O processo de colocar açúcar no mosto não é bem visto no mundo do vinho
por Arnaldo Grizzo
Pode parecer controverso – em um mundo em que cada vez mais se fala de aquecimento global e o consequente aumento do grau alcoólico dos vinhos – ainda ser necessário que enólogos lancem mão da chaptalização.
O processo é a adição de açúcar durante a fermentação, com o objetivo de aumentar o teor final de álcool do vinho. Você pode se perguntar: “por que alguém faria isso?”
Nas mais variadas regiões do mundo, os vinhos, por lei, precisam ter um teor mínimo de álcool, portanto, caso as uvas não tenham em si mesmas a quantidade de açúcar suficiente para chegar a isso, essa adição garantirá.
O nome da técnica está ligado a Jean-Antoine Chaptal, químico francês que teria proposto esse método no século 18.
A chaptalização é uma técnica mais comum em regiões frias, onde as uvas tendem a sofrer para atingir a maturação necessária. Mas essa “falta de açúcar” pode ocorrer não somente pelo frio, mas por períodos de chuva e outros fatores. Ainda assim, quando pensamos que o planeta está sentindo os efeitos do aquecimento global e a indústria do vinho é uma das que vem notando isso mais fortemente, é curioso ver explodir no noticiário do vinho uma polêmica sobre o uso da chaptalização.
Em 2018, as autoridades francesas abriram processo contra o Château Giscours, um dos 15 Troisièmes Crus de Bordeaux (terceiro nível na classificação de 1855), por ter chaptalizado ilegalmente alguns de seus vinhos da safra 2016. Os diretores do château não negam ter acrescentado açúcar a uma barrica de Merlot, mas afirmam que não tinham a intenção de agir contra a lei. Alegam, aliás, terem solicitado ao órgão regulador e terem recebido uma resposta afirmativa.
Logo, a polêmica explodiu.
Na época o Organisme de défense et de gestion de Margaux (órgão que regula a região de Margaux, em Bordeaux) afirmou que houve, sim, uma primeira comunicação em que a autorização para chaptalizar estava confirmada, mas, logo em seguida foi enviada outra dizendo que todas as outras cepas, exceto a Merlot, estavam autorizadas.
Alexander Van Beek, diretor do Château Giscours, criou ainda mais polêmica ao revelar que os pedidos de chaptalização são “banais” e feitos “sistematicamente” na maioria dos anos e para todas as variedades de uvas.
No entanto, ele diz que, apesar disso, o método é raramente usado.
Apesar de – de certa forma – a prática ser defendida por alguns como um método tradicional, a chaptalização é vista com certa cautela, apesar de ser considerada indispensável.
Em entrevista para ADEGA o enólogo uruguaio Alejandro Cardozo diz, “a chaptalização é um recurso válido em condições especiais, mas que não deveria ser uma constante”.
“Acrescentar 1% ou 2% de álcool através desta técnica não afeta a qualidade do vinho, o problema é o que há por trás disso ou o porquê da necessidade dessa correção. E essa correção é feita porque nessa região ou naquela safra específica as uvas não chegaram a um nível de maturação para atingir uma graduação ótima para o vinho”, aponta Cardozo.
Para ele, a questão a ser observada não é a qualidade do vinho final chaptalizado, mas a qualidade da uva. “Uma fruta que não alcança a quantidade de grau requerido para o tipo de vinho desejado dará um vinho desequilibrado ou com notas verdes – no caso dos tintos. Isso faz com que o chaptalização não seja um problema, mas sim a qualidade da fruta”, diz.
No entanto, ele afirma que, antes de apontar o dedo acusando alguém, é preciso ponderar algumas coisas. “No quesito qualidade da fruta, é preciso separar duas coisas. Ou essa fruta não chega à sua melhor condição porque é um ano muito chuvoso, ou porque essas frutas são de uma região fria ou chuvosa que se adaptam àquelas condições. Ainda assim, nessas regiões deve-se buscar, na parte de manejo vitícola, que as uvas cheguem ao seu potencial, por exemplo, baixando rendimentos, podas, sistema de condução e exposição solar. Não se pode colocar a culpa na região para não se fazer o trabalho de campo. Mas volto a salientar que há anos de condição chuvosa acima do normal, ou dentro da safra há semanas de chuvas intensas que atrapalham todo o bom manejo e aí não tem muito o que ser feito”, afirma.
Em uma entrevista para ADEGA, Pierre-Henry Gagey, presidente da Maison Louis Jadot, foi enfático: “Sem chaptalização, a Borgonha não existe!”
E resumiu: “Uma boa uva tem três características. A primeira é a madurez, de açúcar e fenólica. Um dos desafios é alcançar a madurez dos dois ao mesmo tempo. A segunda característica é a excelência, para que a uva esteja impecável. E, por fim, a acidez. Nós não temos esse equilíbrio sempre. Às vezes, temos boa maturação fenólica, mas não temos açúcar suficiente. Então, temos que fazer chaptalização. Isso é uma coisa que as pessoas não falam. É melhor fazer isso do que esperar muito para colher e deixar a uva apodrecer. O equilíbrio ideal conseguimos em 2009, quando tudo estava perfeito. Mas não é sempre”.
Bem menos radical é o neozelandês Blair Walter, da Felton Road. Ao ser questionado sobre o tema, ele se mostrou espantado, pois, curiosamente, a safra 2018 foi a primeira vez que eles usaram chaptalização. Acalmem-se quem já está com os cabelos em pé pensando: “mas eles são biodinâmicos!” Walter deixou bem claro que a chaptalização foi usada como teste.
“Tivemos um verão quente com os sabores parecendo estar suficientemente maduros, mas os açúcares baixos. Fizemos uma colheita mais cedo em algumas partes das vinhas, mas eu estava preocupado com o baixo teor de açúcar no vinho e a potencial falta de corpo. Normalmente, nossos vinhos têm entre 13,5% e 14%, em alguns momentos até 14,5%, então será interessante para sabermos se há alguma reação negativa ou percepção de falta de corpo e textura nos vinhos em torno de 12,5%. Só tivemos dois lotes tão baixos (dos cerca de 30) e fizemos uma tentativa de chaptalizar versus deixar como está, versus colher cinco a 10 dias mais tarde com um nível de açúcar mais alto. Normalmente, não percebemos a maturidade do sabor em níveis tão baixos de açúcar, mas tivemos uma primavera e um verão muito mais quentes do que o normal. Suspeito que o vinho chaptalizado vai produzir um pouco mais de volume, mas não o ‘peso da fruta’ que gostaríamos de ver e que normalmente obtemos depois da colheita”, afirmar Walter.
Ele admite que prefere não fazer qualquer tipo de adição ao vinho, mas “às vezes, são necessárias adições para produzir vinhos de melhor qualidade. É claro que seria bom se nunca tivéssemos de fazer quaisquer acréscimos”.
Walter resume seu pensamento de forma interessante: “Em algumas áreas e safras em que as uvas não ficam suficientemente maduras, a chaptalização é vista como necessária para dar mais textura e volume no palato com um álcool mais elevado. Posso concordar com isso, mas acho que deve ser limitado ao suco de uva concentrado, em vez de cana, beterraba ou outros tipos de açúcar. Exatamente da mesma forma que, às vezes, não há acidez suficiente e uma pequena adição de ácido tartárico pode melhorar muito o vinho e assegurar um equilíbrio muito melhor, estabilidade microbiológica e aumento do potencial de envelhecimento. Pelo menos, o ácido tartárico é derivado das uvas”.
Falando da Itália, onde a chaptalização é proibida, aliás, só permitida em “safras desfavoráveis” para “enriquecimento” dos espumantes – na tomada de espuma –, o enólogo Gianmario Cerutti, da vinícola Cascina Cerutti, do Piemonte, diz que o “enriquecimento” poderia ser um recurso, mesmo quando se opta por outras práticas que permitem não ter necessidade disso – como viticultura com exposição adequada das vinhas, diminuição do vigor das plantas, desbaste etc. “Diria que é algo lícito, mas apenas em safras especiais adversas para ajustar moderadamente o teor de açúcar natural e com regras precisas que devem sempre ter em mente o conceito básico de singularidade e excepcionalidade. O que usar? Açúcar comum (de cana ou de beterraba), mosto de uvas concentrado, em forma líquida ou cristalizado, para mim deve ser permitido tudo e deixar a escolha para o produtor que decide com critérios técnicos e não políticos”, aponta.
Prós e contras listado, nota-se claramente que antes de demonizar o uso da chaptalização, talvez seja preciso levar em conta fatores que vão além da índole humana, pois o vinho apesar de ser algo natural, um produto da natureza, ele é feito pelo homem e para o homem, e nessa equação há muitas variáveis.