Muito mais do que instrumentos para servir, com o tempo, os decanteres se tornaram obras de arte
por Diego Pinheiro e Diego Tonetti
Há acessórios de que todo enófilo precisa. O decanter, apesar de muitos utilizarem-no raras vezes, é um deles. Na Antiguidade, o decantador era um peça essencial, pois, como o vinhos geralmente estavam em barris ou ânforas, era necessário passá-lo para um recipiente menor para poder servir com mais eficiência. Com o surgimento das garrafas, essa função foi sendo deixada de lado. No entanto, logo se descobriu que ele servia para livrar o líquido de seus sedimentos (pois muitos vinhos não eram filtrados). Além disso, verificou-se que o decanter também ajuda a aerar a bebida.
Ainda hoje, os decanteres têm essas três finalidades (servir, separar resíduos e aerar/decantar), no entanto, há pouco tempo, também tem servido como uma magnífica peça de decoração, quando não, uma obra de arte. Isso mesmo, essas peças de cristal manufaturadas atualmente integram coleções de museus de arte moderna ao redor do mundo, além de receberem diversos prêmios de design e inovação
Um dos principais colaboradores para que os decanteres se tornassem mais do que um acessório certamente foi Maximilian Riedel, herdeiro da cristaleria austríaca Riedel, a mais prestigiada do mundo quando se trata de vinho. Membro da 11a geração da família, antes de assumir definitivamente a empresa, ele viveu nos Estados Unidos e lá começou perceber a importância do design. “Se você olhar para os meus decanteres, mesmo o meu primeiro, o Connector, ou um dos últimos, o Swan ou o Face to Face, que ganharam prêmios de design, todos são influenciados pela natureza e pelas minhas viagens ao redor do mundo”, afirma.
As “obras” da família Riedel, aliás, já eram reconhecidas como arte desde 1958, quando taças feitas por Claus Josef Riedel, avô de Maximilian, foram selecionadas para a coleção permanente do MoMA, em Nova York. Mais recentemente, o neto – com novas linhas de taças e principalmente decanteres inovadores e artísticos –, também levou o nome da família para dentro dos “templos da arte”. Perguntado sobre a importância do decanter atualmente, Maximilian tem uma visão muito prática: “Creio que todo enófilo precisa ter pelo menos um decanter em casa, pois todo vinho pode ser decantado”.
A Riedel possui uma linha de decanteres inspirados nos formatos da serpentes. O Boa foi criado em 2013, ano da cobra segundo o calendário chinês. “Sempre fui fascinado pelas formas orgânicas e gosto do desafio técnico e criativo de incorporar cobras aos meus designs”, contou Maximilian. “Mais do que isso, o formato facilita a dupla-decantação”, afirmou.
Na Antiguidade, os decanteres geralmente eram pequenos vasos de terracota. Mas já ali havia alguma preocupação em torná-lo uma peça mais atraente, com entalhes, desenhos etc. Em reinos mais ricos, materiais mais nobres, como bronze, prata e ouro passaram a ser usados para essas peças, que ainda podiam receber outros ornamentos, como pedras preciosas. Acredita-se que o formato padrão dos decanteres (fundo ovalado) tenha sido criado na época renascentista pelos venezianos, que já o trabalhavam em vidro.
Aliás, graças às técnicas de sopro de vidro dos venezianos, ainda no século XIV, houve um grande avanço no que tange aos recipientes para receber vinhos, tanto taças quanto decanteres, que passaram a ser transparentes, fazendo com que a cor da bebida pudesse ser apreciada. E um dos primeiros a criar decanteres transparentes em escala semi-industrial foi o pioneiro da cristaleria inglesa, George Ravenscroft.
Na verdade, os acessórios de vinho passaram a compor a estética da mesa de jantar ainda no século XVIII, quando os rituais relacionados ao serviço da comida e da bebida foram estabelecidos. Mas peças como decanteres e taças se tornaram realmente decorativas no começo do século seguinte, com a Art Nouveau, na Belle Époque, quando as técnicas de sopro de vidro fizeram com que elas pudessem ficar ainda mais finas. Na época, cada taça e decanter, assim como seus ornamentos, eram feitos individualmente.
Art Nouveau ajudou a transformar os decanteres em peças de decoração
Com a I Guerra Mundial, contudo, esse trabalho dispendioso e caro de moldar peça por peça foi abandonado, dando lugar a um estilo muito mais prático e simples, que ficaria conhecido como Art Deco, cujo nome deriva da Exposition des Arts Décoratives et Industrielles Modernes, de 1925, em Paris. A partir daí, as peças de vidro passaram a ter design mais simples, que pudesse ser replicado industrialmente, mas mantendo um desenho “decorativo”.
No entanto, a Art Deco foi praticamente abandonada com o advento da II Guerra Mundial e saiu de moda por cerca de 50 anos, quando retornou à cena por volta dos anos 1990 e hoje se aprimorou. Assim, atualmente encontramos desde os decanteres mais simples até os mais rebuscados, de estilos que vão do rococó até as cultuadas formas orgânicas, e que, mais do que servir, aerar ou decanter, tornaram-se verdadeiras peças de decoração e arte. ADEGA então selecionou algumas que realmente impressionam. Confira abaixo.
Por que decantar?Decantar é o ato de despejar vinho da garrafa em outro recipiente, normalmente de vidro, chamado decanter. A finalidade básica de se decantar um vinho é unicamente separar o líquido de depósitos concentrados no fundo da garrafa, sedimentos naturais formados durante seu processo de envelhecimento em garrafa. O uso do decanter para servir o vinho tem seu charme, mas a verdade é que a maioria dos vinhos não precisa ser decantada. Como regra geral, Portos Vintage e tintos feitos para serem guardados por anos, especialmente os que levem cepas de coloração mais profunda e os mais tânicos – como, por exemplo, aqueles à base de Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah, Nebbiolo e Sangiovese – são os que necessitam de decantação. Brancos antigos que tenham depósitos também ficam mais atraentes e brilhantes se decantados. O que vai determinar se um vinho precisa ser decantado é a simples avaliação da existência de sedimentos no fundo da garrafa, que pode ser feita colocando-a contra a luz ou sob uma vela. Uma questão recorrente é quanto tempo antes do consumo se deve decantar o vinho. Não existe uma regra para isso, mas um bom parâmetro é considerar que quanto mais jovem, menos importa o tempo em que ele descansa no decanter, enquanto que para vinhos antigos o ideal é decantá-los o mais próximo da hora de beber possível. Isso porque, via de regra, eles são mais sensíveis à ação do oxigênio, podendo perder sua vivacidade se permanecerem muito tempo em contato com o ar (a área de exposição do líquido com a atmosfera é bem maior no decanter do que na garrafa). Por isso, para vinhos antigos, costuma-se recomendar o double-decanting, ou seja, que a garrafa original seja enxaguada com água, para remoção dos depósitos, e o vinho seja cuidadosamente devolvido para essa garrafa e arrolhado até ser servido. Eve Riedel Desenhado em 2008 por Maximilian, este foi o primeiro decanter da série de “serpentes” da Riedel. Ele ainda é um tributo à matriarca da família, Eva Riedel. Segundo o designer, o longo pescoço e o formato singular acelera o processo de aeração, já que faz uma decantação dupla. Ele é feito de forma completamente artesanal, cada um soprado livremente Você pode estar se perguntando: mas, e todos os outros vinhos – mais jovens e sem depósitos – que ficam mais agradáveis quando os passamos por decanter? É comum confundir-se o ato de decantar com o ato de aerar o vinho. De fato, o contato do vinho com o ar possibilita que seus aromas fiquem mais perceptíveis e identificáveis, e também que o vinho em si transmita uma maior sensação de maciez e palatabilidade, por conta da evaporação de seus componentes voláteis – que tendem a ter sabores e aromas menos agradáveis e são dissolvidos em contato com a superfície e com o ar. O ato de transferir o líquido da garrafa para o decanter, e também a maior área de exposição do vinho ao ar, fazem com que esse processo ocorra de forma mais rápida e efetiva. Entretanto, girar esse mesmo vinho na taça e aguardar acaba por ter o mesmo efeito. Apesar de ser amplamente dito que aerar o vinho amacia seus taninos, pois o contato com o ar de modo mais intenso implica em fazê-lo passar por um processo de oxidação acelerado e que essa oxidação teria o condão de adiantar sua evolução, amaciando, assim, seus taninos é algo controverso. A oxidação é um processo longo, que pode levar horas, ou mesmo dias. De acordo com a Master of Wine Jancis Robinson, por exemplo, os resultados de amostras comparativas de degustações dos mesmos vinhos abertos e decantados por diferentes períodos de tempo antes de serem provados foram inconclusivos. Ou seja, não foi possível determinar uma correlação objetiva entre o ato de aerar o vinho e o “amaciamento” de seus taninos. Fato é que, independentemente de qualquer comprovação científica, a passagem do vinho por decanter para ser aerado, na maioria das vezes, torna sua degustação mais agradável e prazerosa, que é o que, afinal, realmente importa. O essencial é diferenciar o que está se buscando ao passar um vinho pelo decanter, se se quer realmente decantá-lo ou somente aerá-lo. No mais, faça disso uma experiência – ou ritual –, compare, prove e tire suas próprias conclusões. |
O decanter Amadeo foi lançado em 2006 para celebrar os 250 anos da Riedel. O nome é em homenagem ao compositor Wolfgang Amadeus Mozart, também austríaco como a marca e que também estaria completando 250 anos na data. O formato lembra o de uma lira.
O decanter Curly, inspirado na forma de um rabo de porco, foi projetado por George Riedel, pai de Maximilian. Diferentemente do filho, George se inspirou na culinária para criar suas peças, entre elas também o decanter Escargot. “A curvatura do rabo do porco sempre me intrigou. Sempre me questionei a função de ser enrolada e a resposta serviu como uma interpretação para uma forma elegante e funcional”, disse.
O formato ovalado pode ser convencional, mas o suporte do decanter feito pela Grant Macdonald para a Aston Martin é uma peça de luxo, feito com aço e detalhes em ouro. Foi desenhado para comemorar os 200 anos da marca automobilística.
O decanter é composto de duas superfícies côncavas, em formato de rostos, ou seja, duas pequenas e delicadas esculturas, que ficam frente a frente. Segundo a Riedel, mais do que estética, elas possuem uma função de “remos” para, quando se agitar o vinho dentro do decanter, formar uma espuma, aumentando o efeito da aeração.
Feito em homenagem à herança austríaca da família Riedel, o Horn é inspirado no símbolo dos correios da Áustria, que até o século XIX anunciavam a sua chegada a uma cidade tocando uma corneta. Além de decantar vinho, ele pode servir como instrumento musical. Basta soprar a abertura.
Obra da Schott Zwiesel, o pescoço ovalado do decanter Hero maximiza a aeração dos vinhos.
O formato de rosca o torna simples de usar e aumenta a superfície de contato.
Depois do Eve, Maximilian projetou o decanter Mamba em 2011, inspirado na forma de ataque da cobra que leva o mesmo nome e é considerada mais rápida do mundo. Também por isso, a aeração promete ser muito veloz, apoiada nos bolsões de ar do formato que favorecem uma dupla decantação.
O artista bordalês Etienne Meneau criou uma série de decanteres inspirados nas veias do coração. Cada um deles é feito à mão em edição limitada.
A marca alemã de 1872 produz decanteres artesanalmente. Este é indicado para os vinhos tintos e fica em posição oblíqua na mesa.
A marca Spiegelau possui linhas que homenageiam a Itália, suas cidades e regiões. Este decanter Siena tem um formato que oferece uma generosa área de contato do vinho com o ar.
O Swan é uma obra conjunta de George e Maximilian Riedel. Eles se inspiraram para criar esse formato de cisne depois de uma viagem para Veneza. Eles também criaram outros formatos baseados em aves como o Flamingo e Paloma, por exemplo.
O decanter em formato de diamante pode ficar tanto em pé quanto deitado, daí o nome.
Desenhado pela artista Patricia Urquiloa, o Variations decanter tem estilo que lembra Art Deco com formato mais contemporâneo.
De estanho e vidro, o decanter da marca Royal Selangor – especialista em estanho desde 1885 – tem formato de baleia e é preenchido pelo funil no topo, fazendo com que o vinho escorra pelas paredes internas, melhorando a aeração.