Projetos que mais parecem aventuras em lugares inóspitos talvez revelem o futuro da vitivinicultura na América do Sul
por Patricio Tapia
Projetos como o da vinícola Montes estão mais comuns com as mudanças climáticas
Para chegar ao lugar, é preciso embarcar em uma pequena lancha saindo do povoado de Tenaún, na ilha de Chiloé, a cerca de 1.100 quilômetros ao sul de Santiago. Depois de meia hora de viagem, passando por pequenas ilhotas e praias desabitadas, por fim chega-se à ilha de Añihue. Apenas 150 pessoas aproximadamente vivem ali, um lugar de águas calmas com o fundo repleto de mexilhões. Nesse lugar remoto, a Viña Montes plantou um par de hectares no inverno de 2018.
Em um primeiro olhar, pode-se descrever esse novo vinhedos de Montes como um experimento ou, no melhor dos casos, como uma aventura. E é ambas as coisas. Com 1700 milímetros de chuva ao ano e outonos frios, que tornam muito difícil a maturação completa das uvas, este vinhedo de Riesling, Albariño e Pinot Noir, entre outras variedades, pareceu que nunca funcionaria, mas, em meio ao verão, dois anos depois do cultivo, a vinha está sã, reluzindo com suas folhas verdes no meio de um bosque de murtas. É uma aventura, mas também é um olhar para o futuro vitícola da América do Sul.
Outros mil quilômetros mais ao sul, cruzando o que sobra de uma desmembrada Cordilheira dos Andes, no ponto mais profundo da Patagônica argentina, o empresário Alejandro Bulgueroni (da vinícola Garzón, no Uruguai) começou o projeto Otronia em 2007. Hoje tem 50 hectares e vários vinhos para mostrar, entre eles um Chardonnay singular que não se parece com nada do que alguém já tenha provado antes com esta cepa na Argentina. E não podia ser de outra forma, vindo desse lugar com tanto vento, com chuvas escassas e temperaturas baixas – um deserto frio em que no verão há 14 horas de sol (a fotossíntese não é o problema) e no inverno as noites duras 12 horas, noites frias que asseguram a acidez nos seus vinhos.
Estes são dois dos projetos mais radicais no sul da América do Sul. Mas há mais. Trevelin, um pouco mais ao norte na Patagônia argentina; Osorno e Malleco, no sul do Chile, todas áreas que se converteram em pequenas comunidades de produtores que estão aproveitando a singularidade de um clima para fazer vinhos de muito caráter, de muito atrevimento.
E é natural que seja assim, é, de certa forma, óbvio que se explore o sul, sobretudo em vista da mudança climática que, nesse lugar do mundo, está sem convertendo em severa escassez de água e verões extremamente quentes que trazem muitas dificuldades para os viticultores em busca de vinhos com equilíbrio.
A água é um tema maior. E seguirá sendo. No Chile, sobretudo no norte em vales como Limarí e Elqui, a escassez de água dizimou vinhedos inteiros e, os que sobraram, lutam para sobreviver com anos em que praticamente não chove. Mais ao sul, no vale do Maipo ou em Colchagua, já há vinícolas que tentam voltar ao sistema de secano (não irrigado), com o problema das baixas produções que isso implica.
Projeto Otronia na Patagônia tem 50 hectares de vinhedos plantados
O calor, por sua parte, tem feito com que o fato de “colher mais cedo” já tenha deixado de ser um caminho na busca por vinhos mais frescos e de menor teor alcoólico, para se converter diretamente em um tema de equilíbrio. Na safra 2020 na Argentina e no Chile, as uvas tiveram que ser colhidas ao menos duas ou três semanas antes do habitual. Esperar teria sido colher uvas passas.
No sul não há problema de água ou, ao menos, não há em um futuro próximo. Existem outras dificuldades, com certeza. As chuvas implicam maior cuidado no vinhedo, o perigo constante de uvas podres e, a falta de sol ou, às vezes, o vento em excesso, implicam, por sua vez, em não alcançar a maturação. Trata-se, com certeza, de outra viticultura, de outros problemas, novos desafios em uma nova era do vinho sul-americano que está aí, dobrando a esquina.
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