Comendo fogo e bebendo pedra

A combinação entre a tradição e a rusticidade do forno a lenha com vinhos de expressão mineral

por Marcelo Copello

Duas tendências da mais alta sofisticação e da mais autêntica simplicidade na área da enogastronomia são os alimentos preparados à lenha e os vinhos que expressem mineralidade. Não por coincidência, estes sabores podem combinar à perfeição, como testamos e comprovamos no Enogourmet deste mês.

Os pratos preparados em grelhas ou fogões à lenha ou carvão trazem um toque de tradição e rusticidade que, se bem trabalhadas por um chef, podem resultar em receitas de extrema elegância. No forno à lenha, a madeira exala vapores aromáticos que se impregnam nos pratos, dando um sutil toque defumado. Além disso, por proporcionar temperaturas mais altas (cerca de 550ºC, contra 300ºC de um forno convencional) e distribuir o calor uniformemente, torna os pratos mais crocantes por fora e tenros por dentro.

O que é "mineralidade" em um vinho? Chamamos de "vinhos frutados" aqueles cujos aromas mostram muitas frutas. Por exemplo, "florais" para os que primam pelas fragrâncias de flores e assim por diante. Na Europa e em mercados mais maduros, os consumidores já cansados de vinhos simplesmente frutados (estilo mais comum no mercado de hoje) buscam cada vez mais produtos com olores minerais, como de pedras (calcário, sílex - ou pedra de isqueiro), petróleo, terra etc. Aromas assim só se manifestam em certos terroirs e são encobertos se o vinho for excessivamente concentrado ou passar tempo demasiado em barricas novas, por exemplo.

O local e os convidados
A experiência foi em uma das melhores pizzarias do Rio de Janeiro, a "Eccelenza", onde a tecnologia do forno à lenha é dominada por seu proprietário, Floriano Abinader, que usa sempre o mesmo tipo de madeira (eucalipto) para manter o padrão de gosto de seus pães e pizzas.

fotos: Geraldo Garcia

fotos: Geraldo Garcia

À mesa, um grupo animado, alguns velhos amigos: os anfitriões Márcia e Floriano Abinader, Leilane Neubarth - apresentadora de telejornal, jornalista e escritora; o casal Vivian e Luiz Alberto Py - médico psiquiatra e psicanalista autor de diversos livros; e o casal Priscilla Rozenbaum - atriz, e Domingos Oliveira, ator e cineasta.

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O "perfumadíssimo" Barreado

As escolhas dos pratos
Para este inusitado casamento de "fogo no prato e pedra na taça" procuramos fugir do óbvio quando se trata de forno à lenha: a pizza. Assim, convocamos Ciça Roxo, a chef consultora da Eccelenza, para criar especialmente para o Enogourmet um prato de peixe e outro de carne.

A chef Ciça Roxo criou pratos com peixe e carne

Do mar, tivemos um bacalhau confitado, com baroa, maçã e azeite de coentros. Depois, um legítimo Barreado! Este prato típico do Paraná originalmente consiste em uma carne bovina bem temperada lentamente cozida em panela de barro. Em seguida, a panela é lacrada com barro, ou "barreada", enterrada e, sobre ela, é acessa uma fogueira, por 12-24 horas. Em nossa versão, a carne foi assada lentamente em uma panela no forno à lenha (apagado) a noite toda. Interessante observar que mesmo assim a temperatura nunca baixa dos 100ºC ao longo da noite. No dia seguinte, antes de servir, cada prato foi "selado" ou "barreado" com uma fina cobertura de massa de pizza e assado novamente.

fotos: Geraldo Garcia

Como vinhos, escolhemos três brancos e três tintos que fugissem ao perfil meramente frutado. Nos brancos, um Riesling, que tipicamente mostra aromas descritos como petróleo ou gasolina; um nobre Borgonha branco, com notas de pedra calcária, e um tradicionalíssimo Rioja, com quatro anos em madeira e grande complexidade de aromas. Nos tintos, um espetacular Borgonha, pleno de fragrâncias terrosas, um Bordeaux dos famosos vinhedos de argila azulada do Pomerol, mesmo terroir do mítico Pétrus, e um musculoso espanhol do Priorato, de terrenos de xisto, que sempre surpreendem por combinar força, frutosidade e mineralidade.

fotos: geraldo garcia

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A prática
O Bacalhau

Como de hábito, provamos os vinhos antes da chegada do prato. neste momento, saiu ganhando o mais elegante e delicado Puligny-montrachet, que recebeu cinco das oito preferências. os dissidentes, apenas Py e eu (optamos pelo Rioja) e vívian, que se rendeu ao Riesling.

Com a chegada do prato, tudo mudou. o bacalhau estava no ponto perfeito de sal, equilibrado com um toque de doçura da maçã e com o inebriante perfume tostado/defumado da lenha. As preferências em sua maioria migraram para o vinho mais expressivo no nariz: o espanhol viña gravonia Crianza 1996, que recebeu quatro votos (leilane, domingos, Floriano e Py). o Riesling não ficou muito atrás, com três. Sua maciez casou bem o sal do bacalhau e o doce da maçã, e conquistou as indicações de márcia, vívian e minha. discordando das maiorias, Priscilla manteve-se fiel à elegância do Borgonha, do início ao fim.

O Barreado
Os três tintos agradaram tanto que todos tiveram dificuldade nas escolhas. uma coisa foi bem percebida: lado a lado os três caldos formavam uma escada de nível de sabor, do mais leve (o Borgonha), passando pelo Bordeaux e chegando ao mais impactante, o espanhol. Este panorama levou os votos de quase todos para os extremos e o Bordeaux, apesar de excepcional, teve apenas uma preferência antes do prato, a de Vivian.

O Barreado chegou perfumadíssimo, "defumando" o ambiente. A intensidade aromática contrastava com a delicadeza do sabor, com pouca gordura e sem temperos fortes, como o cominho, muitas vezes usados em receitas tradicionais. Para meu paladar, este maravilhoso barreado light ficou perfeito ao lado de outra maravilha, o Corton grand Cru Clos du Roy 2002, opinião comungada por Priscilla e Py. mas a ala light saiu perdendo, pois o vinho que arrebatou os paladares e a preferência na harmonização foi outro. o "blockbuster" espanhol recebeu os demais votos (vivian, leilane, márcia, domingos e Floriano), "colocando uma pedra sobre o assunto"!

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