Mário Neves, um dos profissionais mais respeitados de Portugal, oferece uma análise crítica e criativa sobre o mundo do vinho
por Christian Burgos
"Se você quiser lançar uma nova marca de vinhos no mundo, deve ser feito um trabalho muito profissional, o que muitas vezes não acontece" |
Entre os principais executivos deste que é o quarto maior exportador de vinhos de Portugal está Mário Neves, que estudou na Universidade do Porto, fez cursos de marketing e iniciou sua atividade profissional em 1978, atuando em todos os mercados internacionais e no mercado português. Em sua última viagem ao Brasil jantamos discutindo o vinho em Portugal, no Brasil e no mundo, e seu desafio de conquistar espaço para a região da Bairrada. Tudo entre um vinho e outro, é claro.
ADEGA: Vemos muitas pessoas entrando no mercado de vinhos aqui no Brasil e em outras partes do mundo também. As pessoas compram um terreno em um determinado terroir e dali lutam para sacar os seus vinhos. Ainda existe espaço para isso neste mundo de profissionalização?
MÁRIO NEVES: Existe. Mas, se você quiser lançar uma nova marca de vinhos no mundo, deve ser feito um trabalho muito profissional, o que muitas vezes não acontece. Em alguns países, inclusive Portugal, o investimento feito por gente que tem muito dinheiro, mas não tem muito conhecimento de vinho, às vezes, fica aquém das possibilidades. No caso da Austrália, por exemplo, o investimento em uma certa variedade de uvas é feito quando se encontra o solo ideal. Na própria Itália, um dos melhores enólogos da região da Toscana se refere em uma entrevista às dificuldades para fazer Sangioveses e ressalta que, para ter a certeza de fazer um grande vinho Sangiovese é necessário unir determinadas características do solo, altitude etc. E depois juntar tudo isso com as características da vinha. Ocorre que, às vezes, esses novos investidores do mercado do vinho não têm esse conhecimento.
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No ano passado incorporamos à nossa equipe editorial o único Master of Wine brasileiro, Dirceu Vianna, que hoje reside na Inglaterra. Qual a é a importância dos Masters of Wine para o mundo do vinho?
Estou há pouco mais de 30 anos nesse negócio e costumo dizer que em consequência da existência destes Masters of Wine, o negócio de vinhos mudou radicalmente. Isso se dá pela formação que esses profissionais têm e os elevados cargos profissionais que ocupam. Por exemplo, na Inglaterra, parte deles são compradores dos grandes clientes, seja dos distribuidores, seja de supermercados e hipermercados
O que isso significa na prática?
Antigamente quando comecei, não havia um filtro muito grande entre o produtor e a prateleira. A lista de vinhos era uma questão de relacionamento, de esforço de venda. Hoje já não é bem assim. Porque é necessário que a meticulosidade esteja no vinho. O vinho passa por um filtro muito grande, porque esses Masters of Wine ocupam lugares profissionais que fazem esta seleção extremamente criteriosa. Eles sabem que só em função da qualidade é que os vinhos serão vendidos. Tudo mudou, porque sem qualidade é muito difícil arranjar distribuição. A não ser para aquelas marcas que ganharam status há muitos anos e, com isso, força de marca e poder para influenciar um pouco o mercado.
E os modelos de sucesso do negócio do vinho já são todos conhecidos?
Sempre há o que inovar. Por exemplo, li um artigo fantástico sobre uma firma que investe em vinhedos - principalmente na Califórnia e em Oregon - que é capitalizada por fundos de investimentos e cujo objetivo não é produzir garrafas de vinho. O objetivo é somente produzir uvas para vender a terceiros. Há grandes marcas na Califórnia que compram somente uvas produzidas por terceiros. Tenho certeza de que eles são profissionais e sabem, quando investem, o que vão produzir e que terão sustentabilidade.
Isso é quase um contrassenso do que vem acontecendo na história vitivinícola, em que produtores de boas uvas passam a engarrafar seus próprios vinhos, buscando rentabilizar seu negócio.
Mas se for profissional, há espaço para outros modelos.
Como se mantém com as mudanças no mundo do vinho?
Minha preocupação sempre foi ter um negócio mais profissional, que obriga qualquer pessoa que está ligada à vinícola a ter um conhecimento do que se passa no mundo do vinho. Acho que, em Portugal, sou a pessoa que mais assina revistas internacionais de vinho. Leio tudo relacionado ao negócio do vinho, tanto na parte comercial quanto na parte tecnológica. Daqui a 15 dias vou chegar à Hong Kong e posso dizer que a primeira coisa que vou fazer será ler uma revista australiana que é muito boa na parte de vinhos e restaurantes. Qualquer país produtor é bastante fechado para vinhos estrangeiros, então é sempre interessante ver o que se passa no mundo através das publicações internacionais.
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Sentimos que é mais difícil para os consumidores dos países produtores. Eles têm uma certa barreira para comprar grandes vinhos...
Em Portugal, ou em outras regiões produtoras, só se bebe o vinho daquela região. Em Bordeaux, só se bebe Bordeaux. Em Borgonha, só se bebe Borgonha. E quando bebem outros diferentes não gostam, porque seu paladar fica padronizado para um determinado estilo de vinho.
"Em Bordeaux, só se bebe Bordeaux. Em Borgonha, só se bebe Borgonha. E quando bebem outros diferentes não gostam, porque seu paladar fica padronizado para um determinado estilo de vinho" |
Fica um paladar domado?
Domado, exatamente. A primeira vez que bebem um vinho diferente não gostam. Meu avô era produtor de vinhos e só bebia o vinho que ele produzia. Dos vinhos diferentes, ele não gostava por não estar habituado.
Isso é um desafio para os produtores?
Sim, mas, muitas vezes, os produtores são chatos. Compro muitos vinhos estrangeiros. Na semana passada estive em grandes regiões produtoras espanholas. Numa loja em Vigo tive acesso um vinho que teve uma votação muito boa no Robert Parker. O preço era atrativo, mas desconfiei e comprei só uma garrafa. Na empresa, fizemos uma degustação, chegamos à conclusão que era um grande vinho e fomos à Espanha comprar mais seis garrafas.
O senhor faz degustação de outros vinhos com uma equipe?
Fazemos. Eu mesmo faço parte de um grupo com mais quatro pessoas. Desde 1995 compramos vinhos, não necessariamente os mais caros, mas vinhos Bordeaux de primeira. Todos os anos compramos e depois fazemos algumas provas, três ou quatro jantares em que discutimos e provamos todos os vinhos.
A Bairrada está num processo de franco renascimento e de reconhecimento no Brasil e, talvez, no mundo inteiro. Há alguns anos vocês iniciaram um processo de reinvenção.
Sou responsável pela direção vitivinícola da Bairrada. Sou diretor há vários anos e tenho feito coisas bastante interessantes. Como você sabe, só havia uma casta, a Baga, com vinhos de alta categoria. Pessoalmente posso dizer que estou em uma fase da vida em que aprecio cada vez mais o estilo de vinhos da Bairrada. O problema é que muitas destas vinhas estão no lugar errado, pois nunca houve um trabalho ideal de investigação da casta.
O que a pesquisa pode agregar?
Na Itália, por exemplo, a casta Sangiovese hoje é completamente diferente da Sangiovese há 15, 20 anos. Isso porque foi feita uma grande seleção clonal para produzir vinhos de maior qualidade. Este trabalho ainda não foi feito em Portugal, o que por um lado é bom, afinal, mesmo assim, já produzimos vinhos muito bons. Mas, se fizermos este trabalho, poderemos produzir vinhos ainda melhores.
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"Quem" é a Baga?
O dono da nossa importadora na Inglaterra é considerado um dos melhores enólogos franceses e produz vinhos na França e na África do Sul. Sempre se disse que os taninos da Baga se assemelhavam aos de algumas castas italianas - como Sangiovese e Nebiolo - mas, segundo este enólogo, tanto a Baga quanto a Nebiolo, são clones do Pinot Noir. Uma teoria bastante diferenciada. Aliás, na opinião dele, a Baga é a melhor casta portuguesa.
Esta conexão com outras castas de sucesso é importante?
Existem vários pré-requisitos para uma casta e uma região se imporem mundialmente. Minha teoria pessoal é que o mais importante é que haja similaridades nos vinhos produzidos desta casta nesta região.
Enfim, que haja tipicidade...
Costumo usar como exemplo o Sauvignon Blanc da Nova Zelândia, que é um caso de sucesso mundial. Pessoalmente, aliás, esse nem é o meu estilo preferido de Sauvignon Blanc, pois acho um pouco enjoativo para acompanhar comida. Mas, independentemente disso, todos os Sauvignon Blanc produzidos na Nova Zelândia têm o mesmo estilo. E é um estilo específico, totalmente diferente de Sauvignon Blanc do Napa Valley e do Vale do Loire. Nesse, como em outros casos de sucesso, o consumidor reconhece as diferenças. Por que estas castas se tornam marcas? Porque o consumidor sabe que um Chardonnay é diferente de um Sauvignon Blanc. O pior que pode acontecer para uma região e para uma casta é a falta de uniformidade. Se o consumidor não souber o que está comprando naquela garrafa, o obstáculo será muito maior.
"Um país tem que chamar a atenção dos consumidores por alguma coisa, porque isso dá reconhecimento ao produto. O pior é não ser lembrado por nada" |
E o que o consumidor deveria encontrar em uma garrafa de Baga?
Costumo diferenciar os vinhos para apreciar e os vinhos gastronômicos. Há vinhos para apreciar que são muito bons, mas a pessoa bebe um copo com comida e já no segundo copo fica enjoada. A Baga, ao contrário, é uma casta de vinhos gastronômicos.
E além da Baga, a Bairrada tem alguma outra surpresa?
A Merlot hoje é uma casta produzida por vários produtores da região da Bairrada. Aliás, desde o final da década de 1990. A região da Bairrada é uma região atlântica e, como em Bordeaux, chove sempre em setembro, portanto as uvas que não estão em condições de serem vindimadas até 20, 15 de setembro correm um grande risco de não chegarem à condição ideal. A Merlot é uma casta que faz vinhos sensacionais. Penso que, futuramente, se destacará por si só, ou combinada em pequena quantidade com a Baga, assim como tem sido feito hoje na região da Toscana, com a Sangiovese.
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E o que falta na Bairrada?
Vejo no Brasil. Se há sucesso do agronegócio no Brasil, em parte, acredito que seja em função da Embrapa. Recentemente estive em Curitiba, em um centro de formação, e fiquei impressionado de encontrar pessoas altamente profissionais, que já estiveram no estrangeiro e que vão transmitir suas experiências aos alunos dessas escolas. Isso em Portugal ainda não temos.
Na indústria vitivinícola podemos ainda citar o caso da Universidade de Davis na Califórnia.
Exatamente. Pessoalmente, acho que o produtor nunca deve estar satisfeito com aquilo que está fazendo, essa é filosofia dos italianos. Vou há mais de 10 anos para a Itália, conheço dezenas de produtores italianos e sou amigo de todos eles. Todos os anos eles têm um vinho diferente para apresentar aos seus clientes. Todos os anos têm uma embalagem nova. Não estão contentes com o que estão fazendo. E é por isso que os admiro...
O Dão e a Bairrada estão fisicamente conectados. Como o senhor vê o Dão?
Penso que é uma região que pode vir a crescer muito, porque trabalha basicamente com três tipos de uva, seus vinhos tem uma similaridade de características, e isso ajuda o consumidor a saber o que ele vai encontrar numa garrafa do Dão.
Impressiona a característica distinta da Touriga no Dão.
Os vinhos de Touriga no Dão são bastante elegantes. Sou suspeito, porque em 2005, a Aliança fez o melhor Touriga Nacional da região do Dão. Gosto bastante da composição com Tinta Roriz.
"Todos os anos eles [italianos] têm um vinho diferente para apresentar para seus clientes. Todos os anos têm uma embalagem nova. Não estão contentes com o que estão fazendo. E é por isso que os admiro..." |
Acredita que os blends são mais propícios a encontrar estilos gastronômicos do que os varietais?
Acredito. Há poucos casos no mundo de vinhos gastronômicos 100% varietais. Talvez apenas na Borgonha. Em outros casos, no Novo Mundo, mesmo quando são vendidos com um nome de varietal, Cabernet, Merlot, têm sempre um corte de 15% de outra variedade.
Há quem diga que se tornam músicas de uma nota.
Exatamente. Ele não explora todo o potencial que pode ser obtido com a combinação de outra casta. Acredito que a magia do enólogo esteja nos blends.
Os produtores de vinho são cada vez mais "globetrotters mundiais". Estão cada hora em um país e esse ritmo cansa. Como você enfrenta tudo isso de bom humor?
Há dois anos, fiz duas voltas ao mundo e, ano passado, fiz outra. Em 17 dias, fiz 15 viagens de avião, passei cinco noites dentro dele, e estive em 10 locais diferentes, sempre viajando na classe econômica. O segredo, acho, é fazer exercícios regularmente, caminhar bastante e permanecer bem disposto. Mas esta é também uma boa oportunidade de ter amigos em todas as partes do mundo, o que é muito interessante.
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Em quantos mercados a Aliança opera atualmente?
Cerca de 60 mercados. A procura pelos vinhos portugueses não é uma das maiores, mas é bastante satisfatória. Portugal tem uma imagem muito boa vinculada ao vinho rosé, principalmente na Austrália. E agora o Vinho Verde também está bastante forte naquele país. Nos Estados Unidos, o consumo de Vinho Verde está crescendo fantasticamente, e todos eles são semelhantes. Como já disse, uma das coisas essenciais para uma região ter sucesso é que tenham vários produtores a fazer a mesma coisa, mais ou menos no mesmo nível.
O que pensa sobre essa questão que está surgindo, de os produtores de uma região trabalharem juntos, dividindo técnicas e experiências de cultivo?
Acredito que, para uma região ter sucesso, é preciso primeiro que haja atitudes assim. Atualmente, tenho tentado convencer os principais enólogos de Portugal a fazer um fórum sobre a produção do vinho, porque o fórum da promoção já existe. É importante haver um caminho comum entre as regiões produtoras, para que elas tenham um nome forte, criem um vínculo entre o vinho e o local onde são produzidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os produtores de Pinot Noir, desde os anos 80, fazem um congresso a portas fechadas para discutir os vinhos bons e os maus, para tentar melhorar sempre. E é por isso que os vinhos de Oregon, dentro do país, são um grande sucesso.
Agora Portugal está passando por um momento de redefinições das regiões vinícolas, da relação com o Ministério da Agricultura, das mudanças de Denominação de Origem. Para onde essas mudanças estão apontando?
Infelizmente esse projeto não alcançou tanto sucesso quanto imaginávamos quando o Plano Porter foi lançado. Nossas exportações aumentaram, mas não em relação aos outros países, que também cresceram. Ou seja, nosso crescimento foi apenas absoluto. Mas se quisermos dar um salto, precisamos fazer uma convenção em cada região para discutir o que está sendo feito em nível de produção. Já fazemos vinhos bons com a estrutura que temos, mas podemos fazer outros muito melhores.
E quanto ao modelo português de produção?
No início, o modelo de produção português tentou copiar o Novo Mundo em relação à quantidade de castas, mas há uma diferença substancial. A maior região, que é o Alentejo, pode produzir 90 milhões de litros. Não podemos comparar Portugal com um país do Novo Mundo. O modelo ideal para Portugal é muito mais do Velho Mundo, pela quantidade de produção de cada região. As castas precisam criar nome para vender, então temos que selecionar muito bem quais usaremos, para fazermos todos a mesma coisa.
O Brasil ultimamente anda, ou andava, um pouco desconectado das tendências mundiais. A Austrália e a Espanha ainda não conseguiram se firmar aqui, enquanto Portugal tem no Brasil uma história de sucesso.
Tentamos fazer nossas marcas serem bastante fortes. Aqui, por exemplo, uma das maiores é o Alentejo. Já nos Estados Unidos o produto mais forte é o Vinho Verde. Um país tem que chamar a atenção dos consumidores por alguma coisa, porque isso dá reconhecimento ao produto. O pior é não ser lembrado por nada.
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