Produtores garantem que, em breve, rolhas nunca mais estarão associadas ao bouchonné
por Redação
Nos anos 1990, a indústria da cortiça mundial passou por uma fase “negra”, que deixou sequelas na boa imagem que as rolhas – o principal vedante de vinhos desde praticamente a antiguidade clássica – construiu ao longo dos séculos. Nessa época, graças a inúmeros casos, as rolhas ficaram associadas ao “bouchonné”, o famigerado defeito da rolha (bouchon, em francês), que dava ao vinho aromas ruins que lembram papelão molhado, mofo etc.
Verdade seja dita, essa fase ficou para trás. Atualmente, o número de rolhas infectadas pelo 2,4,6 tricloroanisol, um metabólito fúngico, comumente chamado de TCA, é irrisório. Menos de 1%, garantem os produtores de cortiça.
Lembrando que o TCA é um composto volátil que, mesmo em quantidades quase insignificantes, pode contaminar o vinho. Para se ter uma ideia, 6 nanogramas por litro – o equivalente a uma gota em 20 piscinas olímpicas – podem pôr tudo a perder.
Apesar de a indústria ter avançado muito e mitigado o problema, há enófilos que ainda ficam ressabiados diante da rolha, especialmente quando pensam em guardar um vinho em adega. Imagine envelhecer algo por anos só para ter uma surpresa desagradável ao abrir?
No entanto, os mais antenados sabem que já há mais de uma década a indústria de cortiça passou a investir pesado em tecnologia e criou soluções para produzir rolhas livres de TCA. Sim, não é de hoje o processo que “esteriliza” a cortiça e permitiu o surgimento de rolhas sem TCA. No entanto, até cerca de dois anos atrás, elas se restringiam às rolhas de cortiça aglomeradas (feitas de retalhos de cortiça) e as ditas rolhas técnicas (junções de aglomerados e cortiça natural).
Porém, um novo e decisivo passo vem sendo dado pela indústria de cortiça ultimamente. Em 2016, começaram a pipocar no mercado as primeiras rolhas de cortiça natural (peças inteiras retiradas de um único pedaço de cortiça) com garantia de serem 100% livres de TCA. Agora, a
meta é ir além e tornar isso uma realidade corriqueira para que as rolhas nunca mais despertem a desconfiança de qualquer enófilo.
Renascimento
“O setor da cortiça tem dado sinais claros de um investimento contínuo na melhoria da performance das suas rolhas de cortiça. Existem já hoje tecnologia e processos industriais que, quando aplicados de forma adequada, permitem garantir que as rolhas de cortiça não serão responsáveis pelo TCA no vinho. Como em tudo, viveremos agora o tempo da consolidação da tecnologia e fase posterior esta será aumentada a um maior número de empresas e, por consequência, a um maior número de rolhas, que, no futuro, ambicionamos que possam ser a sua totalidade”, aponta João Rui Ferreira, presidente da Associação Portuguesa da Cortiça, a APCOR.
Mas para chegar a esse ponto, houve e ainda haverá uma série de investimentos. Segundo Carlos de Jesus, diretor de comunicação do grupo Amorim, líder em produção de rolhas de cortiça no mundo, “estamos vendo um verdadeiro renascimento da cortiça”. “Um renascimento da preferência do consumidor e dos enólogos pela cortiça”, aponta. A Amorim é uma das empresas que lançou rolhas com garantia de serem livres de TCA por meio de um sistema chamado NDtech. Ela analisa a presença de TCA em cada rolha por meio de uma tecnologia de cromatografia, que permite analisar as rolhas e retirar do lote qualquer uma que contenha mais de 0,5 nanodivulgação gramas de TCA por litro, quantidade detectável pelo olfato humano.
“A não detecção de TCA nas rolhas aglomeradas já existia há bastante tempo. O NDtech vai dar essa garantia nas rolhas naturais, o que é um avanço muito importante”, avalia Carlos de Jesus. Ele lembra que foram vários anos de pesquisa e investimento de 10 milhões de euros para chegar a essa máquina. Ao longo dos anos, a empresa, porém, desenvolveu outras tecnologias para erradicar o TCA.
Das granuladas à natural
Não somente a Amorim, mas diversos produtores investiram pesado em tecnologia. “Hoje você não pode somente produzir rolhas, mas tecnologias. Para fazer rolha sem TCA, tivemos que criar nossas tecnologias”, lembra Monika Michalski, gerente de marca da Cork Supply. Ela afirma que sua empresa foi uma das pioneiras em criar sistemas de controle de qualidade para as rolhas ainda nos anos 1990 para poder fornecer para o exigente mercado norte-americano. “Na época, não produzíamos rolhas, então era importante ter uma garantia. E a única forma era montar nosso próprio laboratório de controle de qualidade em 1993. Fomos pioneiros em práticas de analise sensorial em rolhas, o que nos trouxe um domínio neste tema, e deu-nos um avanço bastante grande para conseguirmos fornecer rolhas com garantias individuais”, revelou.
Uma das tecnologias implementadas já há bastante tempo é a que praticamente elimina as chances de TCA em rolhas aglomeradas usando um sistema de limpeza baseado em vapor de água. Outras empresas, como a DIAM, por exemplo, implementaram processos para eliminar TCA e outros aromas com a utilização de CO2, criado em 2003. Com esse tipo de tecnologia, Amorim, Cork Supply, DIAM e outras tantas empresas, há bom tempo, já garantem rolhas aglomeradas livres de TCA.
O passo seguinte foi alcançar as rolhas naturais. Os primeiros processos, todavia, consistiam em análise por amostragem. Uma porcentagem das rolhas de um lote era testada e, caso houvesse algum problema, todo o lote era rejeitado. No entanto, ainda assim havia um pequeno percentual de risco. “Em uma colheita, você pode ter uvas mais maduras e outras menos, mas no fim junta todas e faz-se um vinho homogêneo. Com as rolhas naturais não é assim. Elas não são exatamente iguais. Hoje em dia, porém, há soluções para padronizar”, aponta Monika.
Na Cork Supply, a solução encontrada não foi exatamente uma máquina, mas o nariz humano. Desde 2011, a empresa lançou a DS100, processo em que 100% das rolhas são inspecionadas com o intuito de detectar desvios sensoriais, incluindo TCA, através de um método não destrutivo de “maceração a seco”. Nele, as rolhas passam por checagem de três profissionais que literalmente cheiram todas as rolhas em busca de anomalias. “E isso tem um custo”, lembra Monika. A empresa, contudo, oferece uma garantia de compra da garrafa caso haja um problema relacionado à rolha seja encontrado. E o sistema também evoluiu e, há dois anos, eles lançaram o DS100+. “Além de detectar TCA, nossos técnicos também vão detectar outros aromas. Uma maquina está focada só em TCA. Dessa forma, nós garantimos um lote muito homogêneo de rolhas”, aponta.
No caso a Amorim, o processo é automatizado. O NDtech é um sistema que usa a cromatografia
para avaliar, em pouco segundos, cada rolha individualmente se há presença ou não de TCA. Caso seja identificado, a rolha é retirada do lote. “Após um ano e meio do lançamento, já tecnologia já foi capaz de reduzir quase pela metade o tempo de análise, que era de 5 segundos”, diz Carlos de Jesus. Só este ano, ele aponta que serão produzidas cerca de 70 milhões de rolhas NDtech. “Se juntarmos todas as outras rolhas com TCA não detectável, estamos a falar de um bilhão de rolhas”, afirma.
Garantido, mas acessível?
Diante de tecnologias tão inovadoras, uma pergunta que fica no ar é quando elas estarão ao alcance de todos. “Quando o NDtech foi lançado, imaginava-se que os vinhos premium seriam o foco natural, mas o que verificamos é que outros também estão usando NDtech. Todos querem essa garantia em seus melhores vinhos. Mas o conceito de uma rolha natural com garantia de não apresentar TCA é para ser expandida para todas as rolhas naturais do grupo Amorim”, garante Carlos de Jesus.
“Tal como acontece em outros setores, os avanços tecnológicos implicam em produtos de maior valor agregado e, nesta fase, há ainda esse efeito nas rolhas com garantia 100%. No entanto, com o desenvolvimento da tecnologia, o alcance dessa garantia vai incorporar rolhas para vinhos que não exclusivamente de segmento premium”, afirma João Rui Ferreira. A meta de livrar todas do TCA é ousada, pois, segundo estimativas da APCOR, são feitas 40 milhões de rolhas diariamente só em Portugal e 40 bilhões de garrafas são vedadas com elas no mundo anualmente.
Outra questão que se levanta diante das garantias oferecidas pelas empresas de não detecção de TCA é se, nesse tempo, já houve reclamações. Segundo Carlos de Jesus, a Amorim não recebeu qualquer reclamação e aponta que sua tecnologia conta com um sistema de validação e garantia científica internacional. Já Monika Michalski diz que os questionamentos de clientes na Cork Supply são quase inexistentes desde quando criaram seus sistemas de controle. “E nós aceitamos reclamações referentes não somente ao TCA”, lembra.
Ao que parece, o mundo da cortiça caminha mesmo para decretar o fim do bouchonné. Apesar disso, Carlos de Jesus afirma que o desenvolvimento dessas tecnologias não foi a principal revolução do mundo da cortiça. “A principal foi a capacidade de ter medidas preventivas contra o TCA, que, digamos, não é um problema exclusivo da cortiça. Pensar que só com medidas curativas iriamos chegar a isso, seria um erro. Todos queremos abrir o jornal e ver que foi descoberta uma cura de alguma doença, mas ninguém quer ler 40 páginas sobre medidas preventivas.O NDtech é uma tecnologia muito sofisticada que detecta TCA em segundos, mas nosso objetivo é ter a capacidade de implementar medidas curativas e preventivas de forma que o NDtech não seja necessário. Ele não veio substituir nenhuma das medidas preventivas e curativas. Ele vem em cima de tudo isso”, afirma.
Contudo, é inegável que um grande passo foi dado. “Nos últimos 10 anos, a indústria reagiu com grande profissionalismo e hoje não só se produzem rolhas como também tecnologias próprias avançadas (desde 2007 a Cork Supply desenvolveu três tecnologias próprias). A evolução tem sido tremenda, mas estamos conscientes que ainda há trabalho para fazer”, finaliza Monika.
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