por Redação
A morte de Gianfranco Soldera, de um ataque cardíaco enquanto dirigia perto de seus vinhedos na Toscana, em fevereiro deste ano (sim, 2019), causou uma enorme comoção na comunidade vitivinícola local. Houve lamentos profundos pela perda, aos 82 anos, de um dos produtores mais conceituados da região, mas também deve ter havido um certo “já vai tarde” por parte de alguns “colegas”, pois, ao mesmo tempo que Soldera criou um mito em torno de seu vinho, com suas controvérsias, também soube deixar muita gente irritada.
Como um corretor de seguros de Milão – nascido em Treviso, na verdade – se tornou um ícone da vitivinicultura natural e ainda rompeu com o Consórcio de Brunello di Montalcino? Soldera não era uma pessoa de gênio fácil. Apesar de tímido, costumava não ter papas na língua ao emitir suas opiniões – sendo elas requisitadas ou não. A reposta para esse comportamento de certa forma arredio talvez esteja no fato de ele ter “aparecido de repente” em uma região de produtores muito tradicionais.
Em 1972, ele e sua esposa Graziella decidiram comprar uma propriedade perto da cidade de Tavernelle, menos de 10 quilômetros de Montalcino. Sua Case Basse não tinha vinhas plantadas e ele cultivou 10 hectares de Sangiovese, sem o uso de pesticidas. A primeira safra foi em 1975, mas seu primeiro Brunello só foi produzido dois anos depois (e lançado em 1982). Desde o começo, destacou-se pela filosofia de mínima intervenção, tornando-se um dos pioneiros da região (e do mundo) no que se convenciona chamar hoje de vinhos naturais.
“Um grande vinho se destaca pela harmonia, elegância, complexidade e naturalidade.Isso significa equilíbrio e proporção, delicadeza, múltiplas sensações de aroma e sabor. Significa utilizar uvas maduras e saudáveis, transformadas após um processo natural, sem a adição de produtos químicos, corantes, conservantes ou outras substâncias não presentes nas uvas (taninos de carvalho, etc.)”, afirmava Soldera.
Em Case Basse, os vinhedos são plantados em um complexo ecossistema, formado por uma grande variedade de outras plantas, animais e insetos – segundo Soldera para manter as vinhas saudáveis naturalmente, sem o uso de herbicidas.
Ele pensou seu vinhedo para não ter mais 10 hectares para que as plantas pudessem ser trabalhadas à mão e a colheita, que também é manual, pudesse ser feita mais rapidamente.
Gianfranco e Graziella renovaram prédios abandonados na propriedade, restaurando a arquitetura original e estimularam o aparecimento de aves e outros animais na fazenda. Eles também instalaram colmeias para ajudar as abelhas a fertilizar asvideiras. Há ainda oliveiras e oito hectares de floresta na propriedade, onde se encontram carvalhos centenários. E para contribuir com a biodiversidade na área e satisfazer sua paixão pessoal, Graziella ainda criou um jardim botânico.
Nos anos 1990, Robert Parker descobriu os vinhos de Soldera, que logo receberam boas avaliações e, graças à produção limitada, tornaram-se cults. Gianfranco também se tornaria conhecido por suas opiniões fortes, sem medo de criticar vizinhos que produziam vinhos que ele considerava não terem nível suficiente para Brunello e também colocando em xeque a atuação do Consórcio local no que tange a proteção da qualidade.
Soldera, aliás, foi um dos maiores críticos do Consórcio durante o “Brunellopoli”, ou “Brunellogate”, como também ficou conhecido. O escândalo de 2008 mostrou que produtores da região fraudaram garrafas de Brunello usando uvas de fora de denominação – o que não é permitido. Enfim, por mais controverso que ele tenha sido, de certa forma foram seus vinhos e sua visão que ajudaram Brunello a resgatar muito de seu prestígio entre consumidores mundo afora.
A insatisfação com o Consórcio também fez com que Soldera decidisse que seu vinho 2006 não seria classificado como Brunello, mas como um IGT Toscana. E, desde então, ele não “recolocou” seu vinho na DOCG Brunello, preferindo mantê-lo apenas como Indicação Geográfica, teoricamente um vinho menos prestigiado. E nem por isso, obviamente, suas garrafas deixaram de ser disputadas pelos fãs.
Em 2012, Soldera, contudo, sofreu um grande baque. Um ex-funcionário sabotou seus tonéis e destruiu o equivalente a mais de seis mil caixas de vinho das safras 2007 a 2012 que estavam repousando em botti. O Consórcio se prontificou a ajudá-lo nesse momento difícil, oferecendo vinhos de outras propriedades que pudessem ser vendidas como uma cuvée especial por Soldera. Gianfranco, contudo, recusou dizendo que seria enganar os consumidores. Desde então, os lançamentos de Soldera têm variado bastante em quantidade.
Apesar de sua devoção à natureza e seus desígnios, Soldera nunca foi contrário à tecnologia. Um dos parceiros científicos da vinícola é a Universidade de Florença, que faz a análise microbiológica em mostos fermentados e isso dá suporte a uma análise de degustação. Como a é fermentação natural, a temperatura é medida a cada 10 minutos e a análise dos dados permite seguir passo a passo a produção. “A ciência e a tecnologia desempenham um papel fundamental na produção de um vinho de grande qualidade, mas sem alterar os processos naturais de vinificação”, aponta a vinícola em seu site.Soldera, por sinal, além de manter um laboratório de pesquisas, também realiza um prêmio anual, estabelecido desde 2010, para jovens pesquisadores.
Para entender o pensamento e o vinho de Soldera, aqui vai sua definição de um grande vinho: “Um grande vinho nos dá satisfação, uma sensação de bem-estar e nos faz querer beber de novo: cria e desenvolve a sociabilidade entre amigos. É único, raro, típico e de longa duração. Podemos reconhecer no vinho o microterritório e a vinha de onde veio. Um grande vinho não é substituível, porque tem características únicas, como qualquer obra de arte. Eu não vendi uma única garrafa da safra de 1989, porque não achava que era o meu padrão de qualidade habitual.Um grande vinho é longevo: deve melhorar, pelo menos nos primeiros vinte anos, e oferecer diferentes sensações ao longo do tempo. É o único produto natural consumido pelos seres humanos que pode sobreviver ao homem”.
A produção média anual é de 15 mil garrafas quando a safra é boa. E segundo o próprio Soldera apontou antes de morrer, 27 de 30 safras foram excelentes. Para ele, sua melhor vindima foi a de 1979. E, como não poderia deixar de ser, uma de suas máximas é: “O vinho é sempre subjetivo: a mesma garrafa pode valer 500 euros para uma pessoa e nem sequer 1 euro para outra”. Assim era Gianfranco Soldera.
+lidas
1000 Stories, história e vinho se unem na Califórnia
Os mais caros e desejados vinhos do mundo!
Notas de Rebeldia: Um brinde ao sonho e à superação no mundo do vinho
Curso de vinhos para iniciantes, no RJ
Pós-Covid: conheça cinco formas para recuperar seu olfato e paladar enquanto se recupera