Entrevista

Felipe Müller, da Viña Tabalí, revela como concilia o trabalho de enólogo com o de gerente geral

Homem de confiança da família Luksic, ele conta suas apostas para o futuro do vale de Limarí e da vitivinicultura do Chile

por Redação

“Nunca vou deixar de fazer vinho”, garante Felipe Müller Est, CEO e enólogo da Viña Tabalí. Com pouco mais de 40 anos, Müller é um jovem determinado e consciente. Sua afirmação de que nunca deixará de fazer vinhos revela o quanto ele aprecia o que faz, ao mesmo tempo em que entende a importância desse trabalho mesmo tendo que ocupar um cargo que, teoricamente, o afastaria dessa função enológica.

Não é simples conciliar a enologia e administração de uma vinícola. Não são muitos os que são capazes de fazer isso, principalmente tendo de gerir uma empresa familiar que não é de sua família. Müller é o homem de confiança da família Luksic. Em 2006, foi contratado pelo empresário Guillermo Luksic e, após sua morte, trabalha sob a supervisão de seu filho, Nicolás.

A Viña Tabalí, fundada pelo visionário Guillermo Luksic, nasceu em 2002, quando ainda poucos se aventuravam pelo vale de Limarí, no norte do Chile. Com ajuda de Müller, a vinícola se tornou uma referência e hoje, como o enólogo faz questão de frisar, atua no vale todo, do Pacífico aos Andes, explorando os mais diversos terroirs da região.

Nesta entrevista exclusiva, Müller conta como concilia a enologia e a administração da empresa, sem medo de experimentar. Ele revela ainda suas apostas para o futuro do vale de Limarí e da vitivinicultura do Chile. 

Como você foi parar no mundo do vinho?

Minha família não tem nenhuma ligação com o vinho. Meu pai é advogado e minha mãe é artista plástica. Vim para o vinho, pois, desde pequeno, gostava de tomar vinho. Em minha casa, meus pais tomavam e sempre gostei. Quando cresci, meus amigos tomavam cerveja e eu era o único que tomava vinho. Estudei agronomia na Universidade Católica. Minha paixão era mergulho, e queria estudar algo relacionado à biologia marinha. Mas fui para enologia. Foi uma mudança radical. Fui tomando gosto pela ciência, pela arte, pelo negócioisso foi o que me apaixonou. Não era somente produzir laranjas ou maçãs, havia todo um mundo depois da produção da uva. 

E depois de formado? 

Tive a sorte de ter uma boa escola depois. Trabalhei durante sete anos na De Martino, com meu grande amigo Marcelo Retamal. E tive a sorte de ter como assessor dois grandes enólogos, Aurelio Montes e Adriana Cerda. Lá havia um projeto enológico maravilhoso. Era uma equipe muito boa. Viajei o mundo conhecendo quase todas as zonas vitivinícolas e também o Chile praticamente completo, procurando vinhedos. 

E por que saiu?

Passou o tempo e vai-se querendo novos desafios. Houve uma época que tive várias opções de trabalhar em outras vinícolas, mas sempre quis um desafio importante. Se fosse embora de De Martino tinha que ser um projeto que realmente valesse a pena. Em 2006, contataram-me de Tabalí, que era em uma zona que eu já conhecia. Estava fazendo vinhos fundamentalmente de Chardonnay em Limarí com De Martino. Sabia o potencial que o lugar tinha. O que mais me chamou a atenção foi o compromisso do dono e a vontade de fazer algo importante.

Quem o chamou?

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Foto: Divulgação

Era um empresário muito importante, Guillermo Luksic, que era apaixonado pelos vinhos. Era um projeto pessoal que, para ele, era extremamente importante. Ele praticamente fundou o vale de Limarí. Ele plantou as videiras quando todos disseram que era louco. Quando me contatou, queria fazer uma mudança importante e levar a vinícola para o lugar mais alto possível. Para mim, foi interessante, pois acreditava muito no potencial dessa zona, não somente para Chardonnay, que era o que eu conhecia, mas também para Pinot Noir, Syrah, Sauvignon Blanc.

O que fez com que aceitasse a proposta?

Em De Martino, era como jogar no Real Madrid, mas quando se está só... foi um desafio. Mas foi uma decisão excelente. Tive a sorte de trabalhar com o melhor empresário do Chile, alguém que realmente queria fazer o melhor possível e tinha paixão e loucura pelo vinho. Fizemos muitas coisas, reconvertemos seus vinhedos, compramos vinhedos novos. Depois fomos desenvolvendo vinhedos em distintas partes do vale. Tabalí é a única vinícola que tem vinhedos desde a cordilheira até praticamente o mar, e em uma só denominação. Temos Talinay, distante 12 quilômetros do mar, até Rio Hurtado, que está a 1.600 metros de altitude nos Andes. É um projeto muito interessante, pois desenvolvemos os extremos do vale. 

Como foi o começo, como foi encontrar os diferentes lugares em Limarí?

Do vinhedo original, com 180 hectares, tivemos que reconverter 100, pois estavam plantados com castas que não funcionavam. No começo, plantaram muitas castas, mas não havia experiência. Foi quando começamos a explorar distintas zonas do vale. Encontramos Talinay, o único vinhedo no Chile com solo 100% calcário, com clima muito frio, onde temos Sauvignon Blanc, Chardonnay e Pinot Noir. Talinay é o seu vinhedo mais especial? Este vinhedo é tão especial, tão único, que firmamos uma joint-venture com a casa de Champagne Thiénot e estamos fazendo espumantes com eles. Convidamos para ver se eles interessavam e viram que havia potencial. Fizemos ensaios durante quatro anos. Mandava os vinhos para a França e eles faziam a segunda fermentação lá. Degustaram às cegas com outros enólogos e nunca ninguém disse algo ruim. Confiam muito no potencial e a primeira colheita deve ser em um ano. Será Chardonnay e Pinot Noir com método tradicional e confiamos que vai ser um grande avanço para o Chile.

Tabalí também não era de propriedade da Viña San Pedro?

A propriedade era 50% de Luksic e 50% Viña San Pedro, mas eles são muito grandes e nós somos artesanais; e Guillermo então decidiu comprar o restante em 2011. Nesse minuto ele disse: “Quero que você seja CEO da companhia”. “Mas sou o enólogo”. “Nós vendemos vinhos, você é a pessoa que entende dos vinhedos, que faz os vinhos, conhece os solos, as pessoas, os clientes, preciso de alguém que pense sempre na marca Tabalí, não quero que cometam erros por resultados de curto prazo, mas que pensem sempre no longo prazo”. “O que lhe faz pensar que vou fazer diferente se preciso trazer resultados?” “Nos vinhos está sua assinatura, a vinícola é minha, mas os vinhos também são seus, e você nunca vai sacrificar a qualidade ou fazer alguma besteira somente para apresentar um número. Você tem que preservar o espírito da marca”. E foi incrível. Quase dois anos depois ele morreu de um câncer de pulmão. A transição foi muito suave com Nicolás. Tabalí cresceu todos os anos e nunca sacrificou a qualidade, com projetos que vão melhorando o portfólio, explorando zonas mais extremas. No fundo, é uma vinícola familiar que investiu muito para ter essa qualidade de matéria-prima.

É importante ser dono do vinhedo?

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Foto: Divulgação

Eu pessoalmente creio que se você encontra bons terroirs, se puder, ele deve ser seu para poder desenvolver, estudar e mostrar ao mundo... Tabalí é um projeto muito especial no qual seu enólogo é o gerente geral, que é algo que não ocorre normalmente. Partimos do vinho, ele é a nossa base, depois vem a comercialização, o marketing. Nossa base é o vinhedo e o vinho, e isso faz com que ela seja muito mais sólida para o crescimento da empresa. Aqui tudo parte do produto. Tudo o que conquistamos vai ser produto da qualidade do nosso vinho. Tudo isso nos permite olhar para o futuro com segurança que vamos ter uma grande qualidade de uvas próprias para poder seguir desenvolvendo nossos vinhos.

A essência de Limarí é Chardonnay?

A primeira uva que saiu ao mundo de Limarí foi Chardonnay. Ela tinha frescor e estrutura, que é dada pelo calcário. Em Tabalí, comecei a fazer Sauvignon Blanc, Pinot Noir, Chardonnay e Syrah fundamentalmente. São as quatro castas mais fortes. Hoje temos um Viognier que é uma maravilha. Em Talinay, fazemos ensaios com Cabernet Franc e Malbec, que provavelmente vão estar no mercado no próximo ano. Limarí tem algo muito interessante, pois tem um clima frio, mas seco, portanto permite produzir algumas uvas tintas de ciclo mais curto, como Malbec, Syrah e Cabernet Franc. Mas não tive bons Cabernet Sauvignon e Carménère, mesmo colhendo muito tarde. Os solos calcários produzem vinhos mais elegantes, minerais, com muito bom pH, que geralmente têm uma boa evolução na garrafa. Limarí é um maratonista. Ele vai mudando com o tempo.

Cabernet Sauvignon e Carménère são variedades importantes do Chile, como não trabalhar com elas?

 Há um tempo queria fazer a empresa crescer e as castas em que não estávamos focados eram Cabernet e Carménère. Ter essas duas castas no portfólio de uma vinícola chilena é muito importante. Se você quer ter um certo tamanho, sem isso, é muito complicado. E tive a sorte de, em 2013, receber uma chamada de um produtor dono de um vinhedo maravilhoso no Maipo. Praticamente o último vinhedo nas mãos de um produtor e não de uma empresa. Conseguimos comprar e desenvolver um projeto de Cabernet Sauvignon para Tabalí com um campo que está numa parte mais costeira. do Maipo, plantado na cordilheira da costa, que, em geral, tem muito granito.

Mas onde está o nosso vinhedo DOM (significa casa) é um lugar de solo basáltico, vulcânico, muita pedra, muito bom nível de argila, muito boa drenagem, as raízes exploram o perfil de solo muito bem e faz grandes Cabernet. A planta veio da poda de quarteis de Casa Real, o top da vinícola Santa Rita. Em 2014 lançamos os primeiros vinhos já com resultados incríveis. Então hoje Tabalí tem seu pé em Limarí, mas também no Maipo, com 80 hectares.

Sendo CEO da vinícola e enólogo ao mesmo tempo, como lida com as experiências que precisa fazer?

Nasci enologicamente experimentando. Em Tabalí, experimentei muito e assumi muitos riscos procurando setores e vinhedos. Experimentamos muito em zonas que não estavam produzindo vinhos. E internamente sempre estamos experimentando com manejos, podas, folhagem, coisas que não se veem geralmente. E também com distintas técnicas enológicas, como leveduras nativas, fermentações com cachos inteiros, macerações carbônicas, foudres, diferentes tipos de madeira, coisas que são tentativa e erro. Sempre tenho uma porcentagem que gosto de arriscar.

O que está por trás dessas experiências?

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O que tento fazer como enólogo é mostrar o terroir em uma garrafa. Não gosto muito de madeira, leveduras, que mascaram o vinhedo. Enologicamente falando, mostramos muito bem os distintos vinhedos e terroirs que temos, com muito frescor. Para mim, como enólogo, é fácil colocar 100% de barrica nova e acabou-se o terroir. A teoria diz que, quanto mais caro o vinho, mais barrica nova tem que ter. E não é assim. Cada vinho, cada uva tem uma forma de ser trabalhada. Não tenho receita. Tenho a ideia, mas sempre vou mudando. Cada vez aparece uma situação nova em que tenho que tomar decisão e tentar tirar o máximo do potencial da uva. As possibilidades de experimentação são infinitas, e isso é o que apaixona nesse trabalho. Isso é o vinho, não é uma receita. É preciso mostrar o terroir, não o perder. E nós enólogos temos uma capacidade importante de perder. É preciso ser menos intervencionista.

Como concilia ser enólogo e gerente geral?

O mais importante é ter uma boa equipe. Sou a cara e a cabeça de uma boa equipe em todas as áreas. Sozinho é impossível. Sempre lembro de uma frase: quanto mais você sabe, melhor para mim, que posso me dedicar a pensar em outras coisas; você está trabalhando e eu estou tranquilo que as coisas estão sendo bem-feitas. Essa filosofia eu aplico e me permite confiar nas pessoas, capacitar essas pessoas. É um desgaste pessoal grande, pois tenho que estar em Limarí (vinícola) e Santiago (escritório), mas sou muito comercial. Hoje, um dos erros dos enólogos é não transmitir o que fazem. Antes, os enólogos estavam fechados na vinícola e ninguém os conhecia.  Quem melhor para contar como é feito o vinho do que quem fez o vinho? O mais legal de tudo foi dar a forma que gostaria para o projeto, ter uma marca de excelência em que não importa o rótulo que as pessoas comprem, elas sempre confiem que é um produto sério, de qualidade. Eu pessoalmente me preocupo muito que o nível de entrada da Tabalí seja um vinho extraordinário por esse nível de preço, pois é a porta de entrada. Muitas empresas se preocupam com os vinhos de gama alta e descuidam dos de baixo.

Parece cansativo, não pensa em deixar de lado a enologia?

É muito trabalho, mas muito gratificante. Precisa delegar e formar equipe, senão não funciona. Não me interessa ser gerente geral se deixar de fazer o vinho, minha essência é ser enólogo. Vou seguir sendo enólogo.

Como vê essa revolução de enólogos atualmente, com projetos próprios e experimentações?

 É interessante, cada um com seu estilo, sem restrições. Mas o Chile precisa vender melhor os lugares que têm uma qualidade alta. Os vales possuem denominações muito grandes. Temos que falar de lugares pontuais. A generalização leva a uma commodity. É interessante o que está acontecendo no Chile hoje em dia, enólogos destacando zonas patrimoniais como Itata, valorizando vinhedos antigos com cepas como País, Moscatel etc. Acho muito legal, pois mostra a capacidade do Chile de fazer vinhos diferentes. Se ficamos somente no padrão, torna-se uma commodity. O pior que pode acontecer ao Chile é que fique dominado por 10 marcas. Tomara que mais e mais vinhedos apareçam. Isso obriga os grandes a se modernizar, a melhorar. E quando os grandes melhoram, ajudam também os pequenos, pois melhora a imagem do país. É uma revolução que há pouco tempo era silenciosa, mas hoje deixou de ser e celebro quem deu esse passo para a inovação, pois é duro.  

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