O vinho espanhol entre o mito e a razão

Raquel Pérez Cuevas, da Bodegas Ontañon, usa a razão e a mitologia para explicar a tradição de vinhos da Espanha

por Redação


Por Luna Garcia
"Rioja seria mais um Borgonha e Ribera um Bordeaux"

Quando falamos dos vinhos espanhóis, logo duas regiões vêm à mente: Ribera del Duero e La Rioja. Sim, a Espanha possui diversas outras regiões vitivinícolas de destaque como Toro, Bierzo, Navarra, Priorat, Penedès etc. Contudo, sempre foram Rioja e Ribera que tradicionalmente levaram o nome do vinho espanhol para além das fronteiras do país e, mais do que isso, ajudaram a criar alguns grandes ícones.

Se Ribera, com Pesquera e Vega-Sicilia, tornou-se um nome que sempre está na boca dos grandes apreciadores; Rioja, por seu lado, é a denominação de origem mais antiga da Espanha e se vangloria disso e de ter um conselho regulador extremamente atuante, que garante a sempre alta qualidade de seus vinhos. Rioja hoje segue os passos dos “desbravadores” de Ribera. Seus produtores estão cada vez mais percorrendo o mundo e contando suas histórias. Uma das vinícolas que busca esse reconhecimento é a belíssima Ontañon, com a jovem Raquel Pérez Cuevas, de 36 anos, que viaja o mundo para mostrar o que de bom é feito por sua família. Seu pai, Gabriel Pérez Marzo, é um dos pioneiros do vinho riojano e seus herdeiros seguiram a tradição. Nessa conversa, Raquel conta a história do vinho riojano e da vinícola, que também tem um pé em Ribera (uma sede fica em Logroño – Rioja – e outra em Burgos – Ribera). Apaixonada pelo vinho e pela arte, assim como seu pai, ela refl ete o espírito da bodega, que está envolta a diversas obras de arte do artista Miguel Ángel Sainz, baseadas na mitologia do vinho. Lá, o vinho é quase uma religião.


Durante muito tempo, a Espanha não figurava no mundo do vinho como uma grande referência. Foi somente depois que os grandes nomes de Ribera apareceram que os vinhos espanhóis parecem terem vindo à tona. Por quê?
A tradição existe desde sempre, mas não sabemos nos vender muito bem. Há outros países do Mediterrâneo que se vendem melhor. Nunca tivemos uma mentalidade exportadora. Mas, nos últimos 10 anos, acho que o país que mais cresceu em exportação, não em volume total, mas em porcentagem, foi a Espanha. Agora temos vontade de sair, de fazer os produtos serem conhecidos. Acho que em termos de qualidade/ preço nossos vinhos são imbatíveis, pois há qualidade por um preço justo. Tradição sempre existiu, o que passou é que nunca soubemos expressá-la, nem vender.


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Fotos: divulgação
Obra do artista Miguel Ángel Sainz com Onopion, filho de Dionísio, e o centauro Folos, que virou logotipo da vinícola

E qual a história da vinícola da sua família?
A família já tinha vinhedos. Vendíamos uva a outras bodegas. As vinhas ficavam em lugares muito bonitos. Em 1985, decidimos fazer nossos próprios vinhos. Não somos de uma família muito rica. Tudo foi feito com bastante trabalho. Primeiro pelo meu pai e depois pelos filhos. Nos anos de 1970, 80, em Rioja, as bodegas não queriam saber de vinhedos, pois vinhedo era coisa de camponeses. A viticultura não era uma preocupação para elas. Elas não tinham vinhedo. Mas meu pai sempre teve mentalidade de viticultor. Nessa época, ele comprou muito vinhedo. Atualmente temos 250 hectares em Rioja. Então, foi mais fácil para nós, pois podemos fazer Ontañon de nossos próprios vinhedos. Em 2004, fizemos uma nova bodega, pois nossos distribuidores queriam, em Ribera del Duero. Nunca estivemos em Ribera e agora temos quase 50 hectares, pois a filosofia é a mesma: queremos trabalhar nosso vinhedo, fazer as coisas como sabemos fazer. Isso é um pouco a história da vinícola. Ontañon é nossa marca mais reconhecida.


A vinícola possui diversas obras de arte baseadas na mitologia. De quem foi a ideia?
Meu pai sempre teve uma sensibilidade muito especial com a arte: escultura, pintura. Nos anos de 1980, meu pai e Miguel Ángel, um artista riojano, se conhecem e ficam muito amigos. Miguel tinha afinidade com o vinho. Quando compramos as instalações de Logroño, meu pai disse a Miguel: “Esta é sua obra de arte, expresse- -se. Desenhe tanto a arquitetura, quanto a sala de barricas e o logo da vinícola”, que veio a ser o centauro. Ao longo da bodega há obras de arte que tem a ver com o vinho: Baco, O Cântico dos Cânticos da Bíblia, Noé – o primeiro viticultor e o primeiro bêbado da Bíblia. O vinho não é uma bebida solta, mas um nexo de civilizações que se unem um pouco por essa mitologia.


Como se deu a fama de Ribera e Rioja?
Alejandro Fernández, de Pesquera, foi um dos que mais fez pela denominação de Ribera del Duero. Ele pegava as malas com suas garrafas e ia apresentar seu vinho para o mundo. Teve gente como ele a quem se deve grande parte do reconhecimento de Ribera. Mas lá não havia esse sentimento vitícola, pois era uma área cerealista e os vinhos eram de consumo próprio. Já Rioja, acho que sempre teve tradição de vinhos. As leis do conselho regular de La Rioja são as mais estritas do mundo. Na colheita, o conselho contrata umas 600 pessoas extra durante mais de um mês para ver cada vinícola. Como denominação de origem, é a mais antiga da Espanha e, como denominação de origem qualificada, é a única junto com Priorat. Rioja passou por transformações. Primeiro sofreu uma revolução quando chegou a filoxera na França. Os franceses vieram a Rioja abastecer-se de uvas, porque conheciam e sabiam que havia qualidade. De fato, há bodegas franco-espanholas por lá. Sempre foi uma zona de vinhos, mas não era muito comercial. Nos anos de 1970, começa outra revolução, primeiro em Rioja, depois em toda a Espanha: uma revolução enológica. A vinícola muda, se colocam depósitos de aço inoxidável. Ao final dos 80, 90, a revolução enológica estava feita. Se você tinha uma matéria-prima, por mais que adornasse a bodega, o vinho não ia ser melhor. Durante essa época, meu pai começou sua revolução vitivinícola. As pessoas começaram a se dar conta de que a essência do vinho não está na bodega. A real força está na vinha, no terroir. Algo que valia 10, passou a valer, em poucos anos, 100.


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Foto: Luna Garcia
"Tínhamos que defender nossa autenticidade. Agora as pessoas nos dão razão, pois há muita gente que já está farta de Cabernet e busca tipicidade"

Nós seguimos comprando. Em 1990, houve também outra revolução. Ficou na moda o Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay. Em Rioja, uma parte das vinícolas queriam que se plantasse Cabernet. Ao final, o conselho decidiu que não. Tínhamos que defender nossa autenticidade. Agora as pessoas nos dão razão, pois há muita gente que já está farta de Cabernet e busca tipicidade. Nos anos 2000, estava na moda, entre os entendidos de vinhos, dizer: “Se digo Rioja, não expresso nada novo”. Então falavam de muitas denominações que fazem um complemento sensacional do que é o panorama de vinhos da Espanha, mas menosprezavam Rioja. E se buscava mais vinhos com muito corpo, cor. Agora, há uns quatro anos, o mundo começou a falar de vinhos finos, elegantes, com tipicidade.


Vocês são muito focados na tradição, não?
Gosto muito de uma frase de Pablo Álvarez, de Vega-Sicilia: “o respeito é uma coisa que não se pode comprar, ele se dá com o tempo”. Não se pode ser uma bodega de cinco anos e querer que as pessoas lhe respeitem. O respeito verdadeiro, a admiração, só o tempo dá. Agora Rioja está se reafirmando, com vinhos mais “madeirizados”. Agora se buscou uma madeira nova, importantíssima. A madeira que tínhamos antes era horrível. E a fruta, a expressão do terreno. E, com isso, Rioja tem ganho muitos pontos.


Quantas variedades são permitidas lá?
Quatro tintas: Tempranillo, Garnacha, Graciano e Mazuelo. Graciano é uma variedade para se defender muito, pois só se cultiva em Rioja. Três brancas: Garnacha Branca, Malvasia e Viura. A Viura tem poder de expressão, mas é boa também em uma mescla. Malvasia e Garnacha Branca são vinhos mais simples. Então se permite algo de Verdejo e não sei se alguma variedade mais. Mas acreditamos na Viura.


Vocês trabalham com quais?
Estamos na Rioja Baja. Somos “baseados” em Tempranillo. Em segundo lugar, nesta região, viria a Garnacha, mas, para nós, vem a Graciano, o que é algo raro. Vimos muito potencial nela. É uma variedade que, para vinhos de guarda, é ideal. Dá pouca produção, é mais difícil de cultivar, mais sensível a doenças. Em Ontañon, os vinhos são todos blends. Crianza é 90% Tempranillo e 10% Garnacha. Garnacha dá um pouco mais de corpo, álcool, cor, estrutura. Para Reservas e Gran Reservas, que são mais importantes, aí tentamos Graciano, com 5%.

Fotos: Divulgação
Toda a família está envolvida na empresa. O pai de Raquel, Gabriel Pérez Marzo (à direita) foi um dos pioneiros do vinho riojano e investiu na compra de terras quando ninguém as queria. O irmão, Rubén Pérez Cuevas, é o enólogo de Ontañon


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Foto: Luna Garcia
"O enólogo é como um alquimista, um bruxo. Ele tem que ter uma parte de razão, estudo, essência, que representa o ser humano. Mas, para ser um bom enólogo, tem que ter muita sensibilidade"


Vega-Sicilia comprou terras em Rioja. Qual a diferença entre as regiões de Rioja e Ribera?
Rioja passou por uma época que foi mais baixa, mas agora está muito na moda. É como uma febre. Rioja tem uma influência mais Mediterrânea e Ribera mais Continental. A variedade é um pouco diferente nos dois lugares: a Tempranillo e a Tinta del País, como eles chamam. Pode ser um clone que varia, mas, no final, é a mesma variedade de uva. Em Rioja, tem-se a influência do Mediterrâneo nas temperaturas e aí está grande parte da diferença. A diferença de temperatura entre dia e noite é menor. Na época da maturação, ela é menor do que em Ribera. Os invernos não são tão duros e os verões mais suaves. Em Ribera, os invernos são horríveis. No verão, durante o dia, faz de 24 e 30oC; de noite, de repente, baixa para 5oC. Rioja tem um Tempranillo com muito boa expressão, que se adequa bem ao solo. Os solos de lá têm ferro, argila e calcário, e é um solo pobre demais. São vinhos sem esse potencial tânico tão forte, sem tanto álcool, tanta cor. Nossa variedade tem bastante acidez natural. Para os vinhos de guarda, é ótimo. É um vinho mais fino, mais leal. É muito complexo no nariz, pois tem fruta, mas vai muito bem com a Crianza. Ribera del Duero é outro tipo. Estava muito na moda nos últimos anos, pois são vinhos muito carnudos, alcoólicos no nariz. Rioja seria mais um Borgonha e Ribera um Bordeaux, com mais corpo, mais Cabernet Sauvignon. E isso pode acontecer, pois em Ribera se coloca Cabernet Sauvignon. Não sei em que porcentagem, mas pode-se colocar.


Tempranillo deveria ser a imagem do vinho da Espanha, como a Carménère é no Chile e a Malbec na Argentina?
Na Espanha, o que acontece é que o Tempranillo, em Rioja, se chama Tempranillo. Mas pode ser Tinta del País em Ribera. Ojo de Leibre na Catalunha. Tinta Fina em Castilla-La Mancha. Cada região chamou essa variedade com um nome. Acho que o nome é Tempranillo, pois ela vem é Rioja. Não é uma variedade muito exportada, pois é como o Pinot Noir. O Pinot necessita de condições de temperatura e luminosidade que não há em todos os países. O Cabernet Sauvignon resiste a tudo. Tempranillo é muito delicada. Sensível ao oídio, míldio e outras doenças. Então, não se exportou tanto como variedade. Poderíamos aprender com argentinos e chilenos.


Qual a ideia do centauro do rótulo?
A primeira ideia é: Onopion, filho de Dionísio, e o centauro Folos. O filho de Dionísio é mandado para trabalhar com Folos, por seu pai, para preparar o vinho para servir aos deuses no Olimpo. A segunda ideia é a sabedoria: saber fazer, de uma geração a outra. Outra ideia, a que gosto mais: o enólogo é como um alquimista, um bruxo. Ele tem que ter uma parte de razão, estudo, essência, que representa o ser humano. Mas, para ser um bom enólogo, tem que ter muita sensibilidade. É algo mais como nosso instinto animal. Se você for somente racional, não adianta. Pois seu vinho vai ter um grau alcoólico tal, um pH tal… Mas isso não diz nada. E se for só o outro, não vai saber dar uma explicação lógica para o que está acontecendo. Então, há duas ancoras, como uma balança. Isso significa que as duas partes, não só no vinho, mas no ser humano, têm que estar em equilíbrio: o lado racional e o da sensibilidade. Não pode ser só um matemático e nem só um poeta. E essa idéia nos encantou. E agora está em tudo.


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Foto: Divulgação
“Nos anos de 1970, 80, em Rioja, as bodegas não queriam saber de vinhedos, pois vinhedo era coisa de camponeses. A viticultura não era uma preocupação para elas. Elas não tinham vinhedo”


"Na Espanha, o que acontece é que o Tempranillo, em Rioja, se chama Tempranillo. Mas pode ser Tinta del País em Ribera. Ojo de Leibre na Catalunha. Tinta Fina em Castilla- La Mancha. Cada região chamou essa variedade com um nome"

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