Zinfadel e Lei Seca

Camille Seghesio - dita Madame Zin - conta a história de sua família que, junto com a casta Zinfandel, sobreviveu à Lei Seca e a duas Guerras Mundiais

por Christian Burgos E Luiz Gastão Bolonhez

Luna Garcia

A Seghesio Family Vineyards está intimamente associada à história de uma casta quase desconhecida no Brasil, a Zinfandel, que saiu da Croácia e cruzou o mundo para encontrar seu terroir na Califórnia. Assim como esta variedade, a família Seghesio também cruzou o Atlântico para ganhar a vida na América, a duras penas deve-se dizer, pois suportaram épocas difíceis com as duas Guerras Mundiais e a terrível Lei Seca.

"Os valores da família na época eram os mesmos de agora: a terra primeiro, vinho em segundo e depois a casa "

Assim, a paixão pela enogastronomia, pela história da vitivinicultura nos Estados Unidos e pela Zin (apelido da casta) foram os destaques de um jantar exclusivo com Camille Seghesio. Estar com Camille pela primeira vez é como encontrar uma amiga de muitos anos, talvez porque, após cinco gerações plantando uvas nos Estados Unidos, a família ainda cultue e cultive hábitos italianos. Ademais, a genética piemontesa se manifesta claramente na apaixonada e comunicativa ítalo-americana.

ADEGA: Como a família Seghesio começou no mundo do vinho?

CAMILLE SEGHESIO: Somos uma das mais antigas famílias viticultoras da América. Meu avô chegou nos Estados Unidos vindo da Itália, em 1886. Naquela época, muitos imigrantes italianos trabalhavam com a uva no norte da Califórnia. Ele começou na cooperativa Italian Swiss Colony que, em 1880, era o maior empregador da região, com 4 mil acres de vinhedos.

E como foi o salto de empregado para produtor?

Praticamente todos trabalhavam para a Italian Swiss. O contrato de trabalho era assim: você trabalhava lá, eles lhe alimentavam, davam-lhe estadia, e não recebia salário, apenas um grande pagamento no fim do contrato. Após sete anos ele recebeu uma grande soma e preparava-se para ir à Itália se casar quando seu chefe disse: "Você está louco em gastar todo esse dinheiro para voltar para a Itália. Sua namorada pode não estar mais lhe esperando. Se quiser se casar tenho duas sobrinhas adoráveis, Maria e Ângela". E assim, meus avôs foram unidos por um arranjo com o tio de minha avó.

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Sua avó era italiana?

Sim, a miséria em sua casa na Itália fez com que ela e sua irmã fossem enviadas pelos pais para morar com o tio nos Estados Unidos. Meu avô escolheu Ângela, a mais nova, e eles se casaram em 1893. Ela tinha 15 e ele 32. Plantaram o primeiro vinhedo em 1895, no mesmo ano em que foi comprado. Os valores da família na época eram os mesmos de agora: a terra primeiro, vinho em segundo e depois a casa.

Como assim?

Em 1902, eles receberam a licença para fazer vinho. Nessa época, eles tinham diversos filhos e viviam em uma casa de dois cômodos. Só em 1907, 12 anos depois da primeira vinha plantada, eles finalmente arrumaram a casa. Então, você pode ver os valores da família desde o começo. A terra, a mais importante para plantar as uvas, produzir o vinho em segundo lugar, colocar o dinheiro na vinícola, afinal, quem se importa com uma cozinha bonita? [risos]

Ainda é assim?

Ainda é assim. Tudo vai para a vinícola. Ninguém precisa redecorar! [risos]

Fale-nos sobre seu Pinot Noir?

Ainda fazemos Pinot, mas a quantidade é muito limitada. É um belo Pinot da denominação Russian River, mas não produzimos o suficiente. A verdade é que nossos vinhedos estão principalmente no Alexander Valley e Dry Creek, que são as áreas perfeitas para Zinfandel. Temos um vinhedo em Russian River, que é muito frio para Zinfandel, e lá temos Pinot Noir e três variedades brancas - Arneis, Chardonnay e Pinot Grigio. O que amo em Sonoma é que você tem 22 diferentes microclimas.

Os vinhos norte-americanos são pouco encontrados fora dos Estados Unidos. Por quê?

Algumas das vinícolas da Califórnia não estão olhando para o mercado internacional, pois estão "exportando" no mercado doméstico. Mas acho que há belos vinhos de terroir na Califórnia e que temos que apresentar nossos vinhos e contar nossas histórias internacionalmente como todos os produtores fazem.

Você é a quinta geração da família?

Divulgação

É uma história interessante. Eu deveria ser da quinta geração, mas sou da terceira. Meus avós tiveram cinco filhos. Minha tia nasceu em 1894, depois meu tio Frank, que esteve na I Guerra Mundial, depois meu tio Arthur, minha tia Eugene, e meu pai, que nasceu 1919 e esteve na II Guerra Mundial. Esta família teve um filho lutando na Primeira e outro na Segunda Guerra Mundial. Então, meu pai casou tarde e teve filhos muito mais tarde que seus irmãos. Sou a mais nova da terceira geração.

"Digamos que de 1915 até 1962 é um tempo muito longo para manter plantado algo [Zinfandel] que ninguém bebia, que ninguém respeitava ou achava que podia fazer um bom vinho"

Os outros estão com 83 e 85 anos. Hoje, alguns da quinta geração estão trabalhando no negócio da família, e a sexta ainda é muito nova.

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O negócio mudou muito com o tempo? Vocês passaram
por bons e maus momentos...

Sim, acho que os melhores momentos viveram meus avós. Imagine que eles vieram da Itália sem nada e tiveram que fazer isso dar certo. Não podiam voltar. Havia camaradagem e otimismo nos Estados Unidos. Eles plantaram os vinhedos, estavam exultantes, nunca pensaram que a Lei Seca viria. Então, a geração do meu pai teve uma época terrível com a Lei Seca, que terminou 1934, e o mercado doméstico não era muito bom. Durante a II Guerra foi um pouco melhor, porque o preço das commodities subiu, mas pouca coisa aconteceu. Foi só a partir da década de 1960 que se fermentou um Zinfandel Single Vineyard sério no Estados Unidos. Exceto pelo período da Guerra, a geração do meu pai sofreu muito. Agora, na década de 1990, a geração mais jovem fez muitas mudanças. Quando assumimos, mudamos tudo, a produtividade, os clones etc. Enfim mudamos completamente a maneira de cultivar.

Houve grande diminuição de sua produção no período. Como aconteceu?

A primeira geração era muito italiana, plantavam Zinfandel e uvas italianas. Na época de meu pai, depois da Lei Seca, não havia demanda para Zinfandel e ninguém queria Sangiovese. Queriam Pinot Noir, Cabernet, Merlot, os produtos típicos e tradicionais nos Estados Unidos. Assim, a geração do meu pai plantou o que o mercado queria, e em grande quantidade. Tínhamos nossos vinhedos e ainda comprávamos muita uva. Foi quando a nova geração veio e disse: "Isso não é sustentável". Não podemos fazer todos esses vinhos.

E qual foi o caminho?

Meu irmão fez uma proposta para o conselho, que era formado por minha mãe, meu tio e meu pai - que na época eram idosos. Onde está nossa paixão? O que podemos fazer com grande qualidade? Zinfandel. Assim, cancelamos os contratos com vinhedos de terceiros e nossa produção anual caiu de 175 mil caixas para 35 mil. Nos dedicamos a fazer vinhos apenas com uvas próprias. Adotamos novas tecnologias para ter a melhor qualidade possível. Apostamos, e tem sido uma grande história de sucesso, mas, para falar a verdade, não tínhamos outra chance de sobreviver.

Por quê?

Hoje, no mundo do vinho é muito difícil estar no meio, você pode ser muito grande e ter grande distribuição, ou ser pequeno e focado na qualidade. Se quiser ter uma empresa familiar, você não tem outra chance, tem que fazer grandes vinhos, ou os melhores vinhos que puder. É a única maneira de sobreviver. E tem que passar este caminho para a próxima geração.

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Como sua família atuou durante a Lei Seca?

O governo estava tentando pegar o uísque e outros destilados, não estava realmente tentando matar as pequenas vinícolas. Então, legalmente, tínhamos permissão para vender uvas para outras famílias produzirem seu vinho em casa. Isso causou uma grande demanda em remessas de uvas para todo país. Você também podia vender uvas para a Igreja, e de repente muitos católicos foram batizados [risos].

Sempre há um jeitinho...

Muitas dessas uvas eram remetidas para o leste, e depois voltavam para o oeste como vinho trazido pela máfia. A maioria dos produtores de vinho faliu. Em nosso condado, havia 250 vinícolas antes da Lei Seca e 50 estavam em pé no fim da lei. Muitos diversificaram e sobreviveram plantando qualquer coisa que pudesse gerar renda. Sobrevivemos porque meus avós não tinham dívidas. Eles tinham muito medo de dever para alguém. Meu pai sempre pagou em dinheiro, nunca teve cartão de crédito. Você colhia suas uvas, pagava suas dívidas e era isso. Uma mentalidade bem diferente de hoje, embora hoje estejamos voltando um pouco à mentalidade de não contrair empréstimos.

Quando a lei terminou houve um grande aumento de consumo de vinho?

Em 1934, a lei foi revista, mas o cenário não foi promissor. Em primeiro lugar, assim como aconteceu nas vinícolas da África do Sul durante o Apartheid, a falta de investimentos levou à estagnação e nossa indústria ficou para trás. Em segundo lugar, o gosto e a cultura do vinho nos Estados Unidos eram muito distintos do estilo de vida europeu, em que bebe-se vinho no almoço, no jantar, com a família... Então, em 1934, quando o mercado voltou, havia demanda por uvas baratas, que as grandes vinícolas compravam para fazer e vender vinho a granel. Ninguém estava interessado em Zinfandel, que era uma variedade usada na mistura para produzir vinho de mesa californiano.

Não havia mercado durante e nem depois da Lei Seca, então como faziam?

Essa é a questão chave. Os italianos, cabeças duras, simplesmente se recusavam a parar e arrancar o Zinfandel. Além disso, as vinhas estavam plantadas no cavalo de St. George, que é resistente à filoxera, e por isso sobreviveram. Outra coisa, acredito que nunca acharam que a lei iria permanecer e arrancar os vinhedos e plantar outra coisa é caro. Ficaram pensando: "No próximo ano a Lei Seca acaba", e no próximo ano, no próximo ano... Veja, para um vitivinicultor norte-americano ter hoje mais de 100 anos, significa que passou pela Lei Seca. Esta é uma história que não é contada. Quantas pessoas manteriam seus vinhedos sem gerar renda, sem futuro e não desistiriam. A maioria diria: "Esqueça!"

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E mesmo depois da lei...

E mesmo depois da lei ninguém queria Zinfandel, eles as usavam em cortes para vender vinhos a granel. Então surgiu o White Zinfandel, e os produtores ficaram felizes, pois as vinícolas pagavam um pouco mais pelo vinho branco do que pelo tinto de mesa. Um dos produtores famosos de White Zinfandel disse: "Estou segurando uma taça de White Zinfandel e sei que os críticos falam mal dele, mas olhe para meu balanço e estou muito feliz". Só após 1962 os primeiros Zinfandel tintos sérios foram produzidos. Tivemos que esperar. Meu avô estava fazendo Zinfandel tinto seco em 1895. Digamos que de 1915 até 1962 é um tempo muito longo para manter plantado algo que ninguém bebia, que ninguém respeitava ou achava que podia fazer um bom vinho.

Como explica o Zinfandel para o consumidor brasileiro?

O Zinfandel encontrou seu papel de direito no mundo do vinho globalizado, em que as variedades tintas que estão vinculadas a um território. Se você está aberto a um vinho varietal, com taninos suaves, algo que você pode beber jovem, sem ter que guardar por 15 anos, Zinfandel é um belo vinho, frutado e gastronômico. O maravilhoso nele é que harmoniza com diversas e diversas comidas. É muito versátil. Poucos tintos são tão versáteis como o Zinfandel. Você pode beber com churrasco, com pato, com comida chinesa, com comida indiana. Não é tão tânico quando os vinhos baseados em Cabernet. O segredo está em sua picância e na doçura. No Zin você pode ter morangos, framboesa, amora, cereja, e até couro e tabaco. É uma variedade para ser muito apreciada com comida.

Zinfandel vem mesmo da Primitivo?

Esta história é interessante, pois é similar à história da Malbec na França e na Argentina. Hoje se reconhece que a qualidade do Malbec na Argentina é melhor do que na França. A Zinfandel é similar à Primitivo, sua origem, na verdade, está na Croácia, numa variedade chamada Crljenak Kastelanski. Esta variedade foi de lá para Viena, para Nova York, circundou a América do Sul por navio e, na Califórnia, chamaram-na de Zinfandel. Geneticamente, Primitivo, Crljenak Kastelanski e Zinfandel são a mesma, mas temos diferentes expressões no vinhedo. Acreditamos que os clones de Zinfandel mudaram da Primitivo e da variedade croata, e são superiores.

Você é apaixonada por Zinfandel.

Acho que o maravilhoso do Zinfandel é que, para fazê-lo, para ser apaixonado por ele, você precisa de algo que transcende, especial. Você precisa ser leal a uma uva difícil, com casca fina, amadurecimento irregular etc. Quando você tem vinhas antigas, o amadurecimento é mais regular, pois, à medida que envelhecem, o amadurecimento é mais lento e mais homogêneo. Joel Peterson teve tanto sucesso quando ainda era um jovem produtor porque queria fazer um grande vinho, e procurou e encontrou uvas Zinfandel de vinhas velhas por um bom preço. Afinal, elas estavam sendo utilizadas para fazer White Zin. Temos muito respeito pelo que ele fez com Zinfandel. As vinícolas viram a qualidade natural nos vinhos jovens de vinhas velhas e pensaram: "Temos a chance de fazer um vinho melhor mais cedo". Eles foram os pioneiros. Sinto como se minha família estivesse caminhando no trajeto desses pioneiros.

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Quantos são os membros da família hoje? E como sobreviver tanto tempo juntos?

Há 10 de nós e a chave é que temos sorte de nos darmos bem. A chave para nós é que estamos em áreas separadas. Todos têm sua área e um chefe, que é meu irmão. Você precisa de uma pessoa no comando. Digo, você pode ter uma equipe com muitas coisas distribuídas e acho que isso funciona, pois cada um ama sua área e ninguém diz: "O que a Camille está fazendo no Brasil?". Geralmente eles perguntam: "Onde está Camille?" E eles nem sabem. Há um grande nível de confiança. Ninguém fica pensando: "Ela está gastando dinheiro". Temos essa filosofia de "sempre avanti", nunca olhando para trás. Todo mundo é muito calmo e sem ciúmes e somos apaixonados por três coisas: cultivar uvas, fazer vinho e comida italiana, e estas coisas não são negociáveis. Ninguém quer um carro bonito, eles querem muzzarella. Nunca tire a muzzarella. Essas são as três coisas básicas: uvas, vinho e comida.

Seu Seghesio Sonoma Zinfandel 2007 foi eleito número 10 no ranking da Wine Spectator de 2008. E não é o mais caro de seus vinhos...

É difícil explicar por que meu primeiro vinho vai tão bem. E os outros? O que é único nele é que quando a Wine Spectator está fazendo sua lista eles procuram qualidade, acessibilidade e preço. Se você faz um vinho de 95 pontos e cinco caixas dele, há US$ 100 por caixa, tudo bem. Mas se faz um vinho de 95 pontos, a preço acessível e em quantidade suficiente para as pessoas encontrarem, eles consideram isso. Fizemos 45 mil caixas desse vinho, é acessível e suas safras são consistentes.

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