O vinho segundo Pierre

De Jura para a eternidade, como surgiu a lenda Pierre Overnoy

Pierre Overnoy, hoje com 85 anos e já aposentado, é o pai da Meca dos vinhos naturais

Pierre Overnoy, hoje aos 85 anos
Pierre Overnoy, hoje aos 85 anos

por Arnaldo Grizzo

Pupillin é uma minúscula comuna do departamento do Jura, quase na divisa da França com a Suíça. Para a maioria dos enófilos, esse é apenas mais um vilarejo de uma região pouco falada do vinho francês.

Contudo, para alguns poucos enófilos, o lugar é como uma Meca dos vinhos naturais. E isso graças a uma pessoa: Pierre Overnoy. Um nome de tanta grandeza que, diz-se, não é dito, mas sussurrado nas salas de degustação, tamanho o respeito e deferência por seu trabalho.

Curiosamente, a despeito de sua fama, Pierre, hoje com 85 anos e já aposentado, sempre achou ruim a “veneração”. “Sou contra o culto da pessoa. Toda vez que houve um culto à pessoa, em qualquer país, isso levou a desastres. Então, por que esse tipo de fama, de mito sobre mim? Não sei, porque não há razão”, disse uma vez em um evento em que estava sendo homenageado.

Ele sempre foi pouco afeito à fama, que nunca perseguiu e, na verdade, acabou vindo de forma repentina, numa fase de sua vida em que seus anseios estavam mais ligados ao descanso.

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: Pierre Overnoy, se tornou uma lenda, com vinhos que hoje são preciosidades

Homem do campo, sua “carreira” começou quando o pai, dono de uma fazenda em Pupillin, delegou parte dos vinhedos (cerca de 2,5 hectares) para Pierre em 1968. Durante anos, ele trabalhou quase incógnito, numa região pouco falada. Sua jornada parecia fadada a ser a típica vida camponesa, mas no começo dos anos 2000, Pierre se tornou uma lenda, com vinhos que hoje são preciosidades, com as poucas garrafas sendo disputadas acirradamente.

Sem químicos ou enxofre

Uma parte da explicação de sua reputação foi sua visão da agricultura desde o início. Antes mesmo de gerir os vinhedos, ele havia percebido que herbicidas químicos poderiam ter um papel nocivo nos solos a longo prazo. Consciente do potencial de seus terroirs, ele foi atrás de métodos delicados para extrair o melhor de suas uvas, numa busca constante de vinhos puros.

Ele decidiu estudar em Beaune, onde aprendeu sobre a enologia moderna. Depois de aplicar as técnicas, achou estranho que seus vinhos não fossem tão bons quantos os de seu pai ou irmão; afinal eram as mesmas uvas. “Ele tinha ido para escola de enologia para fazer vinhos melhores que os da família, mas acabou sendo o contrário!”, conta Emmanuel Houillon, que hoje administra a propriedade.

Em meados dos anos 70, Pierre conheceu Jacques Neauport e Jules Chauvet, dois nomes que se tornariam famosos pela defesa dos vinhos com mínima intervenção e sem enxofre. Dessa forma, ele acabou sendo um pioneiro dos chamados vinhos naturais. Tanto que, em 1984, vinificou o seu primeiro vinho sem enxofre. Um dos objetivos de Pierre era regressar ao sabor dos vinhos da época de seu avô.

Um “filho espiritual”

No outono de 1990, o jovem Emmanuel Houillon foi trabalhar com Pierre – ele já era um conhecido da família Overnoy, pois seu pai comprava vinhos de Pierre e as família acabaram se tornando amigas. Assim, ele passava duas semanas na escola, em Beaune, e duas nas vinhas de Pupillin. “Disseram-nos que os vinhos sem adição de enxofre eram impossíveis de fazer, que invariavelmente se transformariam em vinagre. Então fazer as pessoas aceitarem que é possível fazer – e ainda hoje algumas pessoas ainda não acreditam – isso foi algo que me marcou. Era 1990: as pessoas tratavam Pierre como um extraterrestre!”, conta Emmanuel.

Após sete anos de estudos, Pierre o efetivou. “Fui assalariado até 2001, quando assumi a propriedade”, diz. Naquele ano, Pierre decidiu se aposentar. Sem filhos, deixou o comando da propriedade nas mãos do garoto que tinha se tornado um “filho espiritual”. A partir daí, Emmanuel e sua esposa Anne assumiram o comando dos cerca de 6 hectares com plantações de variedades como Ploussard, Chardonnay, Savagnin e um pouco de Trousseau. “Pierre ainda é completamente parte integrante do dia a dia da minha família. Ele ainda está aqui, ele ainda é um vigneron, mas agora sua nova paixão é assar pão! Ele está sempre lá para provar os vinhos comigo, para dar conselhos ou ajudar”, conta.

A fama

Na época, o nome Pierre Overnoy ainda não causava a comoção que existe hoje. “Por muito tempo, esses vinhos foram incompreendidos”, aponta Emmanuel. Mesmo quando começaram a ser exportados, suas garrafas eram consumidas basicamente por “connoisseurs”. Com o passar dos anos, todavia, tudo se transformou e os vinhos se tornaram cults. E não somente pelo fato de serem expoentes da vinificação dita como natural.

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Pupillin, minúscula comuna do departamento do Jura

Pierre sempre prezou por entregar um produto “pronto”. Sendo assim, ele mantém seus vinhos guardados o quanto acha necessário e, quando lança no mercado, nem sempre as safras têm ordem cronológica, mas sim aleatória a depender da evolução da bebida naquela safra. Outra curiosidade é que, muitas vezes, a mesma safra pode ser engarrafada e lançada em diferentes períodos, pois os vinhos podem ter evoluído de formas distintas em diferentes recipientes. Tanto que, desde 2018, Houillon começou a adicionar a data de engarrafamento como o número do lote de seus rótulos.

Outro ponto interessante é que todos os vinhos possuem o mesmo design no rótulo. A única diferença é a cor da cera no topo de cada garrafa: branco para Chardonnay, amarelo para Savagnin, vermelho para Ploussard. Existe uma mítica cera verde que é usada para o blend de Chardonnay/Savagnin raríssimas vezes lançado. Há ainda os clássicos Vin Jaune e Vin de Liqueur, além do Savagnin Ouillé (estilo de vinho feito sem oxidação).

Tudo isso e também todos os mitos ao redor da figura de Pierre Overnoy fazem com que seus vinhos alcancem preços equivalentes aos mais célebres e raros de regiões muito mais conhecidas da França. A procura é tanta que, encontrar uma única garrafa é uma missão bastante complicada, pois, entre outras coisas, não há planos para aumentar os vinhedos e tampouco a produção. E assim Overnoy vai transcendendo o Jura, os “vinhos naturais”, a história.

Alternativas ao enxofre

Um dos pontos centrais da filosofia de Pierre Overnoy está no uso do enxofre, um conservante muito usado na vitivinicultura. Para Emmanuel Houillon, o enxofre pode, em alguns casos, ser benéfico para a viticultura e vinificação.

“O problema é que o uso de enxofre se tornou padronizado e, em muitos casos, tira a vida do vinho”. Mas alguns perguntariam: e o envelhecimento? “Diria que os vinhos ‘vivos’ geralmente envelhecem melhor, porque quando um vinho não é filtrado e não é clarificado, você tem todos os elementos necessários para envelhecer. Se você quer fazer um vinho que vai envelhecer por muito tempo, há muitas maneiras de fazê-lo: pode deixá-lo em suas borras por um longo tempo, engarrafá-los anos antes do lançamento...”

Como evitar brett, oxidação e acidez volátil sem enxofre? “Existem diretrizes importantes a serem seguidas se você não quiser que seu vinho sofra com esses problemas. Você não pode simplesmente fazer o que quiser, como quiser. Você pode fazer vinho sem enxofre todos os anos, mas isso significa que, em algumas safras, precisará ser paciente. Ser meticuloso com as uvas que está colhendo é a coisa mais importante. Especialmente para os tintos, se você não está escolhendo o que está colhendo, nem vale a pena tentar. Outro detalhe importante: não deixar as uvas ultrapassarem a maturidade. A melhor fruta é aquela colhida exatamente na hora certa. Se estiver pouco madura, muito madura ou se você deixar descansar por alguns dias, perderá um pouco de sua pureza.”

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