo adicional guardado em seus antigos armazéns: um grande estoque de vinho Porto Vintage e LBV de excelente qualidade conservado pelo pai de Leonor. Tendo o conhecido Porto como ponta de lança, era muito mais fácil vender os novos tintos de mesa.
Até 1990, a propriedade era usada basicamente para o lazer da família
O Brasil teve (e continua tendo) participação decisiva nesse esforço de exportação. João, um dos irmãos Roquette que emigrara para o Brasil, decidiu permanecer no país. E aqui abriu a importadora Qualimpor, inicialmente para distribuir os vinhos produzidos por José no Alentejo. Nada mais natural que passasse a distribuir também os novos vinhos do Crasto. Bastam alguns números para dar uma ideia do sucesso dessa parceria. Hoje, a Quinta do Crasto exporta aproximadamente 70% de sua produção para 38 países. O mercado brasileiro absorve sozinho cerca de 30% desse total, mais do que o dobro do que vai para Inglaterra e Estados Unidos, que disputam o segundo lugar nesse ranking. “Com crise ou sem crise, crescemos todos os anos no Brasil”, destaca Tomás, que atribui o sucesso à estreita colaboração entre produtor e importadora. O primeiro, vendendo no que qualifica de “nosso pior preço”; a segunda segurando as margens praticadas sobre esses preços. Recentemente, além dos vinhos do Esporão e do Crasto, a Qualimpor passou a distribuir também o extenso portfólio da espanhola Freixenet e os reputados vinhos do Porto da Taylor’s.
Embora sejam ambos formados em Marketing (Miguel, nos Estados Unidos; Tomás, na Inglaterra), na divisão do trabalho, o primeiro responde pela área comercial e seu irmão pela produção. A exceção é o Brasil, sob responsabilidade de Tomás, que, por essa razão, vem pelo menos três vezes por ano ao país.
A Quinta do Crasto tem 130 hectares e produz cerca de 1 milhão de garrafas por ano
Vinhedo Maria Teresa, com vinhas cultivadas há aproximadamente 100 anos
Atualmente, a Quinta do Crasto produz cerca de 1 milhão de garrafas por ano, de vinhos tintos (a maioria) e brancos de diferentes estilos e níveis de qualidade. O topo da lista é encabeçado pelos “single vineyards” Maria Teresa e Vinha da Ponte, que só são lançados em safras excepcionais. Quando isso não acontece (como em 2010), suas uvas entram no corte do Reserva Vinhas Velhas (ver comentários sobre a degustação de diferentes safras desse vinho no texto a seguir), produzido todos os anos. Nos três vinhos são usadas diferentes seleções de uvas provenientes de 40 hectares de vinhas velhas (mais de 30 variedades), algumas com idade estimada em mais de 100 anos. A quinta também produz dois monocastas (Touriga Nacional e Tinta Roriz), além, obviamente, de vinho do Porto Vintage e LBV. Ainda este ano será lançado um Porto Colheita, da safra 1997.
A quinta tem área de 130 hectares, sendo 70 plantados com vinhas. Mas oliveiras centenárias garantem matéria-prima para a produção de azeite (Crasto Premium e Crasto Select). Para sustentar o crescimento da produção vinícola, foram incorporadas uvas provenientes de outras duas propriedades: as quintas do Querindelo e da Cabreira, com respectivamente 10 e 114 hectares de vinhedos. Outros 30 hectares são cultivados em vinhas arrendadas, com total controle da produção pelos técnicos do Crasto. Merece destaque também a linha Roquette & Cazes, fruto de uma parceria formalizada em 2002, mas que nasceu da amizade entre Jorge Roquette e o francês Jean-Michel Cazes, do Château Lynch-Bages. São apenas dois vinhos, produzidos sob a supervisão conjunta dos enólogos das duas casas: o Xisto, que só é lançado em anos excepcionais, e o Roquette & Cazes. As uvas são fornecidas principalmente por uma quinta dos Cazes no Douro e a vinificação é feita nas instalações do Crasto. A comercialização e distribuição dos vinhos do projeto Roquette & Cazes no mercado português está sob a responsabilidade de Rita, que também supervisiona a atividade de enoturismo.
Em 2012, a quinta recebeu aproximadamente dois mil visitantes, metade dos quais brasileiros. A localização excepcional, em que pese a longa e sinuosa estrada que leva até lá, e o fato de a Quinta do Crasto integrar o grupo dos chamados “Douro Boys”, tendo Tomás como seu representante, certamente contribuem para o interesse cada vez maior de muitos enófilos em conhecê-la de perto.
“Pipo” e “Tinto”, os dois cachorros da quinta
Embora disponha de todo o arsenal tecnológico à disposição das melhores vinícolas do mundo (um exemplo são as estações meteorológicas espalhadas pelos vinhedos, que transmitem informações via GPS para o computador central na sede), Tomás ressalta que o importante é a qualidade da matéria-prima. Por isso, ele destaca o paciente trabalho de replantio que vem sendo feito no vinhedo Maria Teresa, com vinhas cultivadas há aproximadamente 100 anos. O vinhedo foi batizado com o nome da neta mais velha de Constantino, que morreu há quatro anos com idade superior a 90 anos.
O trabalho no Maria Teresa começa com um levantamento genético individual de cada vinha, já que o objetivo não é apenas repor a vinha que morreu por outra da mesma variedade, mas preservar ao máximo sua identidade biológica. Reconhecendo certo grau de radicalismo na afirmação, Tomás diz que a tecnologia apenas ajuda a “estragar menos (as uvas)”. E sentencia: “Bons vinhos se fazem com boas uvas e muita paixão”. Por paixão, entende-se também uma dose de sabedoria, expressa, por exemplo, na utilização de práticas muito antigas, como a pisa a pé em lagares de pedra, o chamado “corte do lagar”. Quase obrigatória na produção de vinhos do Porto de qualidade, essa prática se estende hoje aos tintos top do Crasto, por assegurar uma extração inicial mais suave das uvas.
Em reforço à sua tese, Tomás comenta que, nos últimos 18 meses, o Crasto recebeu a visita de quatro dos mais afamados produtores de vinho do mundo: o francês Aubert de Villaine (Romanée-Conti); o italiano Angelo Gaja, o chileno Aurélio Montes e o argentino Nicolás Catena. Nenhum deles, segundo Tomás, mostrou grande expectativa em visitar a moderna adega da vinícola. Mas todos, sem exceção, fizeram questão de conhecer de perto os vinhedos plantados nas íngremes encostas ao redor da propriedade, muito provavelmente acompanhados pelo olhar vigilante de “Pipo” e “Tinto”, os dois cachorros da quinta.
Boa parte da tecnologia utilizada está voltada para aprimorar a qualidade da matéria-prima.
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